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RELATOS E REFLEXÕES SOBRE ATIVIDADES DE
UM CURSINHO LIBERTÁRIO
2015-2016
PUBLICAÇÃO #1
2
Material produzido pela comissão de publicação do Cursinho Livre da Lapa.
Textos produzidos ao longo dos anos de 2015 e 2016.
1ª edição.
Cópia e reprodução autorizada por Creative Commons.
3
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...........................................................................................................4
Cursinho livre da lapa: ajude essa luta pela educação libertária .................................6
Princípios, objetivos e acordos mínimos ......................................................................9
Pedagogia libertária, construção política e estratégias de resolução
de conflitos no Cursinho Livre da Lapa.......................................................................12
Reflexões sobre o I Ciclo de Formação do Cursinho Livre da Lapa
(ou sobre como o pessoal também importa) .............................................................15
Comissão de Mediação Pedagógica ...........................................................................19
Quando a vontade de igualdade reproduz privilégios:
a relação estudante-educante ...................................................................................21
Divisão de tarefas entre Cursinho Livre da Lapa e Casa Mafalda...............................24
Relatos de atividades das áreas em 2015...................................................................28
Depoimento de Ivanna, estudante em 2016..............................................................40
4
APRESENTAÇÃO
O Cursinho Livre da Lapa nasceu da vontade de diversas pessoas que
trabalhavam ou se interessavam por educação em ter uma experiência prática de
pedagogia libertária. Levando em consideração nosso envolvimento com as lutas
sociais que tem lugar na cidade, e partindo de um debate sobre os bachilleratos
populares na Argentina (escolas auto-organizadas pela população em meio à crise de
2001), nos pareceu boa a ideia de construir um cursinho popular libertário. A
apresentação de uma companheira brasileira que participava da Escuela Libre de
Constitución, em Buenos Aires, sobre o funcionamento dessa escola/bachillerato
acabou servindo como disparador para começar o cursinho.
Nossa proposta é desenvolver relações pedagógicas e educativas
horizontalizantes, ou seja, diminuindo ao máximo a barreira entre educadores/as e
estudantes. As decisões dentro do cursinho acabam sendo sempre coletivas, e as
propostas tanto de aula quanto de outras atividades passam por uma ideia de
formação social e política crítica, com a intenção de potencializar a capacidade de
organização de todos nós.
Enquanto educadores, acreditamos que nosso papel é propor experiências em
sala e fora dela que possam ajudar a abrir portas e construir os caminhos desejados e
descobertos junto às estudantes. Educação não pode ser algo doutrinário ou
imposto, muito menos uma atividade disciplinadora e formadora de corpos
5
controlados e prontos para serem devorados pelo mundo do trabalho. Acreditamos
que a educação pode e deve ser libertadora, uma experiência de autoconhecimento
e de conhecimento social e coletivo que nos torne pessoas aptas a compreender, agir
e transformar o mundo. Espaços educativos nunca podem ter um fim em si mesmo
ou estar desconectados do que acontece na cidade e na sociedade; educar é, no
limite, construir junto à possibilidade de novas gerações capazes de desconstruir e
romper com a nossa.
6
CURSINHO LIVRE DA LAPA:
AJUDE ESSA LUTA PELA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
O Cursinho Livre da Lapa é um projeto que surgiu dentro do espaço autônomo
Casa Mafalda, e passou a ser composto por muitos outros parceiros e parceiras com
o desejo de construir uma vivência de educação libertária inspirada em práticas como
a da Escola Moderna e dos bachilleratos populares na Argentina.
A ideia principal é que essa experiência seja pré-universitária e não apenas pré-
vestibular, que as e os estudantes ingressem na universidade de modo
profundamente crítico e não somente tenham bons resultados numa prova
eliminatória e elitista como o vestibular. É também direcionado para quem deseja
voltar a estudar, prestar vestibulinho ou busca reforço paralelo à escola.
Além das matérias diretamente exigidas pelo vestibular, temos também na
nossa grade linguagens e política, o que permite garantir um olhar mais cuidadoso
para a sociedade, as linguagens artísticas, o corpo e o indivíduo, que são aspectos
normalmente negligenciados ao longo da trajetória escolar.
De maneira geral buscamos aulas fora do formato tradicional para tentar
diminuir o máximo possível a hierarquia entre educadores/as e estudantes. Nesse
sentido, tentamos sempre garantir uma disposição das mesas na sala em formato de
assembleia, com o objetivo de propiciar discussões e debates, nas quais a construção
do conhecimento não fica centralizada na figura do professor ou da professora.
Costumamos também propor saídas de campo que possibilitam aprendizagens
significativas e uma progressiva ocupação dos espaços da cidade, assim como
estabelecer relações entre os conteúdos discutidos em aula e estas vivências.
Toda a gestão do projeto fica a cargo tanto de estudantes quanto de
educadores, e é feita de forma horizontal, antirracista, não-homofóbica, feminista,
não-lesbofóbica e anti-transfóbica. Das reuniões de gestão e pedagógicas à
manutenção do espaço usado, a maior parte das tomadas de decisão é feita em
conjunto e por consenso.
O projeto foi iniciado sem qualquer contribuição financeira externa; no
entanto, nos deparamos com o fato de que alguns alunos/as muito envolvidos com o
Cursinho deixaram de assistir as aulas devido ao alto custo do transporte. Para tentar
resolver esta demanda organizamos um sarau e festas, com as quais conseguimos
garantir o transporte para uma parte das alunas e alunos, por uma semana, e
garantimos parte dos materiais que precisamos no dia-a-dia. Desta forma, muitos dos
gastos foram pagos diretamente pelos membros do cursinho.
Porém, não temos grana suficiente para dar conta de todos os nossos custos:
aluguel do espaço, materiais escolares, produtos de limpeza, xerox e principalmente
o transporte dos alunos e alunas. Por isso, precisamos de doações para manter nosso
projeto. Se você acredita que a educação pode ser construída de outra maneira, a
7
partir de princípios libertários e visando uma formação crítica, colabore com o
Cursinho Livre da Lapa!
Saiba mais sobre o Cursinho Livre da Lapa
Fundado no começo de 2015, o Cursinho Livre da Lapa iniciou suas atividades,
compondo alguns cenários cada vez mais crescentes; o cenário das lutas autônomas,
em paralelo ao cenário das lutas por uma educação libertária, cuja formação crítica e
objetiva, visa um processo crescente de acesso e democratização das Universidades
Públicas.
Abrigado pelo espaço autônomo Casa Mafalda, na região da Lapa (na Zona
Oeste de SP), o Cursinho Livre da Lapa já conta com aproximadamente 20 estudantes
constantes; e dentre esses, em uma maioria absoluta, mulheres, vindas das periferias
tanto da Zona Oeste como de outras regiões da cidade.
Como focam suas atuações em uma vertente libertária, Cursinho, Casa
Mafalda, e pessoas participantes, educadoras, estudantes e militantes, o espaço
preza por uma constante busca por práticas não-machistas, não-sexistas, não-
racistas, não-lesbofóbicas, não-homofóbicas; em suma, não-autoritárias e não-
opressivas.
Sendo assim, além de um constante processo de desconstrução de práticas
proto-fascistas, o Cursinho realiza suas reuniões de gestão em coletivo - pessoas
educadoras e estudantes, que juntas pensam em finanças, organização da casa e sua
dinâmica, organização de estudos de campo, campanhas de arrecadação de fundos
para financiamento do transporte das estudantes que estão com dificuldades
financeiras, entre outras possíveis pautas.
8
Não podemos, porém, nos esquecer do objetivo prático dessa (mais uma)
experiência autônoma de construção de educação libertária: a democratização das
universidades públicas, através da inserção de pessoas das periferias em suas salas
de aula, historicamente elitizadas.
Desde suas fundações, todas as universidades públicas do país foram dirigidas
e orientadas para o projeto capitalista meritocrático ‘de sempre’, incluindo as elites
das grandes cidades em suas salas e criando uma condição segura para que as classes
dominantes, assim, continuem dominando.
Para os guerreiros e guerreiras - estudantes e educadores/as - do Cursinho
Livre da Lapa, isso tem que acabar; hoje, uma das principais vertentes da luta pela
democratização do ensino superior público se dá justamente pela instauração de
cursinhos e mais cursinhos por todas as periferias da cidade. Sempre gratuitos,
sempre voluntários, e sempre populares.
Esta é uma luta imediata, uma vez que, para de fato transformarmos a
educação e o modo como a vemos atualmente, precisaríamos acabar inclusive com o
formato competitivo e individualista da educação (sob os moldes capitalistas) e com
o sistema da meritocracia expresso no modelo de provões absurdos - os vestibulares.
Entretanto, há de se observar com sobriedade a atual conjuntura, e considerar
sempre a frase de Paulo Freire: “a cabeça pensa aonde o pé pisa”. Sendo assim, como
muito dessa luta por uma educação libertária, trata-se de trabalhar o
empoderamento imediato das classes mais pobres; tanto de seus processos
econômicos e culturais, quanto de seus processos pedagógicos.
Com isso, mais e mais pensadores poderão surgir nas periferias das cidades;
pessoas diversas, e das mais diversas áreas. Pensando a partir de seus pontos de
vista, ou seja, da cultura e da realidade em que vivem.
Sendo assim, deixo às pessoas que lerão esse pequeno artigo as palavras
escritas pelos próprios participantes do Cursinho, junto ao convite à participação e
militância por uma educação libertária, trabalhando sempre de maneira coletiva,
sempre autônoma, sempre não-hierárquica. “Você quer se preparar para uma
universidade e procura um cursinho que não pense apenas no vestibular, mas que
contribua principalmente na sua formação crítica”? Então te apresentamos o
Cursinho Livre da Lapa! Muito prazer!
Com um projeto pedagógico alternativo e pensado em conjunto com os alunos,
propomos que o conhecimento vá além da simples decoreba e que atinja uma
reflexão mais profunda e interdisciplinar.
Para quem procura um reforço escolar, está com dificuldade em algum
conteúdo ou simplesmente quer voltar a estudar, as portas também estão abertas!
Se você se interessa em aprender por meio do debate, mande um e-mail para
lapalivre@gmail.com.
O Cursinho Livre da Lapa é comunitário, gratuito e aberto a todas as pessoas.
9
PRINCÍPIOS, OBJETIVOS E ACORDOS MÍNIMOS
Princípios
1. Autonomia
Não submetemos os princípios e objetivos do Cursinho a interferências
externas do ponto de vista político, pedagógico e econômico.
2. Anticapitalismo
O capitalismo como sistema político e econômico busca explorar e dominar as
classes subalternas, nos colocamos contrários a esse sistema e por isso não
baseamos nossas ações em relações monetárias.
3. Horizontalidade
Buscamos construir relações livres de hierarquia, onde as tomadas de decisões
sejam feitas por todas as pessoas envolvidas no processo.
4. Valorização das minorias políticas
Acolhemos as maiorias socialmente marginalizadas e não aceitamos posturas
opressoras e preconceituosas.
5. Conhecimento crítico
Problematizamos verdades preestabelecidas tanto no que diz respeito ao
conhecimento requerido no vestibular quanto ao papel convencional de
educadores/as em sua relação com estudantes.
6. Federalismo
Praticamos uma forma de organização social que busca a autonomia dos
indivíduos nas áreas, das áreas no Cursinho e do Cursinho em relação a outros
Cursinhos, não havendo, assim, uma centralização de poder.
7. Ação direta
A realidade social nos mostra que as autoridades, sejam elas públicas ou
privadas, não irão nos fornecer uma educação crítica e que dê acesso à classe
trabalhadora às universidades, por isso criamos, coletivamente, nossas próprias
condições de luta e os meios pedagógicos para garantir esse acesso, sem esperar
ações de intermediários ou representantes.
8. Apoio mútuo
Pautamos nossas ações na cooperação e na solidariedade entre os indivíduos
que se associam livremente para lutarem pela sua liberdade. O apoio mútuo é
antagônico à competição, que é a base da moral capitalista.
Objetivos
1. Promover uma relação com o conhecimento autônoma, crítica, prazerosa e
significativa.
10
2. Promover o vínculo comunitário com o entorno (bairro e cidade) em especial
com as lutas e movimentos sociais.
3. Estimular uma formação e atuação política libertária e anticapitalista.
4. Buscar autonomia política, pedagógica e econômica.
5. Diminuir ao máximo todo tipo de hierarquia, em especial entre
educadoras/es e estudantes.
6. Problematizar e construir experiências pedagógicas entre educadoras/es e
estudantes.
7. Proporcionar um espaço de formação pedagógica para as/os educadoras/es.
8. Ampliar o acesso da classe trabalhadora à universidade pública, assim como
questionar a própria estrutura e acesso à universidade.
9. Construir vivências de educação libertária aberta a experimentações e que
considere o direito à diferença. Não são aceitas posturas racistas, misóginas,
fascistas, homofóbicas, transfóbicas.
10. Garantir a prioridade de acesso às minorias políticas (pessoas não-brancas,
mulheres, LGBT) e estudantes oriundas/os da escola pública.
11. O cursinho não tem fins lucrativos.
Acordos mínimos
Entendemos que o compromisso com o cursinho é parte de uma construção
tanto para estudantes como para educadores/as. Nesta construção as/os
educadoras/es (em especial aqueles/as que têm maior acúmulo com experiências
horizontais) precisam compartilhar com as/os estudantes essas experiências. Fazer
parte dessa construção é assumir algumas responsabilidades em relação às quais
seremos cobrados coletiva e politicamente, tomando sempre o cuidado de não
personalizar essa cobrança. Essas responsabilidades, que dizem respeito tanto ao
espaço físico, quanto as relações políticas, estão descritas nos acordos mínimos:
 Compromisso com o horário por parte de educadoras/es e estudantes.
(respeitar o horário de término da aula, especialmente a primeira, respeitar o
intervalo e não prejudicar a próxima aula)
 Compromisso com a frequência (seria interessante saber quem não pode
estar todos os dias e se a gente pode fazer algo para que essa pessoa esteja).
 A ajuda para o transporte está relacionada à presença na aula (passar a
lista de presença é responsabilidade de educadores/as).
 Responsabilidade com a limpeza e organização da casa de acordo com os
combinados.
 Compromisso com os estudos a partir de demandas acordadas - (listas
de exercícios, redações, simuladas).
11
 Presença de pelo menos uma pessoa por área (entendendo as/os
estudantes como uma área) na reunião de gestão e pedagógica é um compromisso
para todas as pessoas (estudantes e educadoras/es).
 Se uma área não puder vir deve enviar por e-mail impressões/sugestões/
informes sobre as pautas.
 Todas as pessoas que não puderem estar na reunião devem ler a ata.
 Respeitar os combinados de e-mail.
 Respeito aos princípios e objetivos.
12
PEDAGOGIA LIBERTÁRIA, CONSTRUÇÃO POLÍTICA E
ESTRATÉGIAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO CURSINHO
LIVRE DA LAPA
O Cursinho Livre da Lapa (CLL) é um projeto de educação libertária que visa o
acesso de estudantes de escolas públicas às universidades públicas que acontece na
Casa Mafalda, espaço autônomo libertário localizado na Lapa, em São Paulo. É um
coletivo formado por pessoas de diferentes linhas ideológicas, que partem de
princípios como autonomia e horizontalidade na tentativa de promover uma
experiência de educação transformadora. Por ser um grupo extremamente
heterogêneo, acolher a diversidade mostrou-se parte dos incontestáveis desafios de
uma educação que se propõe diferente da hegemônica. Por outro lado, sabia-se que
seriam encontrados obstáculos na convivência das diferenças. Foi para romper esses
obstáculos que diversas instâncias políticas de decisão foram criadas ao longo deste
primeiro ano de experiência do cursinho.
Imaginou-se que possivelmente surgiriam questões relativas a gênero
(inclusive entre educadores e educadoras), por exemplo, quando se deu prioridade a
mulheres na matrícula. Formou-se então um grupo de discussão de gênero entre as
mulheres - tanto estudantes, quanto educadoras - para que tais questões fossem
colocadas, discutidas e em seguida levadas para o interior do grupo misto para tentar
resolvê-las. Poucas questões surgiram e, ao final, o grupo de mulheres acabou
crescendo e saindo da esfera do CLL.
Ao mesmo tempo, muitas estudantes apresentaram dificuldades para pagar o
transporte de casa ou da escola até o CLL. As próprias estudantes engajadas e
autônomas decidiram organizar festas e saraus para arrecadar dinheiro para o
pagamento do transporte, enquanto uma campanha de crowdfunding - que entre
outras coisas teria essa finalidade - não se concretizasse.
No decorrer do processo, entretanto, foi possível notar que questões das mais
diversas possíveis, para além de gênero e sobrevivência material do projeto, surgiam
e não eram resolvidas. Essas questões apareciam de maneira descuidada e informal,
fazendo com que as propostas de resolução não se mostrassem tão eficazes.
Inúmeras vezes educadoras e educadores se colocaram abertamente ao diálogo, o
que não foi o bastante. Notou-se que mostrar abertura para ajudar a resolver os
problemas não necessariamente faz com que o outro se sinta à vontade para
questionar, para se colocar ou apresentar críticas, sejam educadores, educadoras ou
estudantes. Por isso, sentiu-se a necessidade de criar outros canais e mecanismos de
diálogo e resolução de conflitos para que de fato as coisas fossem ditas e de alguma
forma os ruídos fossem diminuindo ao longo do tempo.
13
Surgiram assim dois novos meios de lidar com os problemas. O primeiro deles
é a caixinha de sugestões, canal anônimo para quem não se sente confortável em
falar abertamente. O outro meio é a Comissão de Mediação Pedagógica, que tem
como finalidade a partilha de dificuldades e o diálogo como caminho para se tentar
superar os conflitos. Mesmo com a criação desta Comissão, fez-se necessário reiterar
a crença na resolução de conflitos cara a cara, que a Comissão era apenas um canal
de auxílio no que tange problemas, mas que o ideal seria que ela não existisse. Como
um suspiro aliviado, ao nascer a comissão, questões começaram a aparecer. Ao se
deparar com o que era dito ou escrito, a Comissão procurou as partes envolvidas na
tentativa de conversar com elas. As questões sempre foram colocadas como
políticas, na tentativa de não personalizar nenhum problema numa pessoa ou em
outra, sempre entendendo que as questões pedagógicas devem ser tratadas de
maneira ampla evitando desgastes emocionais e desentendimentos.
Em setembro, surgiu uma denúncia aberta de machismo e racismo em uma
página de divulgação de um show de apoio à já citada campanha de crowdfunding. A
denúncia foi feita por uma mulher negra contra um homem branco de uma das
bandas que tocariam nesse evento. Ela e ele nunca fizeram parte do cursinho, e o CLL
só passou a ter relação com o episódio a partir do momento em que a denúncia foi
feita na página do evento da campanha. Enquanto o CLL se mobilizava diante da
denúncia e tentava entendê-la para propor algum encaminhamento (com as
mulheres do cursinho indo encontrar a denunciante para ouvi-la) a banda retirou-se
do evento. Em uma reunião de mulheres do CLL na Casa Mafalda, marcada para
mediar a denúncia, uma educadora cobrou politicamente uma estudante com
relação a uma postura que esta havia tomado numa outra ocasião. A estudante, ao
se sentir desconfortável com a situação, buscou amparo entre amigas de fora do
cursinho. Em seguida, na mesma noite, três delas se dirigiram à Casa Mafalda,
interromperam uma reunião mista e, sentindo a cobrança feita como uma agressão
racista, agrediram física e verbalmente a educadora. Diante desse novo problema, foi
marcada uma nova reunião, agora com os coletivos das três amigas da estudante e os
coletivos da educadora. Os objetivos dessa reunião foram expor os fatos, debatê-los
politicamente e buscar, pelo diálogo, maneiras de garantir que novas opressões e
agressões não fossem cometidas.
Tanto durante o processo de mediação em que surgiu a denúncia de agressões
machista e racista, quanto na busca por um entendimento entre as partes envolvidas
na nova acusação racista e na agressão física e verbal, nós, educadoras, educadores e
estudantes do CLL, buscamos tratar todas as decisões políticas como prioritárias e
anteriores a relações de ordem pessoal. Acreditamos que as relações de poder, por
serem social e historicamente construídas, trazem em si práticas opressoras, as quais
podem ser reconhecidas e enfrentadas de forma coletiva, horizontal e sem
personificar problemas. Quando tais problemas decorrem de um projeto libertário-
14
pedagógico como o CLL, é fundamental que sejam encarados de um ponto de vista
não só político, mas também pedagógico - nunca pessoal.
Não temos a intenção de esconder a acusação de racismo. Estamos em pleno
processo de discussão sobre ela, pois cabe a nós essa responsabilidade. Também não
podemos esconder as consequências do que aconteceu até o momento: depois das
acusações e agressões, militantes se afastaram de coletivos, algumas estudantes
abandonaram as aulas, houve desentendimentos entre esses coletivos. Estes, entre
outros elementos, desarticulam as lutas contra opressões. Neste momento, temos
um grande ônus a ser encarado seriamente, que são estes afastamentos de mulheres
negras, brancas e estudantes de escola pública dos espaços políticos. E nos fica a
pergunta: quem ganha com isso?
Nossa proposta política é de diálogo no sentido de construir relações
libertárias com pessoas que tenham a mesma intenção; nossa ideia não é conciliar
classes, raças, sexualidades, gêneros e usar um pretenso purismo ideológico como
cortina para opressões que tem sido sistematicamente minimizadas nos mais
diversos contextos e que poderiam estar sendo reproduzidas em nosso coletivo.
Nossa intenção é o avanço de uma discussão política que não se limite a apontar as
diferenças, mas busque a criação coletiva de mecanismos que impeçam que tais
diferenças justifiquem velhas e novas formas de dominação de qualquer pessoa
sobre outras. Seremos incapazes de avançar nessa discussão se não estabelecermos
parcerias com outros coletivos. Acreditamos que a criação de canais de diálogo para
ouvir e denunciar incômodos e agressões contribuem no processo de superação das
opressões. Todas elas. Nesse sentido, negar o diálogo como forma primeira de
resolver atritos é minar as possibilidades de nos revermos e continuarmos
construindo junto.
Nós não abriremos mão do objetivo ao qual o CLL tem se proposto desde sua
origem: a construção política coletiva que tenha em seu horizonte uma
transformação social integral.
15
REFLEXÕES SOBRE O I CICLO DE FORMAÇÃO DO CURSINHO
LIVRE DA LAPA (OU SOBRE COMO O PESSOAL TAMBÉM
IMPORTA)
Durante o mês de agosto de 2015, aconteceu na Casa Mafalda, o I Ciclo de
Formação do Cursinho Livre da Lapa. Os encontros aconteceram em quatro noites
(alternadas entre quarta e terças feiras) e sobre estes traço algumas considerações.
A primeira consideração que me ocorre diz respeito à riqueza do ciclo e o
dedicação dos educadores envolvidos no processo de organização e participação
deste. Posto que este é o primeiro ano do Cursinho Livre da Lapa e que este grupo de
pessoas pouco se conhecia há um ano, o engajamento no ciclo, aparece como um
sinal de entusiasmo com o projeto em si e isso se refletiu também nos debates.
No primeiro dia do ciclo (05-08), nossa convidada foi a Marina Mauymi que
veio nos contar sua experiência nos Bachilleratos populares na Argentina. Ela leciona
português e artes na Escuela Libre de Constituicón (na região metropolitana de
Buenos Aires).
Os Bachilleratos na Argentina são regulamentados pelo Ministério da
Educação, o que garante certificação ao final do curso. No caso da escola na qual
Mayumi leciona isso se torna fundamental para a manutenção de estudantes, mas
não atrapalha (às vezes até garante) a autonomia das aulas.
Ali se preza por uma educação não hierárquica (nem entre educadores, nem
entre educadores e estudantes). A estrutura de organização é feita por reuniões
pedagógicas, assembleias nas quais estudantes também participam. As aulas são
pensadas por duplas pedagógicas (para garantir uma pluralidade de olhares sobre o
mesmo assunto).
Na escola não existe a figura de um diretor e eles se organizam de maneira
autônoma no espaço onde também se organiza a FLA (Federação Libertaria
Argentina) e isso implica em também pagar o aluguel do espaço fazendo festas,
eventos e os educadores também contribuem financeiramente com o que podem
por mês.
Os educadores trabalham em outros lugares e não ganham nada para lecionar
na Escuela Libre de Constituición. O projeto é construído de maneira bem horizontal,
não existe uma avaliação formal, existem avaliações coletivas.
Ao final desta fala, o debate nos mostrou muitas aproximações entre o nosso
projeto e o dela. Começamos a pensar em quais são os limites da nossa atuação
pedagógica na medida em que os egressos escolhem caminhos para suas vidas
profissionais distintos dos quais nós acreditamos. Pensamos que parte disso pode
estar ligado também à autonomia, já que é isso que estamos buscando nesse tipo de
educação.
16
Pensamos também que escolhas profissionais muitas vezes esbarram em
limitações socioeconômicas e que isso está fora do nosso alcance no final das contas.
Mas podendo contribuir para uma visão de mundo distinta do status quo talvez seja
o bastante.
No segundo encontro (11-08) o Rodrigo Rosa da Biblioteca Terra Livre falou
sobre experiências em educação libertária e da experiência das Escolas Modernas.
Sua fala, além de apresentar princípios da educação anarquista, nos trouxe questões
como: estar dentro do sistema educacional ou criar novas escolas? Qual o papel
social da escola?
Num projeto anarquista, a escola faz parte de todo o processo revolucionário,
isso implica numa escola necessariamente livre, autogerida e laica, com saídas de
campo para se conhecer o entorno, que preze o desenvolvimento e autonomia das
crianças (ou estudantes de maneira geral) e relações mais horizontais entre
estudantes e educadores.
Para um projeto assim acontecer é necessário que se consiga garantir
autogestão pedagógica, econômica e política. Atualmente existe uma escola que se
tenha notícia - a Paideia, na Espanha - que consegue garantir sua autogestão em
todos esses aspectos e que se considera anarquista.
Rodrigo apresentou alguns exemplos de escolas anarquistas que funcionaram
em algum momento da história e apresentou os fundamentos da escola moderna,
pensados por Ferrer. Estes fundamentos baseiam-se na colaboração, na observação e
na experiência, na ausência de prêmios e castigos (o que desestimula a competição
entre estudantes), a ausência de seriação e avaliações, a ideia de coeducação, pois
no processo educativo enquanto educadores aprendemos o tempo inteiro. Além de
colocar o estudante não no papel de receptor do conhecimento, mas de autor da
própria aprendizagem.
Durante o debate surgiu a questão sobre como abrir uma escola nesses
parâmetros. Quais são os limites legais para isso? Concluímos que diante da nossa
legislação talvez não fosse possível, pois certamente esbarraríamos em alguma
limitação (econômica ou política provavelmente, já que a LDB garante autonomia
pedagógica ao menos). Mas, ao reunir no mesmo lugar, numa terça feira à noite, um
número grande de pessoas interessadas em pensar num projeto de educação
realmente autônomo, se faz notar a urgência da criação de espaços onde caibam
essas discussões.
O terceiro encontro (19-05) foi com o João Branco, discutindo o levante de
professores em Oaxaca, no México em 2006. Sua fala trouxe inúmeros aspectos que
dialogam com os outros dois encontros e vão além. Ele contextualizou o levante de
Oaxaca e pontuou que no México, a ideia de revolução vem geralmente
acompanhada da luta dos povos por continuar vivendo suas tradições e criticou o
17
fato do termo revolução ter sido apropriado por setores da esquerda que disputam a
tomada do poder. Mas, refletiu, não é necessário tomar o poder.
Em Oaxaca isso faz todo o sentido. Depois de uma greve de professores que foi
fortemente apoiada pela população local a região se transformou numa comuna
autogestionada e durante este levante, que durou seis meses, a comunidade passou
a se organizar como os indígenas (maioria da população da região).
Segundo João, no filme “Un poquito de tanta verdad”, que mostra o panorama
político do levante, os educadores perceberam que as barricadas foram “a expressão
máxima de um processo educativo”, uma vez que não seria possível mais, a partir do
levante, escola e vida comunitária estarem dissociadas. Sendo aquela, uma
continuação desta e não um rompimento. Neste sentido, o processo educativo é um
processo coletivo, social.
A partir dali a importância para a cultura dos povos originários só aumentou no
processo educativo e isso nos coloca luz sobre o que entendemos por educação
ocidental (que João classificou como políticas de terror), pois que costuma ser
“etnocida”, “culturicida”, já que arruína a autoestima dos povos e coloca seus
saberes como de segunda ordem, ao colonizar a vida material e seu imaginário,
inclusive sobre si mesmos.
O último encontro (25-08) foi destinado para nós apresentarmos nossa
experiência no Cursinho Livre da Lapa. Dividimos nossa fala em: histórico, como tem
sido esse processo do ponto de vista dos educadores e das estudantes.
Eu e a Elo falamos um pouco sobre o processo da Casa Mafalda começando a
se entender como espaço educativo: não é isso, no fundo, um espaço autônomo? E
sobre como pensar no cursinho foi pensar com os estudantes desde o início. A ideia
do fazer junto nasceu com o projeto, ou o projeto nasceu dela? Não sabemos. Está
tudo muito imbricado agora. Além disso, ou justamente por isso, nesse projeto cabe
o desajuste, cabem aqueles que não se adequam na escola tradicional.
Juninho pontuou que pra ele o cursinho é encarado como um processo de
formação política, que propõe uma relação diferente com o ensino e a relação forma-
conteúdo das aulas também é outra. Este é um espaço de formação para os
educadores também. Zé concordou e acrescentou que a forma como fazemos as
coisas ali são tão diferentes, que muitas vezes é difícil. Pois não estamos
acostumados a lidar com os próprios problemas sem que um “adulto” resolva, por
isso a resolução de problemas ainda acaba muitas vezes recaindo sobre os
educadores.
Giovana colocou que para ela a relação horizontal e próxima com os
educadores e a percepção de que as aulas e questões pertinentes ao cursinho são
realmente pensadas em conjunto com os estudantes são os fatores mais importantes
a serem destacados. Virgínia colocou como fundamental o não estímulo à
competição que se tem nos cursinhos tradicionais, concordou com a Giovana em
18
relação à construção coletiva das aulas ser um ponto fundamental no processo, além
de chamar atenção para as saídas de campo que ela achou que complementaram os
conteúdos das aulas. Ela ressaltou também a importância do respeito que se tem
pelos indivíduos neste espaço e de como tem aprendido a respeitar o próprio tempo
no que diz respeito ao vestibular: sem crises, sem cobranças, quando tiver que ser,
será!
Rafa trouxe também um relato sobre como se aproximou do cursinho e sentiu
ali em espaço de liberdade. Ele contou que no ensino formal ele se sentia culpado
por não aprender, mas, disse, “aqui eu aprendo, aqui a gente troca, aqui é um lugar
que agrega na minha vida”. Pra ele aquele lugar é um experimento da liberdade, de
acolhimento, de experiência que transforma.
As falas tanto dos educadores, como - e principalmente - das estudantes
refletiu de alguma maneira questões que apareceram nas falas dos convidados dos
encontros anteriores: a ideia de horizontalidade nas relações, de construção coletiva,
de existir de fato possibilidades para outro tipo de educação e que ela pode
funcionar.
Assim, com sucessivos relatos pessoais o debate seguiu e todos sempre
pontuavam que o relato seria pessoal, como se isso fosse um problema. Foi o Danilo
Mandioca que ponderou: ali o pessoal, o individual é importante. Pra gente importa
quem é cada um, quais as vontades e as dificuldades, os medos. Os relatos pessoais
são importantes ali, porque fora eles não são. Fora eles são tolices, fora cada
indivíduo não passa de um número e dependendo de onde esse “número” morar,
dependendo da classe social, da cor da pele ele vira uma estatística. E a maioria dos
nossos estudantes são passíveis de entrar pras estatísticas. No mundo que a gente
quer construir os indivíduos, são, antes de tudo. Eles tem rosto, tem nome, vontades.
E claro, como pontuo o Juninho depois, ali, com aquele pequeno número de
pessoas somos exclusivos. Somos poucos. É preciso voltar à pergunta feita pelo
Rodrigo Rosa e reiterada pelo próprio Juninho: como estar dentro do sistema
educacional e fazer diferente? Como transformar a educação formal caminhando na
direção que a gente acredita? Como garantir que a educação pública seja de fato
transformadora? Como transformar nossas relações com a educação para fazer do
viver uma experiência de educação integral e coletiva?
Luara Carvalho - educadora da área de história do Cursinho Livre da Lapa
19
COMISSÃO DE MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA
Comissão de Mediação Pedagógica surgiu para suprir a falta de um mecanismo
capaz de mediar conflitos entre estudantes, educadores e educadoras do Cursinho
Livre da Lapa.
Apesar da existência de reuniões pedagógicas e de gestão, caixinha de
sugestões, reuniões de mulheres e até mesmo laços de afeto e confiança entre as
pessoas do Cursinho, que poderiam parecer suficientes para a resolução de
problemas e conflitos, no meio do primeiro ano de existência do projeto percebeu-se
que essas instâncias não supriam a necessidade de superar obstáculos nos mais
diferentes tipos de relações. Entende-se por obstáculos: metodologia de ensino,
didática e outros aspectos pedagógicos, dificuldade de reconhecer ruídos na
comunicação, falta de predisposição ao diálogo, diferenças de visão de mundo,
dificuldade de expressar incômodos e não reconhecer no coletivo pessoas de
confiança para mediar conflitos.
A Comissão foi procurada para ajudar algumas vezes e mediou caso a caso.
Segue alguns relatos de como a Comissão atuou.
Houve casos de estudantes não sentirem abertura para participar ativamente
das aulas, ou de notarem que professores de algumas áreas se preocupavam mais
em avançar com o conteúdo do que em garantir que todas as pessoas estivessem
acompanhando as aulas sem dificuldades. Nesses casos, a Comissão comunicou o
incômodo aos professores, que se dispuseram a rever suas práticas em sala de aula.
A Comissão não teve uma devolutiva das estudantes sobre todos esses casos, no
entanto as que vieram foram positivas.
Houve também mais de um caso de educadores/as mostrarem incômodos com
relação a outros educadores/as da mesma área. A Comissão, após conversar
individualmente com eles e elas, reconheceu nos incômodos diferenças
metodológicas e dificuldade de comunicá-los sem ruídos aos seus pares. A proposta
para resolver esses problemas foi um diálogo entre eles e elas mediado por pessoas
da própria Comissão. Infelizmente uma dessas conversas não aconteceu, enquanto a
outra se deu no final do período de aulas e, por ter acontecido tão tarde, não houve
um retorno para saber como essa relação vem se desenvolvendo.
Na caixinha de sugestões, cujo cuidado ficou a cargo da Comissão, apareceram
bilhetes anônimos, tanto pautando conflitos e diferenças de visão de mundo quanto
brincadeiras e recados evasivos como “sei lá, tem muita coisa errada”, aos quais a
Comissão não deu nenhum encaminhamento prático. Em um desses bilhetes, que
apontou a necessidade de uso de linguagem não-sexista por educadores em sala de
aula, disparou-se uma mensagem para a lista de e-mails informando o incômodo sem
que a Comissão interferisse na situação.
20
Outras pessoas solicitaram a intervenção da Comissão. Não será feito o relato
de todos os casos pela dificuldade de contá-los sem expor as pessoas que pediram a
mediação. Pode-se dizer que em todos os casos a Comissão de Mediação Pedagógica
frisou sua finalidade de partilhar dificuldades e de promover o diálogo como caminho
para se tentar superar os conflitos. Mesmo com a criação desta Comissão, fez-se
necessário reiterar a crença na resolução de conflitos cara a cara, que a Comissão era
apenas um canal de auxílio no que tange problemas, mas que o ideal seria que ela
não existisse. Houve um momento em que as pessoas da Comissão se sentiram no
limiar entre a mediação e a intervenção direta sobre o problema. Percebeu-se que,
sem um cuidado de apenas ajudar a apontar soluções ao invés de solucionar o
problema da relação alheia, corria-se o risco de a Comissão fazer o papel de julgar os
casos e apontar sentenças. Esse cuidado deve ser permanente a fim de que não se
assuma o papel de serviço terceirizado de resolução de problemas.
Outra preocupação da Comissão foi o de pautar a mediação dos conflitos em
termos políticos e pedagógicos. Político no sentido de ver nas relações de poder
vícios que impedem a construção coletiva de um projeto de pedagogia libertária e
que prefigure a sociedade como gostaríamos que ela fosse; e pedagógico por se
tratar de uma instituição que tem em seu horizonte o processo de ensino e
aprendizagem com o objetivo de pessoas terem uma formação política orientada
para a transformação social além de serem capazes de passarem no vestibular. A
ideia foi evitar que, de maneira espontânea, os conflitos pudessem ser encarados
como problemas pessoais e não ter a mediação orientada para a construção política
a qual o projeto do Cursinho se propõe.
Vale apontar que participar da mediação de conflitos de pessoas do Cursinho
fez com que as pessoas da própria Comissão repensassem suas relações em termos
pedagógicos e o políticos, o que sugere que há pedagogia não apenas na sala de aula
ou em reuniões de educadores/as e estudantes. Essa avaliação reforça a necessidade
de a Comissão ser rotativa - prevê-se a mudança de seus membros a cada seis meses
- não apenas para que outros olhares sejam lançados sobre os problemas que
permeiam as relações, mas também para que todas as pessoas possam se perceber
como capazes de identificar em si suas responsabilidades nesses relações e de assim
se empoderarem para a construção de projetos políticos como o do Cursinho.
21
QUANDO A VONTADE DE IGUALDADE
REPRODUZ PRIVILÉGIOS:
A RELAÇÃO ESTUDANTE-EDUCANTE
O ideal libertário prevê relações baseadas em apoio mútuo e solidariedade. Em
uma sociedade em que a violência é banalizada e oprimidos e opressores se
misturam, fazer com que nossas relações sejam mais justas se torna um processo
difícil. Reinventar a moral humana, como proporia Bakunin, e criar relações em que
não caibam opressões de nenhum tipo, são em si tarefas hercúleas diante dos
aparelhos ideológicos e repressivos contra os quais temos que lutar; pior fica quando
subestimamos essas tarefas. Subestimar a necessidade de mecanismos que garantam
relações livres é fazer o jogo de quem nos oprime. Quando não premeditamos mudar
nossas relações, perdemos o cabo-de-guerra da transformação social e ajudamos a
consolidar ainda mais a ordem das coisas.
A pedagogia criou o conceito de relação professor-aluno (que poderia abranger
maior pluralidade se chamada de relação estudante-educante). Como toda relação,
não é possível isolar da sociedade em que se insere a relação entre quem educa e
quem aprende. Assim, quando as partes não tomam os devidos cuidados, a relação
estudante-educante pode reproduzir machismo, sexismo, homotranslesbofobia,
fascismo, etarismo e qualquer outra discriminação, preconceito ou opressão que
alicerça nosso cotidiano.
Além dos fatores sociais, externos (mas não menos conectados) à educação
formal, que regulam a relação entre educadores, educadoras e estudantes, há um
elemento inerente ao processo de ensino e aprendizagem: é a intencionalidade
intrínseca aos papéis dessa relação. Coberto de razão estava Paulo Freire ao
ressignificar os papéis de educador e educando, renomeando-os para educador-
educando e educando-educador: é impossível não aprender quando se ensina, e
quem aprende sempre tem algo a ensinar a quem educa. Uma leitura descuidada de
Freire pode sugerir que os atos de educar e de ser educado se misturam, se
confundem a ponto de serem os mesmos. No entanto, Freire nunca negou a
intencionalidade de educadores e educadoras. Tal intencionalidade é nitidamente
exposta em sua análise da ética do educador em “Pedagogia da autonomia”.
A intenção de educar é o que diferencia educação de educação formal, faz com
que a pedagogia seja uma área de conhecimento. Assim, os saberes pedagógicos,
mesmo sendo compartilhados com estudantes, fazem com que educantes, que
detêm esse conhecimento, tenham um papel necessariamente diferente em sua
relação com estudantes. Assim, a relação não pode ser em si horizontal, uma vez que
os saberes delineiam a diferença entre os papéis dos dois lados da relação.
22
Reconhecer as diferenças e as assimetrias entre os papéis de estudantes e
educantes não implica necessariamente em dar justificativa a pretensos privilégios e
abusos por parte de educadores e educadoras. É fundamental ter mapeadas tais
diferenças justamente para não transformá-las em privilégios. Por outro lado, ao
negligenciar a assimetria entre os papéis, corre-se o risco de tornar a relação abusiva.
Decorre dessa constatação a responsabilidade de quem está em uma posição
reconhecida de privilégio construído socialmente, como é o caso de quem educa, de
impedir que a diferença entre papéis se transforme em privilégio.
No Cursinho Livre da Lapa, já houve em seu um ano e meio de história algumas
situações em que a falta de cuidado de educadores e educadoras em sua relação com
estudantes criou problemas ao projeto como um todo.
Uma delas aconteceu em setembro de 2015. Na ocasião, educadores e
educadoras perceberam que estudantes iam ao Cursinho, mas não entravam nas
aulas; não seguiam a orientação de fazer exercícios em casa; e, em alguns casos,
desqualificavam momentos de aprendizagem com atitudes que sugeriam pouca
responsabilidade com o objetivo de aprender. No olhar dos educadores e das
educadoras, estudantes de maneira geral pareciam não ter percebido sua
responsabilidade com a própria aprendizagem, não estavam cientes de que,
enquanto partes da relação, deveriam ter o mínimo comprometimento com o
aprender e gastar alguma energia para chegarem ao objetivo, seja ele passar no
vestibular ou se relacionar de maneira diferente do que lhe é imposto em outros
espaços.
Educadores e educadoras, depois de conversarem entre si e entenderem que
esse sentimento de desresponsabilização de estudantes era comum a todas,
resolveram não esperar uma nova reunião (ou assembleia) mensal para tocar nesse
assunto e resolveram chamar uma reunião geral extraordinária. Essa reunião
aconteceu durante o horário de uma aula, a fim de garantir a presença de um maior
número de estudantes. Na reunião, estudantes ouviram educadores e educadoras
contarem o que viam acontecer nos últimos meses, como achavam negligenciadas as
responsabilidades com a própria aprendizagem e que provavelmente havia uma
reprodução, de maneira irrefletida, de práticas da escola tradicional por parte de
estudantes.
A resposta de estudantes àquela reunião, acontecida em setembro, veio na
última hora do encontro de fechamento e avaliação do ano, chamado fórum, em
dezembro. Estudantes contaram terem se sentido acuadas e acharam que
educadores e educadoras foram “blocadas” à reunião para fazer a cobrança, como se
estivessem abusando de sua posição de educadores.
Esse incidente sugere ruídos na comunicação entre educantes e estudantes.
Primeiro porque parece não ter ficado claro que não é um problema em si haver
cobranças em um diálogo; afinal, se há responsabilidades a serem cumpridas a fim de
23
que as expectativas de aprendizagem e organização de qualquer projeto sejam
atingidas, todas as pessoas envolvidas devem cumprir com seus papéis, de modo
que, quando não cumprem, acabam por colocar em risco os objetivos a serem
atingidos. Portanto é fundamental haver cobrança para que se perceba como as
responsabilidades de estudantes e educantes é igualmente importante para o avanço
do Cursinho. Afinal, apoio mútuo e solidariedade só existe quando compartilhados e
só se concretizam quando a responsabilidade é mutuamente assumida.
Outro ruído é o de que educadores e educadoras não deveriam conversar
entre si enquanto uma frente e “blocarem”, chegando a um consenso entre si. O
equívoco nessa ideia surge quando não se reconhece a diferença entre os papéis e,
além disso, pressupõe-se que tal diferença implica de maneira inequívoca em
privilégios, que se concretizou na cobrança sentida pelas estudantes. Irresponsável
seria negar as diferenças e ignorar que as pessoas partem de histórias diferentes para
cumprir coletivamente com um dado objetivo. Confundir o princípio de igualdade
com o de equidade é um erro recorrente no meio libertário, e cabe a quem
reconhece a diferença entre esses dois princípios realçá-los para que a igualdade não
se torne opressão.
É elementar que mecanismos sejam criados em nossos projetos para que não
reproduzamos opressões. Para tanto, precisamos olhar para o que já foi construído,
avaliar o que estamos construindo e realinhar sempre que possível nossos princípios
aos nossos objetivos. Não se chega aos objetivos de maneira espontânea, e
solidariedade e apoio mútuo não nascem naturalmente de nossas práticas. Transpor
a ideia de relações mais justas à relação entre educantes e estudantes não é tarefa
fácil, e exige constante cuidado para que essa relação se torne de fato horizontal,
uma vez é impossível fugir à diferença entre aos papéis que dela fazem parte. A
defesa da diferença entre os papéis de educantes e estudantes não pode ser
confundida com os tradicionais abusos e privilégios de professores e professoras em
ambiente escolar. Se não deixarmos clara tal diferença, faremos com que a
inexistência de mecanismos que promovam a equidade permita a reprodução da
opressão e dos privilégios de quem educa, que têm sistematicamente sido
fantasiados de igualdade.
Zé Almeida - educador de Física do Cursinho Livre da Lapa
24
DIVISÃO DE TAREFAS ENTRE
CURSINHO LIVRE DA LAPA E CASA MAFALDA
O Cursinho Livre da Lapa foi criado por pessoas da gestão da Casa Mafalda que
sentiram a necessidade de criar um projeto de pedagogia libertária que pudesse
consolidar alguns dos objetivos da Casa, como fazer com que pessoas do bairro se
visitassem e frequentassem o espaço, deixar o período da tarde menos ocioso,
aumentar o tempo disponível da Casa a quem quisesse frequentá-la e criar um
espaço pedagógico de formação política, com espaço compartilhado de gestão e
tomada de decisões.
Um ano e meio depois de seu início, nem todos esses objetivos foram
concretizados. O Cursinho é constituído por estudantes que em geral pegam ônibus
para chegarem a Casa. As decisões políticas têm sido tomadas coletivamente. No
entanto, no momento em que a gestão da Casa Mafalda, constituída atualmente por
três pessoas que entraram na gestão há menos da metade do tempo de vida desse
espaço autônomo, são sensíveis alguns problemas com relação à gestão e à
participação do Cursinho na tomada de decisões na Casa.
A gestão da Casa Mafalda tem uma história conturbada. O espaço foi criado
para ser um espaço de formação e divulgação político-cultural e sede do time de
futebol de várzea Autônomos FC, o qual a geria. Os jogadores do time, responsáveis
pela compra do ponto comercial (Espaço e Estúdio Fábrica Lapa) que existia no
imóvel alugado da Rua Clélia, 1745, propuseram organizar o espaço de maneira
estritamente horizontal, sem criar qualquer tipo de órgão ou estrutura organizativa
para dividir as tarefas e nomear responsáveis por cada uma delas. Como
consequência da inexistência de qualquer estrutura que cobrasse a responsabilidade
por limpeza, cuidado com estúdio, bar, compra de bebidas para festas etc., algumas
pessoas naturalmente passaram a cumprir com essas tarefas enquanto grande parte
do grupo se isentava de assumir algum papel na gestão do espaço. Nos primeiros
meses de vida, essa rotina, que sobrecarregava as pessoas mais frequentes no
espaço (principalmente as duas que nessa época ocupavam um quarto como
moradia temporária), levou à criação de reuniões de gestão, abertas a quem quisesse
participar da Casa. As reuniões eram abertas, e quem era do time não tinha qualquer
obrigação de participar delas ou assumir qualquer tipo de responsabilidade, por mais
que todos eles frequentassem o espaço em seus eventos e atividade, e até
promovessem os próprios eventos e encontros do time. As pessoas que costumavam
participar dessas reuniões, constituída por parte do time e por outras que não eram
do Autônomos, assumiriam as responsabilidades inerentes ao cuidado com a Casa.
Nascia o embrião do coletivo gestor da Casa Mafalda, corpo que, em 2013,
assumiria uma identidade absolutamente independente do time. Tal identidade foi
em parte determinada pela concentração de responsabilidade nas mãos de poucas
25
pessoas, que tiveram que tomar as decisões para garantir a sobrevivência da Casa.
Esse grupo passou a se reconhecer como um coletivo quando, estando a Casa em
uma de suas crises financeiras e de organização, propôs o encerramento das
atividades no espaço. O time não mostrou interesse em continuar tocando o espaço
e se desresponsabilizou por dar sequência às atividades. Nesse instante, o grupo se
autodefiniu como coletivo gestor da Casa Mafalda. O espaço deixava assim de ser a
sede do Autônomos FC.
Desde então, o coletivo gestor assumiu as responsabilidades da organização
espacial e financeira do espaço. Apesar de alguns indivíduos e coletivos terem
estabelecido parceria e usassem o espaço (como fazia um estúdio sublocado para fins
particulares, a Fanfarra do M.A.L., reuniões diversas, o coletivo bagu.io, que criou em
um dos quartos um espaço para pensar em tecnologia etc.) a responsabilidade pela
manutenção do espaço físico (pintura de paredes, vazamentos, infiltrações) e
pagamento de contas sempre se concentrou nas mãos do coletivo gestor. Tal
responsabilidade foi uma das heranças deixadas pelas reuniões de gestão que
precederam o coletivo. Raros foram os movimentos de compartilhar essas
responsabilidades. Em parte, porque ninguém tinha muito interesse em assumir a
gestão financeira e de espaço físico de um projeto (não é à toa que poucos coletivos
têm seus próprios espaços). Além disso, provavelmente as pessoas não previram os
problemas de concentrar responsabilidades – por mais que em a má divisão de
tarefas e a sensação de prestação de serviços de organização e gestão já tivesse sido
percebida como um dos motivos que levaram à separação entre a Casa e o time
Autônomos e Autônomas FC.
O Cursinho trouxe novos ares à Casa. Novas pessoas frequentando o espaço
parecia impor uma nova dinâmica à organização do espaço. Apesar dessa
expectativa, o Cursinho sempre teve dificuldade de se reconhecer (e como
consequência ser reconhecido) como um coletivo, o que tornava nebulosa sua
relação com a Casa. Como o coletivo gestor da Casa poderia fazer algum tipo de
cobrança ao Cursinho se este era composto por pessoas que não assumiam todas as
tarefas, se não tinha existia estrutura de representação delegada ou se, para piorar,
não se chegou a ter confiança de que todas as pessoas envolvidas, estudantes e
educantes, compreendiam o projeto em que se inseriram? Embora o Cursinho se
organizasse em reuniões mensais, as tarefas muitas vezes deixavam de ser
executadas por falta de pessoas que quisessem ou pudessem se responsabilizar por
elas – assim como acontecia no início da história da gestão da Casa Mafalda.
No início do segundo ano do Cursinho, houve um crescimento político em sua
organização. Como ao final de 2015 o diálogo como forma de resolução de
problemas parecia ainda ser subestimado por estudantes, educadoras e educadores,
o que sugeria que não se concretizara o desejo de o Cursinho ser um espaço de
formação política e diferenciado no que diz respeito à forma em que as decisões são
26
tomadas, optou-se por fazer assembleias semanais. O aumento na frequência de
reuniões poderia encurtar o caminho para o objetivo de as pessoas poderem
conversar mais e se construírem politicamente, dada a ausência de fóruns com esse
caráter em outros espaços de nosso cotidiano.
A inexistência de estrutura organizativa parece ter resultado em pessoas, em
especial estudantes, mais engajadas com o projeto do Cursinho. Por discutirem
semanalmente a importância de participarem da organização das aulas e de todas as
tarefas que decorriam de estarem ali em um espaço autônomo, rapidamente as
estudantes se apropriaram do espaço e, conforme sentiam a demanda de ajudarem
na gestão da Casa, cumpriam com as tarefas aparentemente mais relevantes, como
limpeza e realização de eventos para ajudar a pagar o aluguel do espaço, além de,
obviamente, gerirem o próprio Cursinho. Para quem não conhecia a dinâmica e a
história da Casa Mafalda, foi difícil desvencilhar os dois projetos e compreender que
havia uma divisão de tarefas assimétrica e, portanto, papéis diferentes entre quem
frequentava e usava o espaço. Embora coletivo gestor da Casa e Cursinho tenham
pessoas, objetivos, calendários e geografia comum, eram corpos e projetos distintos.
Naturalmente, estudantes do Cursinho que não tiveram qualquer estímulo para
reconhecer tais diferenças se sentiram como pertencentes a um único projeto, em
que Casa e Cursinho se misturavam.
A confusão na divisão de papéis só foi percebida com o anúncio feito pelo
coletivo gestor de que iria ser dissolvido por diversos motivos, sendo um deles a falta
de interesse das três mulheres que então o constituíam em continuar a gerir um
espaço com uma história desalinhada ao interesse das três. O coletivo gestor tinha
planos de se tornar um coletivo feminista, e convidou o Cursinho e outros coletivos
para dividirem a gestão de um novo espaço autônomo, em outro endereço. As
estudantes, graças a alguns ruídos na comunicação dessa decisão, mostraram-se
decepcionadas e acharam que a Casa e o Cursinho iriam acabar. Para piorar, não
participaram dessa decisão depois de terem dedicado esforços para manter o
espaço, com festas, limpeza, trabalho, dinheiro...
Mais uma vez a má divisão de tarefas parece ter sido mal feita na Casa e
causado transtornos a quem se envolveu com a gestão da Casa Mafalda e, agora,
também do Cursinho. Em reuniões realizadas para se decidir sobre como o Cursinho
deveria agir nessa transição para um novo espaço autônomo, chegou-se ao consenso
de que um coletivo gestor do espaço, com responsabilidades diferentes de outros
coletivos que o utilizam, é problemático por concentrar em si tarefas que levam ao
desgaste das relações, reproduzindo a cultura de prestação de serviços
(essencialmente exploratória) que é um dos maiores alvos de críticas do meio
anarquista e libertário. Conclui-se nessa reunião que a gestão do espaço
(independente de haver ou não a mudança para outro imóvel) deve ser
27
compartilhada entre coletivos – o que na realidade, na visão de estudantes, era o que
deveria estar acontecendo desde sempre.
Fica o aprendizado de que a má divisão de tarefas, a falta de clareza de papéis
e o não-reconhecimento da assimetria das relações pode levar a desentendimentos
que podem inclusive por nosso projetos coletivos em risco.
Zé Almeida - educador de Física do Cursinho Livre da Lapa
28
RELATOS DE ATIVIDADES DAS ÁREAS EM 2015
BIOLOGIA
A equipe de Bio era composta por duas educadoras, uma delas chamada Livia
(a outra não me lembro). Elas começaram os dois primeiros meses ensinado Ecologia
como foi decidido por elas em conjunto com xs estudantes. Em seguida, com a
entrada do Valter (3º educador) e saída das duas primeiras, a turma começou a ver
genética, pois havia maior conexão com a matéria dada pela área de química e visava
promover interdisciplinaridade.
Neste momento o Rodrigo e a Renata entraram no projeto (4ºe 5ª
educadorxs), pouco após o início da genética. As aulas de genética começaram com a
primeira lei de Mendel atrelada a conceitos de citologia. Como não havíamos
abordado citologia antes, as aulas ficaram confusas e difíceis para a maior parte dxs
estudantes. Mesmo assim, as aulas de genética continuaram até a segunda lei de
Mendel e com noções de casos especiais, como epistasia, codominância, dominância
incompleta, alelos múltiplos e ligação gênica. Prosseguimos com a entrada do Luis (6º
educador) e saída do Valter.
No segundo semestre iniciamos as aulas de citologia, focando nas organelas e
suas funções. Passamos para mitose e meiose e começamos a colocar mais exercícios
com foco no ENEM e vestibulares. No começo do semestre a Renata saiu do projeto.
Depois fomos para biomoléculas, explicando como é a síntese de proteínas e as
diversas funções destas.
A grande maioria das aulas foi expositiva. Apesar da disposição da sala, com
cadeiras em torno de uma única mesa grande, tivemos poucos momentos de
discussão. Por outro lado, nesses momentos em que as aulas foram mais
construtivistas ou que levavam a uma reflexão tivemos um bom feedback com as
aulas sendo bem recebidas pelos estudantes. Quanto aos recursos audiovisuais
utilizamos principalmente de notebook para passar vídeos e slideshows, além do
quadro branco.
ESTUDANTES
Aulas
Introduzimos aulas de redação, pois passar no vestibular é objetivo da maioria
das/os estudantes (nem por isso deixamos de criticar o sistema de ingresso nas
universidades), fizemos simulados também para nos acostumarmos com a estrutura
do exame e com a prova de resistência física que é o vestibular.
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As áreas sempre tentam fazer com que as aulas sejam menos “formais” então
sempre que possível usamos vídeos, textos, jogos, experimentos e debates para
complementar o conteúdo. Além das aulas em sala, aconteceram saídas de campo e
encontros que fizemos para gerir o espaço, resolver conflitos e nos formar
pedagógica e politicamente.
Nas aulas de linguagens e política discutimos temas que não, necessariamente,
irão ser cobrados no vestibular.
No final do semestre passado, na aula de linguagens, decidimos estudar cultura
indígena e fizemos algumas aulas para introduzir o tema: selecionamos jogos e
brincadeiras de alguns povos e brincamos, convidamos os militantes Giva e Sasá para
falarem sobre as lutas dos povos e, por fim, fizemos uma saída pelo bairro
perguntando para as pessoas sobre o que elas sabiam sobre o “índio”.
A partir dessas atividades escolhemos temas de estudo para nos
aprofundarmos. Focamos em produções (textos, vídeos) feitas por indígenas para
não cairmos em preconceitos e suposições errôneas. Problematizamos a imagem do
“selvagem” que é construída em cima deles, tentamos desconstruir a imagem
generalizada em torno dos povos e estudamos quais são as lutas que enfrentam.
Após encerrarmos esse assunto retomamos o tema identidade, o que foi o
nosso primeiro foco no começo do ano. Analisamos imagens e como elas nos
influenciam diariamente e para finalizar, produzimos algo que nos representasse de
alguma forma, essa última aula, com a produção, aconteceu na escola ocupada
Romeu de Moraes.
Na área de política dividimos os temas, escolhidos em assembleia no começo
do ano, em blocos. Na primeira aula do bloco introduzimos o tema e na segunda aula
convidamos alguém com mais propriedade ou experiência para falar.
Geralmente, os temas estão relacionados às lutas sociais. Nesse semestre
tratamos de temas como redução da maioridade penal, assistimos ao doc. “Enquanto
a liberdade não canta”, lutas dos FGTS sob a perspectiva de uma mulher negra
lésbica, a situação de mulheres que trabalham em empresas terceirizadas com a
Thaís Lapa para falar dos seus estudos sobre, lava jato e corrupção, história das lutas
por direitos e cotas (políticas afirmativas), convidamos uma professora grevista e
uma aluna secundarista para falarem sobre as lutas pela educação. As últimas aulas
foram dadas pelas/os estudantes que ocuparam as escolas Fernão Dias Paes e Prof.
Manuel Ciridião Buarque, elas e eles nos contaram como foi o processo de ocupação,
os motivos, as represálias que estão sofrendo e como se organizam dentro da
ocupação.
Nas últimas semanas transferimos nossas aulas para a escola ocupada Romeu
de Moraes, foi uma experiência bastante rica ver as/os alunas/os ocupando,
cuidando e se apropriando do espaço da escola. Na última semana de aula voltamos
para a Casa Mafalda para focar na segunda fase do vestibular.
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Organização/ Autogestão
Reunimos-nos mensalmente em reuniões para resolver conflitos e desafios que
surgem diariamente, nos organizamos em comissões rotativas e a cada semestre
temos um fórum para refletirmos sobre o que passamos e para organizarmos o
próximo semestre.
Num primeiro momento organizamos um sarau e festas, depois uma
campanha de financiamento coletivo, pois não somos financiados por instituições ou
pelo governo então temos que arrecadar, nós mesmos, os fundos para pagarmos
aluguel, transporte de estudantes e materiais.
Fora das aulas
No mês de agosto fizemos o nosso primeiro ciclo de formação pedagógica, em
quatro encontros abertos, chamamos pessoas que tiveram ou estudaram sobre
experiências de pedagogia libertária. No primeiro encontro (5/08) convidamos a
Marina Mayumi para apresentar os Bachilleratos populares na Argentina e nos contar
sobre suas vivências na Escuela Libre de Constitución.
No segundo encontro (11/08) o Rodrigo Rosa apresentou as Escolas Modernas
e os princípios da educação anarquista. Na semana seguinte (19/08), convidamos o
João Branco para falar mais sobre o levante popular de Oaxaca, em 2006, que teve
como estopim a greve dos professores do Estado. No encerramento do ciclo, nós do
cursinho, partilhamos as nossas experiências e perspectivas.
FÍSICA
Quem procura diferenciar o Cursinho Livre da Lapa de outros pela organização
do horário das aulas poderá achar que se trata de mais um cursinho pré-vestibular
tradicional. As aula de Física, com duas horas de duração, ocorreram semanalmente
em horários fixos, normalmente às quintas-feiras – a não ser quando houve alguma
atividade de outra área que deveria acontecer necessariamente na quinta-feira,
trocando-se assim o dia em algumas ocasiões. Como é comum em cursinhos
comunitários, a evasão de estudantes é alta, de modo que no meio do segundo
semestre as duas turmas iniciais se uniram em uma, ainda com horário semanal fixo.
Até aí, nada de novo.
No entanto, uma análise mais profunda pode apontar como o diferencial do
Cursinho está na tentativa das/os educadoras/es de alinhar os elementos da sala de
aula e da relação entre estudantes e professores/as ao que se conhece de propostas
libertárias de educação formal. Quando se trata do ensino de Física, um dos
principais desafios é buscar condições para uma aprendizagem de fato significativa,
31
objetivo que faz da sala de aula uma grande trincheira político-pedagógica. Sabe-se
que um projeto pouco estruturado ou um plano de ação pouco consistente pode
resultar em firmes obstáculos à superação de dificuldades aparentemente menores,
como encontrar motivação intrínseca para se aprender Física ou romper com o
preconceito de que “Física é difícil”. Quando se trata de um projeto de pedagogia
libertária como o do Cursinho Livre da Lapa, esse desafio se soma ao de implementar
um projeto político radical no que diz respeito à horizontalidade da relação
professor/a-estudante e a não-reprodução de opressões incorporadas à prática de
ensino (em especial o de ciências) ao longo do tempo.
Uma dificuldade de se ensinar Física sob uma proposta pedagógica e política
de orientação libertária decorre da autoridade atribuída ao discurso científico. Esse
discurso, ao se apresentar como totalizante e expressão da Verdade, menospreza a
sabedoria popular e inferioriza outras formas de se construir o conhecimento. A
Ciência se apresenta como autoridade para expressar a natureza, hierarquizando
assim os saberes. Mostrar diferentes pontos de vista sobre um determinado
problema e como as diferentes formas de ver o mundo podem contribuir para
resolvê-lo em perspectivas distintas foi uma maneira de colocar em questão a rigidez
de um currículo como o de Física, tradicionalmente tecnicista e que coloca a natureza
como um objeto independente de quem a observa e analisa. Valorizar o lado humano
e a subjetividade do conhecimento científico foi uma preocupação presente nas aulas
de Física, a qual deve ser imprescindível numa pedagogia que se pretende libertária.
Outro desafio é o de reconhecer onde o machismo se manifesta na Física –
ciência em que, como as outras exatas, homens têm mais espaço que qualquer outro
gênero para protagonizar a construção do conhecimento. Efeito do machismo é a
falta de mulheres que participaram e vêm participando da história da Física. Outra
evidência do machismo não só na Física, mas no conhecimento acadêmico, é como o
homem é usado como generalização de ser humano. Problematizar essas evidências
fez parte de nossas aulas não apenas enquanto elemento formador mas também
como uma barreira a ser enfrentada na Universidade que, acreditamos, será
frequentada por estudantes do CLL.
Há um forte preconceito em nossa região de que é difícil aprender Física. É
muito comum ouvirmos pessoas que dizem nunca terem aprendido Física na escola e
que parece ser algo que não entra na cabeça. Na realidade, somos parte de uma
cultura que pressupõe a Física como um corpo difícil de ser digerido, como se a
dificuldade de aprendizagem fossem culpa de estudantes e não responsabilidade de
uma metodologia de ensino arcaica que se repete de maneira sistemática e acrítica
simplesmente para manter a ordem das coisas no ambiente escolar. A proposta para
se quebrar tal paradigma foi organizar as aulas com base em temas que
aproximavam os conteúdos exigidos pelo vestibular de fenômenos de nosso
cotidiano. Ao invés de apresentar de maneira crua os conceitos chave (velocidade,
32
temperatura, carga elétrica) foram apresentados problemas ou perguntas que, para
serem respondidas, exigiam a aprendizagem desses conceitos. Estudantes afirmam
ter gostado desse tipo de abordagem, ao ponto de dizerem que enfim estavam
aprendendo Física pela primeira vez na vida.
Horizontalizar as aulas é outra preocupação constante. Poucas vezes não se
pôde fugir do estigma de professor/a tradicional que deposita seu conhecimento em
estudantes. Essa relação se reproduziu em aulas como as de ótica, em que a relação
entre professor/a e estudante remeteu a cursinhos tradicionais. Apesar desses casos,
as aula foram em roda, com educadores/as e estudantes sentadas em torno da
mesma mesa, a ponto de a lousa ter sido usada poucas vezes. Foi valorizada uma
metodologia baseada na investigação de fenômenos do cotidiano e em perguntas-
problema, apoiada muitas vezes em objetos virtuais de aprendizagem, como
simulações e vídeos. Foram também realizados experimentos com materiais de baixo
custo. A participação de estudantes, o estímulo a manifestarem suas dúvidas e o
protagonismo e a divisão do maior número possível de tarefas durante as aulas
foram estimulados durante todo o ano.
Vale ressaltar que a intencionalidade inerente ao papel de professor/a não foi
deixada de lado. Em se tratando de um cursinho, com um de seus objetivos principais
sendo a aprovação em vestibulares que preveem uma lista de conteúdos a serem
provados, foi necessária a escolha de um formato de aula que contemplasse
minimamente as exigências de provas como Fuvest e ENEM. Além disso, a escolha de
um caminho que busque provocar o interesse e a motivação, além de subsidiar
garantias de participação, impedindo que opressões se reproduzam em sala de aula,
é papel de quem tem a iniciativa da educação formal. O desafio permanente (e
utópico) tem sido o da busca por um equilíbrio entre conseguir a aprovação,
pressupondo uma organização inicial da aula como tarefa de quem educa (sem se
tornar um privilégio ou reproduzir a hierarquia professor-aluno), e ter uma prática
verdadeiramente libertária (horizontal e de apoio mútuo) em sala de aula.
Buscou-se criar uma relação das aulas de Física com outras áreas. Nosso
planejamento começou em parceria com Biologia e Química, com reuniões unindo as
três áreas. Foram escolhidos alguns temas que permitiriam aproximar as áreas e
mostrar como o conhecimento se relacionam e é fragmentado de maneira arbitrária
e oportuna, o que em si já é uma forma de questionar e problematizar como se
constroem os saberes. Os temas “Do micro ao macro” (relações entre os mundos
micro e macroscópicos) e “Energia” guiaram as aulas. Os temas foram oferecidos e
escolhidos pelas duas turmas de estudantes durante as primeiras aulas do ano.
Embora usar os temas como eixo das aulas tenha sido interessante no início, essa
proposta não foi retomada ao longo do semestre, pois as reuniões entre Física,
Química e Biologia deixaram de acontecer – por falta de tempo das pessoas
envolvidas com o Cursinho. A falta de reuniões comprometeu a organização e,
33
consequentemente, o plano de trabalho das aulas. Atividades conjuntas, como uma
visita ao Museu Catavento, deixaram de acontecer pela dificuldade de se organizar
um horário que atendesse a demanda das três áreas.
Interessante foi também poder ter mais de um/a professor/a em sala de aula
ao mesmo tempo. Essa interação aumenta o potencial de apoio mútuo, fazendo com
que alguns detalhes importantes pudessem ser apontados, o que provavelmente não
aconteceria se outro/a professor/a estivesse na sala de aula. Além disso, a presença
de mais de um/a professor/a oferece diferentes pontos de vista sobre alguns
conteúdos durante as aulas, em casos de assuntos que surgem espontaneamente
durante as aulas e que nem sempre são conversados previamente em sua
preparação.
Ao avaliarmos as atividades ao longo do ano 2015, entendemos que é possível
investir mais na interação da Física com outras áreas. Para além de um melhor
planejamento de elementos já mapeados pelas diferentes metodologias do ensino de
Ciências, essa avaliação sugere que as aulas de Física no Cursinho, mesmo em
ambientes fechados como as salas tradicionais de aula, mostraram-se um espaço
privilegiado para uma construção política baseada no apoio mútuo e horizontalidade.
Esse balanço nos encoraja a construir cada vez mais espaços de pedagogia libertária
para uma aprendizagem de fato significativa.
GEOGRAFIA
A área de Geografia começou 2015 com 3 educadores. No meio do processo,
uma nova educadora se somou e fomos em 4 a maior parte do tempo.
De início, tentamos montar um cronograma pro primeiro semestre a partir da
ementa do Enem. Dividimos as aulas de acordo com os temas que achamos que
diziam respeito à Geografia e em seguida fizemos um calendário. Para cada aula,
estipulamos um educador de referência, que preparava a aula, e outro para
complementar e contrapor o primeiro. Utilizamos diversas ferramentas e
trabalhamos diferentes habilidades: assistir a vídeos, ler e interpretar textos
acadêmicos e notícias, discutir temas. Boa parte das aulas foi expositiva, ainda que
abertas a questões a qualquer instante. Procuramos abordar os conteúdos fugindo
da perspectiva tradicional, ou complementando-a (por exemplo, falando da
perspectiva de tribos indígenas brasileiras para a formação da Terra e narrando o
processo de industrialização na Inglaterra a partir do movimento luddita).
Em alguns momentos, realizamos aulas com dinâmicas diferentes, como um
jogo de tabuleiro sobre a questão agrária brasileira, que chamamos de "Guerra por
Terra" e cujas regras fomos compondo conforme jogávamos com a turma. Fizemos
também algumas aulas extra sobre temas atuais, como o Estado Islâmico, e tentamos
34
(ainda timidamente) convidar outras áreas para participar de aulas cujo conteúdo
lhes fazia referência.
No segundo semestre, por conta de impossibilidades dos educadores,
acabamos fazendo muitas aulas sem o educador de apoio e apenas com o educador
de referência. Tentamos também organizar saídas de campo, que acabaram não se
realizando ou por problemas de agenda do Cursinho ou por impossibilidade do lugar
a ser visitado. Nas últimas aulas, reservamos também parte do tempo para resolver
exercícios de vestibular e discutir temas solicitados pela turma.
No geral, nossa intenção foi a de tentar abranger os temas principais
tradicionais da Geografia sem deixar de colocar contrapontos críticos. Ao mesmo
tempo, tentamos experimentar novas dinâmicas em sala de acordo com as vontades
e o comportamento da turma, e com as nossas possibilidades. Pedagogicamente,
pensamos também na importância de trabalhar diferentes linguagens e de
apresentar situações comuns do meio universitário, como ter que ler e fichar um
texto.
Em 2016, a área continua com as mesmas 4 pessoas e até o momento ganhou
um novo educador, que já tinha nos acompanhado de fora em 2015. A intenção é
manter o foco nas diversas ferramentas e linguagens e criar novos espaços
pedagógicos de experimentação que visem proporcionar maior autonomia aos
estudantes, tanto em sala de aula no Cursinho como fora dela e, futuramente, no
meio universitário.
HISTÓRIA
O ensino de História em uma pedagogia libertária: a experiência do Cursinho
Livre da Lapa.
A área de História do Cursinho Livre da Lapa começou a ser formada no final de
2014. Desta data até então, tivemos oito educadores. Assim como as demais áreas
do Cursinho, tivemos total autonomia para planejar nossa didática. Aliando a
preocupação da demanda de dar conta do conteúdo das provas de vestibular com a
de propiciar uma formação crítica, neste planejamento ressaltamos dois eixos: a
abordagem do conteúdo por meio de uma cronologia regressiva ao invés da
tradicional cronologia progressiva e a participação de dois educadores por aula.
O primeiro ponto destacado por nós é a opção que fizemos em abordar os
conteúdos a partir de uma cronologia regressiva. Isto é, ao invés de abordamos os
conteúdos da maneira mais ortodoxa, do passado mais remoto até os dias de hoje,
preferimos inverter a linha do tempo tradicional, abordando os conteúdos do
presente para o passado. Apesar de acreditarmos que esta abordagem deu muito
certo, já que os estudantes tiveram um grande empatia com os conteúdos ao
35
iniciarem seus estudos por aquilo que estava mais próximo a eles, mais próximo à
sua realidade, como educadoras e educadores enfrentamos algumas dificuldades,
pois estamos muito ligados à cronologia tradicional e sair dessa "zona de conforto"
foi complicado para nós.
Quanto à adoção de dois educadores por aula, nosso intuito foi de quebrar a
ideia do professor pertencente a um lugar de autoridade acima dos estudantes.
Pensamos que por mais que nos esforçássemos para construir com um educador por
aula uma educação baseada em uma via de mão-dupla entre estudantes e
educadores, em que ambas as partes aprendessem e ensinassem - realizando uma
real troca de aprendizados - , teríamos muito mais dificuldade para ressignificar o
papel de educador. Isso porque os estudantes ao longo de toda sua vida na educação
formal foram ensinados a “respeitar” a voz do professor, tido como o detentor do
saber, na prática representando silenciar-se perante a sua autoridade. Por isso,
acreditamos que dois educadores por aula ajudaria mais na desconstrução desta
ideia.
Avaliamos que tivemos êxito nesta desconstrução, retirando os educadores de
um suposto lugar superior e colocando-se no mesmo nível que os estudantes: olho
no olho, ombro a ombro e lado a lado, em um caminho no qual o ensino seja de fato
horizontal!
LINGUAGENS
A área de Linguagens iniciou 2015 composta por seis educadores, sendo que
dois estavam ligados à área do teatro, uma da performance, dois das artes visuais e
uma da linguagem cinematográfica. Pretendíamos unir essas linguagens com a ideia
de leitura de mundo trazida por Paulo Freire no livro “A importância do ato de ler",
no qual ele afirma que "a leitura do mundo precede a leitura da palavra".
Pretendíamos também reservar entre quinze minutos e meia hora de cada aula para
realizar práticas corporais, acreditando na importância de manter o corpo presente,
ativo e tranquilo não apenas para o vestibular, mas numa tentativa de diminuir a
distância que separa corpo e mente no nosso processo desescolarização, assim como
acreditando também na potência da expressão não verbal e na criação de vínculos
mais subjetivos do que a competitividade também estimuladas nos ambientes
escolares e principalmente em cursinhos.
Na primeira aula propusemos nos apresentarmos e nos conhecermos um
pouco, de forma poética que fugisse da lógica acadêmica, escolar ou corporativa.
Caminhamos pelas ruas do bairro recolhendo objetos na rua, partilhamos todos e
escolhemos alguns para contar nossa história e quem somos a partir deles. Dessa
atividade e em diálogo com as estudantes, elas trouxeram a vontade de estudarmos
a cultura de povos indígenas e de povos afrodescendentes, compreendendo também
36
nossas próprias origens e estudando nossas histórias familiares e questionando a
(falta de) representação desses povos ao longo dos séculos na história oficial. A partir
daí definimos junto com o grupo de estudantes o tema 'identidade' para nos
debruçarmos ao longo do ano. Os métodos utilizados foram saídas pelo bairro para
conversar com a população que trabalha ou mora na região, conversa com ativistas
que lutam contra o genocídio da população negra e indígena, análise de imagens,
busca e apresentação de fotos e histórias pessoais, conversas em roda, vídeos e
filmes e leitura de textos.
O começo desse caminho sobre identidade foi um processo de muitas
descobertas, de olhar pra si e pro outro, de partilhar histórias e ouvir. Entramos e
saímos de lugares muito íntimos e partimos depois para pensar as relações dessa
subjetividade com o macro, com o fora, com o mundo. Que falta de coincidência ter
uma sala majoritariamente formada por mulheres em que quase todas, se não todas,
terão um caso de violência pra contar? Como repensamos aquela opção de pardo nos
formulários pra entender o que é ser pardo e não ser índio ou negro na nossa
sociedade?
Por não termos um conteúdo previamente definido, íamos fazendo escolhas e
desenhando os rumos ao longo do caminhar junto com as estudantes. Muitas vezes
essas escolhas deixavam dúvidas sobre ser aberto ao que elas traziam sem deixar de
ser propositivo. Muitas vezes estar aberto também estava carregado com
expectativas de que essa construção coletiva do nosso processo viesse também com
uma responsabilidade dentro dele. Mas entendemos que era difícil depender das
participações e contribuições das estudantes para que nossas aulas acontecessem.
No meio do ano elas nos disseram que sentiam falta daquele momento mais íntimo,
mais olhar pra si, que tivemos no começo. No final, sentiram que poderia haver
aproximação maior com conteúdos do ENEM e, porém com poucas estudantes
frequentando as aulas de Linguagens semanalmente. Por um lado avaliamos que essa
evasão se deve por conta da proximidade com o vestibular e da ausência de um
cronograma melhor definido, por outro entendemos que foi absolutamente
importante nos colocar dispostas ao diálogo para desenvolver propostas que
partissem das próprias estudantes e também respeitar a autonomia de cada uma de
frequentar as aulas ou não. Pretendemos continuar com as práticas corporais
funcionando também como um espaço de empatia, definir um cronograma,
entendendo Linguagens uma aula tão prioritária quanto às outras, mantendo os
processos coletivos de escolha do conteúdo, tratar questões individuais e pessoais
mescladas com o conteúdo do vestibular, construir redes de saberes, incentivar a
troca com estudantes da unidade Sé e dos bachirellatos populares argentinos.
37
MATEMÁTICA
A área de matemática continuou a se pautar pelo currículo básico do Ensino
Médio e os principais conteúdos cobrados nos vestibulares. Entretanto, nas aulas,
tentamos frisar mais o aspecto de descoberta de relações e a solução de problemas
do que o aspecto sistemático e formal da matemática. Buscamos fazer isso por meio
de incursões, mesmo que muito breves, em pontos da história da matemática.
Tentamos assim caracterizar a matemática não como um sistema fechado e
acabado de verdades eternas ou mero jogo formal de símbolos de origem
desconhecida, aparentemente inútil, pois voltado apenas para usos técnicos
extremamente especializados e, portanto, obscuros. É assim, ao menos, que a
maioria das estudantes parece pensar a matemática. Tentamos, pelo contrário,
mostrar a matemática como o que ela realmente é: a história do enorme esforço
intelectual, de homens e mulheres, ao longo dos séculos, em solucionar problemas
gerais da vida. A matemática, portanto, como um saber construído, por pessoas, em
circunstâncias específicas, e por isso mesmo, compreensível, e não como um saber
pronto e dado. Pensamos ser essa uma perspectiva muito mais interessante e
frutífera e, se dizemos que “tentamos", é porque na mais das vezes não conseguimos
ir tão longe. A estupidez dos currículos tradicionais e o absurdo das cobranças de
vestibulares, ainda mais em um período de tempo tão curto como um ano, se
impõem como obstáculos difíceis de ultrapassar.
Algumas das matérias vistas ao longo do semestre: trigonometria, alguns
tópicos da álgebra (progressões, sistemas lineares, análise combinatória), geometria
analítica e geometria clássica. Alguns assuntos foram estudados somente durante a
resolução de exercícios de vestibular, nas últimas aulas do ano, que dedicamos
exclusivamente para esse propósito. Conseguimos ao longo do ano, mesmo que
superficialmente, cobrir a maior parte do currículo do Ensino Médio.
Começamos o ano com dois educadores, que logo aumentaram para três. No
segundo semestre, haviam apenas dois novamente e logo apenas um. No fim do ano,
nas últimas aulas, mais um educador veio para colaborar com as revisões para o
vestibular.
POLÍTICA
Resumo do ano
A área de política tinha como objetivo provocar e mediar o debate de temas
sensíveis / atuais da política, bem como trazer um panorama dos temas de sociologia
e filosofia recorrentes nas provas do ENEM / vestibulares, visando uma experiência
de educação libertária para além do vestibular. No início do ano, foi apresentado às e
38
aos estudantes um conjunto de temas para que escolhessem coletivamente quais
gostariam de tratar durante o ano. Os temas debatidos ao longo do ano foram:
moradia, política institucional, terceirização do trabalho, corrupção, maioridade
penal, drogas, violência estatal e genocídio, gênero e sexualidade, raça / etnia,
educação, entre outros. A proposta era fazer um debate em dois momentos: um
inicial entre educadores e estudantes sobre o tema, e um segundo momento
convidando pessoas de movimentos sociais / populares ligados aos temas e suas
lutas, para falar sobre as questões em uma perspectiva crítica, a partir da política em
movimento, "na prática".
Essa contribuição das pessoas convidadas foi muito positiva para dar contorno
crítico e possibilitou que os temas fossem discutidos e conhecidos na dimensão das
lutas populares atuais. No segundo semestre, foi proposto um bloco de seis aulas
sobre temas de filosofia e sociologia, com foco especial nas provas anteriores do
ENEM. Foram apresentados os grandes problemas da filosofia e sociologia, alguns
autores e debates desse campo de conhecimento. Para dar conta do grande volume
de pensadores e obras, foi proposta a discussão e resolução coletiva a partir de
questões de provas anteriores, visando especialmente à interpretação de texto
destas questões, que é chave para a resolução delas. Ao longo do ano, especialmente
no segundo semestre, a área teve uma grande evasão de estudantes nas aulas, que
parece ser geral do cursinho, chegando a ter aulas com apenas duas estudantes
presentes. Houve dificuldades em relação ao planejamento das aulas e a pouca
quantidade de educadores disponíveis na área. Entendemos que há demanda das
estudantes por mais tempo dedicado aos temas de filosofia e sociologia em razão de
seu peso considerável no ENEM. Avaliamos que a área de politica contribuiu muito
para a formação politica de estudantes do cursinho, tanto em termos de
engajamento nas lutas sociais, quanto em termos de ter condições de realizar uma
prova como a do ENEM 2015 que deu enorme peso a discussões politicas que
tratamos ao longo do ano, como a questão de gênero.
Atividades e saídas de campo
Foram propostas diversas saídas de campo na área de política ao longo do ano.
Houve saídas no centro de SP, no bairro da Lapa, na favela do Moinho, no
monumento das bandeiras, além de conversas externas com convidados do
movimento negro e da rede dois de outubro (visita à fundação casa). As saídas foram
muito interessantes, apesar da baixa adesão de estudantes.
39
Quantos educadores e educadoras passaram pela área
No inicio do ano, a área era bastante grande, com mais de 20 pessoas. Logo no
primeiro mês, as pessoas inicialmente interessadas deixaram de contribuir e apenas
2 educadores permaneceram na área. Buscamos trazer novos educadores, e outras 4
pessoas passaram pela área, ficando um mês apenas.
QUÍMICA
Entrei no meio do ano com a possibilidade de contribuir muito mais com algum
conhecimento teórico do que com uma participação efetiva na gestão do cursinho.
Meus horários no semestre foram bem complicados, e à tarde de quarta-feira foi
mesmo o único dia garantido.
As aulas fluíram muito mais como tentativa de garantir uma base do que como
um aprofundamento no ensino de química. Tanto por minha parte, que estava
distante da área fazem alguns anos, como por parte das alunas e alunos, que em
grande maioria (senão todos) se apresentaram com alto grau de dificuldade, nos
princípios da matéria e também na matemática, essencial para o ensino de química.
O conteúdo, imaginando um ciclo de 3 anos de ensino médio, cobriu,
possivelmente, 50% do total, mas de forma mais rasa. Senti alguma dificuldade em
propor alguma forma de exercício de casa, por exemplo. Nas aulas, as alunas e os
alunos executavam alguns problemas, mas a evolução era lenta. Pensei que, na
tentativa de garantir um conteúdo mínimo pra todos, quem estava mais avançado
talvez tenha se cansado com a repetição de explicações.
Imaginando um conteúdo que se complexifica, perder uma aula significa não
compreender a seguinte, o que me obrigou a agir nessa chave.
Como conteúdo, me baseei num material de escola, emprestado, e também
num site www.profpc.com.br, específico da área de química, que possui exercícios de
vestibular e explicações bem razoáveis, em tópicos. Parti do princípio do estudo de
matéria e transformações, até o ensino de oxi-redução e uma passagem nas funções
orgânicas e reações.
De forma geral, fiquei muito honrado em poder contribuir com o Cursinho. É
um espaço de troca fantástico. Sinto não poder ter entrado a fundo na participação e
troca com todas e todos, mas de alguma forma acredito que tenha minimamente
contribuído pra fazer algo bacana por aí. Aprendi muito e penso em levar as
discussões pra Juiz de Fora, com algo semelhante. Vamos ver. Foi um prazer imenso,
espero revê-los em algum momento.
40
DEPOIMENTO DE IVANNA, ESTUDANTE EM 2016
‘‘Você não vai encontrar melhor espaço que a Casa Mafalda’’ - Fueron las
palabras de un amigo cuando supo que estaba en busca de una escuela preparatoria
popular (cursinho en portugués) porque el capitalismo me cerró las puertas del
estudio si no contaba con dinero para pagar.
Llegué a Brasil con mucho entusiasmo de estudiar, aprender, viajar y conocer.
Sin experiencia y con dinero limitado emprendí este viaje sin saber lo que me
esperaba pero con la esperanza de que toda fuera a salir bien, tudo ia dar certo.
Las clases comenzaron a finales de febrero, ingresé con timidez a un espacio
donde se me acogió como si fuese un hogar. Estaba lejos de casa y ellos me hicieron
sentir como si estuviera en una.
Donde entré era una escuela preparatoria anarquista/libertaria y los principios
de este bello lugar son autonomía, anticapitalismo, horizontalidad, valorización de las
minorías políticas, apoyo mutuo, entre otras cosas. Sin opresiones, sin machismo, sin
racismo, sin homofobia, sin xenofobia y sin abuso del poder, solo personas
conviviendo a diario con más personas
LIBERTAD, LIBERTAD podía gritar ahí dentro, podía expresarme sin ser
discriminada por era una visión diferente, nadie se entrometía en tu vida; comodidad
sobraba en el lugar. Una mujer podía besar muchas personas y nadie la llamaría de
puta o mujer fácil; si no te maquillabas, no iban a pensar que eres una
despreocupada; si usabas la misma ropa dos días seguido, no significaba suciedad y si
tenías los vellos largos, sonreían porque sabían que te sentías cómoda con tu
cuerpo sin importar lo que diga la sociedad.
Podías ser tú mismx.
Era un espacio autónomo, por ende, no contábamos con ayuda del estado. Era
una casa con las mismas necesidades que tienen otras casas; cada fin de mes se
debía pagar el alquiler, luz, agua e internet. Para conseguir pagar esos gastos y
continuar con nuestro maravilloso espacio, todos nos juntábamos para hacer
eventos, ahí es donde se pudo ver el apoyo mutuo, el trabajo el equipo y que todos
estábamos juntos.
He aprendido mucho ahí, sobre autonomía, política, pedagogía, veganismo,
bordado, productos naturales, electrónica, entre otras cosas.
Considero la horizontalidad como la base principal de este hogar, no hay una
jerarquía, no hay alguien que sea superior a otros, puede que unos sean llamados de
educadores, otros de estudiantes y otros de educadores/estudiantes pero al final
solo se sabía que era tu amigo aquel que estaba en el pizarrón ayudándote a
aprender algo que desconociste en la escuela porque el sistema educativo es una
shit.
41
Creo que nunca encontraré aquí otro lugar como este, un espacio donde te
den toda la confianza del mundo, un lugar donde pueda cocinar o dormir cuando lo
necesitara, un lugar donde alguien iba a llegar siempre con una sonrisa para alegrarte
el día. Aquí se me abrieron mucho los ojos y aunque el mundo de allá fuera sea tan
diferente como en estas cuatro paredes, en mi mente sigue construyéndose un
mundo mejor y lo intento compartir con quien pudiese.
Escribí en pasado porque no sé si habrá un futuro, el capitalismo sigue tocando
nuestra puerta y aún no sabemos si vamos a poder continuar con ese peso encima.
Queríamos cambiar el mundo y ahora vamos a intentar que el mundo no nos cambie
a nosotros.
Se me dio la llave para abrir y cerrar la puerta porque era la primera en llegar y
la última en irse, y con esta misma llave cierro este primer bimestre y espero volver a
abrirlo en agosto.
Infinitamente agradecida de encontrar a la Casa Mafalda & al Cursinho Livre da
Lapa.
Ivanna C. Benites, peruana, Junio 2016.
42
43
44
CURSINHO LIVRE DA LAPA
RELATOS E REFLEXÕES SOBRE ATIVIDADES DE UM CURSINHO LIBERTÁRIO
2015-2016
É possível um cursinho pré-universitário basear suas aulas na pedagogia
libertária experienciada por anarquistas dos séculos XIX e XX?
Quais as mudanças reais em sala de aula trazidas por uma prática libertária?
Há mudança significativa na relação entre estudantes, educadores e
educadoras quando o cursinho e todas suas atividades são autogeridas por todos e
todas as participantes?
Quais as possibilidades de transformação política e social para além da
realidade das pessoas envolvidas em um projeto de pedagogia libertária?
Como lidar com conflitos de maneira eficiente sem abrir mão de prefigurar a
sociedade que desejamos construir?
São essas algumas questões presentes nesta publicação, que pretende
compartilhar as experiências a fim de ter a ideia da pedagogia libertária e da
transformação social difundida para além dos muros da educação tradicional.

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Ajude a luta por uma educação libertária no Cursinho Livre da Lapa

  • 1. RELATOS E REFLEXÕES SOBRE ATIVIDADES DE UM CURSINHO LIBERTÁRIO 2015-2016 PUBLICAÇÃO #1
  • 2. 2 Material produzido pela comissão de publicação do Cursinho Livre da Lapa. Textos produzidos ao longo dos anos de 2015 e 2016. 1ª edição. Cópia e reprodução autorizada por Creative Commons.
  • 3. 3 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...........................................................................................................4 Cursinho livre da lapa: ajude essa luta pela educação libertária .................................6 Princípios, objetivos e acordos mínimos ......................................................................9 Pedagogia libertária, construção política e estratégias de resolução de conflitos no Cursinho Livre da Lapa.......................................................................12 Reflexões sobre o I Ciclo de Formação do Cursinho Livre da Lapa (ou sobre como o pessoal também importa) .............................................................15 Comissão de Mediação Pedagógica ...........................................................................19 Quando a vontade de igualdade reproduz privilégios: a relação estudante-educante ...................................................................................21 Divisão de tarefas entre Cursinho Livre da Lapa e Casa Mafalda...............................24 Relatos de atividades das áreas em 2015...................................................................28 Depoimento de Ivanna, estudante em 2016..............................................................40
  • 4. 4 APRESENTAÇÃO O Cursinho Livre da Lapa nasceu da vontade de diversas pessoas que trabalhavam ou se interessavam por educação em ter uma experiência prática de pedagogia libertária. Levando em consideração nosso envolvimento com as lutas sociais que tem lugar na cidade, e partindo de um debate sobre os bachilleratos populares na Argentina (escolas auto-organizadas pela população em meio à crise de 2001), nos pareceu boa a ideia de construir um cursinho popular libertário. A apresentação de uma companheira brasileira que participava da Escuela Libre de Constitución, em Buenos Aires, sobre o funcionamento dessa escola/bachillerato acabou servindo como disparador para começar o cursinho. Nossa proposta é desenvolver relações pedagógicas e educativas horizontalizantes, ou seja, diminuindo ao máximo a barreira entre educadores/as e estudantes. As decisões dentro do cursinho acabam sendo sempre coletivas, e as propostas tanto de aula quanto de outras atividades passam por uma ideia de formação social e política crítica, com a intenção de potencializar a capacidade de organização de todos nós. Enquanto educadores, acreditamos que nosso papel é propor experiências em sala e fora dela que possam ajudar a abrir portas e construir os caminhos desejados e descobertos junto às estudantes. Educação não pode ser algo doutrinário ou imposto, muito menos uma atividade disciplinadora e formadora de corpos
  • 5. 5 controlados e prontos para serem devorados pelo mundo do trabalho. Acreditamos que a educação pode e deve ser libertadora, uma experiência de autoconhecimento e de conhecimento social e coletivo que nos torne pessoas aptas a compreender, agir e transformar o mundo. Espaços educativos nunca podem ter um fim em si mesmo ou estar desconectados do que acontece na cidade e na sociedade; educar é, no limite, construir junto à possibilidade de novas gerações capazes de desconstruir e romper com a nossa.
  • 6. 6 CURSINHO LIVRE DA LAPA: AJUDE ESSA LUTA PELA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA O Cursinho Livre da Lapa é um projeto que surgiu dentro do espaço autônomo Casa Mafalda, e passou a ser composto por muitos outros parceiros e parceiras com o desejo de construir uma vivência de educação libertária inspirada em práticas como a da Escola Moderna e dos bachilleratos populares na Argentina. A ideia principal é que essa experiência seja pré-universitária e não apenas pré- vestibular, que as e os estudantes ingressem na universidade de modo profundamente crítico e não somente tenham bons resultados numa prova eliminatória e elitista como o vestibular. É também direcionado para quem deseja voltar a estudar, prestar vestibulinho ou busca reforço paralelo à escola. Além das matérias diretamente exigidas pelo vestibular, temos também na nossa grade linguagens e política, o que permite garantir um olhar mais cuidadoso para a sociedade, as linguagens artísticas, o corpo e o indivíduo, que são aspectos normalmente negligenciados ao longo da trajetória escolar. De maneira geral buscamos aulas fora do formato tradicional para tentar diminuir o máximo possível a hierarquia entre educadores/as e estudantes. Nesse sentido, tentamos sempre garantir uma disposição das mesas na sala em formato de assembleia, com o objetivo de propiciar discussões e debates, nas quais a construção do conhecimento não fica centralizada na figura do professor ou da professora. Costumamos também propor saídas de campo que possibilitam aprendizagens significativas e uma progressiva ocupação dos espaços da cidade, assim como estabelecer relações entre os conteúdos discutidos em aula e estas vivências. Toda a gestão do projeto fica a cargo tanto de estudantes quanto de educadores, e é feita de forma horizontal, antirracista, não-homofóbica, feminista, não-lesbofóbica e anti-transfóbica. Das reuniões de gestão e pedagógicas à manutenção do espaço usado, a maior parte das tomadas de decisão é feita em conjunto e por consenso. O projeto foi iniciado sem qualquer contribuição financeira externa; no entanto, nos deparamos com o fato de que alguns alunos/as muito envolvidos com o Cursinho deixaram de assistir as aulas devido ao alto custo do transporte. Para tentar resolver esta demanda organizamos um sarau e festas, com as quais conseguimos garantir o transporte para uma parte das alunas e alunos, por uma semana, e garantimos parte dos materiais que precisamos no dia-a-dia. Desta forma, muitos dos gastos foram pagos diretamente pelos membros do cursinho. Porém, não temos grana suficiente para dar conta de todos os nossos custos: aluguel do espaço, materiais escolares, produtos de limpeza, xerox e principalmente o transporte dos alunos e alunas. Por isso, precisamos de doações para manter nosso projeto. Se você acredita que a educação pode ser construída de outra maneira, a
  • 7. 7 partir de princípios libertários e visando uma formação crítica, colabore com o Cursinho Livre da Lapa! Saiba mais sobre o Cursinho Livre da Lapa Fundado no começo de 2015, o Cursinho Livre da Lapa iniciou suas atividades, compondo alguns cenários cada vez mais crescentes; o cenário das lutas autônomas, em paralelo ao cenário das lutas por uma educação libertária, cuja formação crítica e objetiva, visa um processo crescente de acesso e democratização das Universidades Públicas. Abrigado pelo espaço autônomo Casa Mafalda, na região da Lapa (na Zona Oeste de SP), o Cursinho Livre da Lapa já conta com aproximadamente 20 estudantes constantes; e dentre esses, em uma maioria absoluta, mulheres, vindas das periferias tanto da Zona Oeste como de outras regiões da cidade. Como focam suas atuações em uma vertente libertária, Cursinho, Casa Mafalda, e pessoas participantes, educadoras, estudantes e militantes, o espaço preza por uma constante busca por práticas não-machistas, não-sexistas, não- racistas, não-lesbofóbicas, não-homofóbicas; em suma, não-autoritárias e não- opressivas. Sendo assim, além de um constante processo de desconstrução de práticas proto-fascistas, o Cursinho realiza suas reuniões de gestão em coletivo - pessoas educadoras e estudantes, que juntas pensam em finanças, organização da casa e sua dinâmica, organização de estudos de campo, campanhas de arrecadação de fundos para financiamento do transporte das estudantes que estão com dificuldades financeiras, entre outras possíveis pautas.
  • 8. 8 Não podemos, porém, nos esquecer do objetivo prático dessa (mais uma) experiência autônoma de construção de educação libertária: a democratização das universidades públicas, através da inserção de pessoas das periferias em suas salas de aula, historicamente elitizadas. Desde suas fundações, todas as universidades públicas do país foram dirigidas e orientadas para o projeto capitalista meritocrático ‘de sempre’, incluindo as elites das grandes cidades em suas salas e criando uma condição segura para que as classes dominantes, assim, continuem dominando. Para os guerreiros e guerreiras - estudantes e educadores/as - do Cursinho Livre da Lapa, isso tem que acabar; hoje, uma das principais vertentes da luta pela democratização do ensino superior público se dá justamente pela instauração de cursinhos e mais cursinhos por todas as periferias da cidade. Sempre gratuitos, sempre voluntários, e sempre populares. Esta é uma luta imediata, uma vez que, para de fato transformarmos a educação e o modo como a vemos atualmente, precisaríamos acabar inclusive com o formato competitivo e individualista da educação (sob os moldes capitalistas) e com o sistema da meritocracia expresso no modelo de provões absurdos - os vestibulares. Entretanto, há de se observar com sobriedade a atual conjuntura, e considerar sempre a frase de Paulo Freire: “a cabeça pensa aonde o pé pisa”. Sendo assim, como muito dessa luta por uma educação libertária, trata-se de trabalhar o empoderamento imediato das classes mais pobres; tanto de seus processos econômicos e culturais, quanto de seus processos pedagógicos. Com isso, mais e mais pensadores poderão surgir nas periferias das cidades; pessoas diversas, e das mais diversas áreas. Pensando a partir de seus pontos de vista, ou seja, da cultura e da realidade em que vivem. Sendo assim, deixo às pessoas que lerão esse pequeno artigo as palavras escritas pelos próprios participantes do Cursinho, junto ao convite à participação e militância por uma educação libertária, trabalhando sempre de maneira coletiva, sempre autônoma, sempre não-hierárquica. “Você quer se preparar para uma universidade e procura um cursinho que não pense apenas no vestibular, mas que contribua principalmente na sua formação crítica”? Então te apresentamos o Cursinho Livre da Lapa! Muito prazer! Com um projeto pedagógico alternativo e pensado em conjunto com os alunos, propomos que o conhecimento vá além da simples decoreba e que atinja uma reflexão mais profunda e interdisciplinar. Para quem procura um reforço escolar, está com dificuldade em algum conteúdo ou simplesmente quer voltar a estudar, as portas também estão abertas! Se você se interessa em aprender por meio do debate, mande um e-mail para lapalivre@gmail.com. O Cursinho Livre da Lapa é comunitário, gratuito e aberto a todas as pessoas.
  • 9. 9 PRINCÍPIOS, OBJETIVOS E ACORDOS MÍNIMOS Princípios 1. Autonomia Não submetemos os princípios e objetivos do Cursinho a interferências externas do ponto de vista político, pedagógico e econômico. 2. Anticapitalismo O capitalismo como sistema político e econômico busca explorar e dominar as classes subalternas, nos colocamos contrários a esse sistema e por isso não baseamos nossas ações em relações monetárias. 3. Horizontalidade Buscamos construir relações livres de hierarquia, onde as tomadas de decisões sejam feitas por todas as pessoas envolvidas no processo. 4. Valorização das minorias políticas Acolhemos as maiorias socialmente marginalizadas e não aceitamos posturas opressoras e preconceituosas. 5. Conhecimento crítico Problematizamos verdades preestabelecidas tanto no que diz respeito ao conhecimento requerido no vestibular quanto ao papel convencional de educadores/as em sua relação com estudantes. 6. Federalismo Praticamos uma forma de organização social que busca a autonomia dos indivíduos nas áreas, das áreas no Cursinho e do Cursinho em relação a outros Cursinhos, não havendo, assim, uma centralização de poder. 7. Ação direta A realidade social nos mostra que as autoridades, sejam elas públicas ou privadas, não irão nos fornecer uma educação crítica e que dê acesso à classe trabalhadora às universidades, por isso criamos, coletivamente, nossas próprias condições de luta e os meios pedagógicos para garantir esse acesso, sem esperar ações de intermediários ou representantes. 8. Apoio mútuo Pautamos nossas ações na cooperação e na solidariedade entre os indivíduos que se associam livremente para lutarem pela sua liberdade. O apoio mútuo é antagônico à competição, que é a base da moral capitalista. Objetivos 1. Promover uma relação com o conhecimento autônoma, crítica, prazerosa e significativa.
  • 10. 10 2. Promover o vínculo comunitário com o entorno (bairro e cidade) em especial com as lutas e movimentos sociais. 3. Estimular uma formação e atuação política libertária e anticapitalista. 4. Buscar autonomia política, pedagógica e econômica. 5. Diminuir ao máximo todo tipo de hierarquia, em especial entre educadoras/es e estudantes. 6. Problematizar e construir experiências pedagógicas entre educadoras/es e estudantes. 7. Proporcionar um espaço de formação pedagógica para as/os educadoras/es. 8. Ampliar o acesso da classe trabalhadora à universidade pública, assim como questionar a própria estrutura e acesso à universidade. 9. Construir vivências de educação libertária aberta a experimentações e que considere o direito à diferença. Não são aceitas posturas racistas, misóginas, fascistas, homofóbicas, transfóbicas. 10. Garantir a prioridade de acesso às minorias políticas (pessoas não-brancas, mulheres, LGBT) e estudantes oriundas/os da escola pública. 11. O cursinho não tem fins lucrativos. Acordos mínimos Entendemos que o compromisso com o cursinho é parte de uma construção tanto para estudantes como para educadores/as. Nesta construção as/os educadoras/es (em especial aqueles/as que têm maior acúmulo com experiências horizontais) precisam compartilhar com as/os estudantes essas experiências. Fazer parte dessa construção é assumir algumas responsabilidades em relação às quais seremos cobrados coletiva e politicamente, tomando sempre o cuidado de não personalizar essa cobrança. Essas responsabilidades, que dizem respeito tanto ao espaço físico, quanto as relações políticas, estão descritas nos acordos mínimos:  Compromisso com o horário por parte de educadoras/es e estudantes. (respeitar o horário de término da aula, especialmente a primeira, respeitar o intervalo e não prejudicar a próxima aula)  Compromisso com a frequência (seria interessante saber quem não pode estar todos os dias e se a gente pode fazer algo para que essa pessoa esteja).  A ajuda para o transporte está relacionada à presença na aula (passar a lista de presença é responsabilidade de educadores/as).  Responsabilidade com a limpeza e organização da casa de acordo com os combinados.  Compromisso com os estudos a partir de demandas acordadas - (listas de exercícios, redações, simuladas).
  • 11. 11  Presença de pelo menos uma pessoa por área (entendendo as/os estudantes como uma área) na reunião de gestão e pedagógica é um compromisso para todas as pessoas (estudantes e educadoras/es).  Se uma área não puder vir deve enviar por e-mail impressões/sugestões/ informes sobre as pautas.  Todas as pessoas que não puderem estar na reunião devem ler a ata.  Respeitar os combinados de e-mail.  Respeito aos princípios e objetivos.
  • 12. 12 PEDAGOGIA LIBERTÁRIA, CONSTRUÇÃO POLÍTICA E ESTRATÉGIAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO CURSINHO LIVRE DA LAPA O Cursinho Livre da Lapa (CLL) é um projeto de educação libertária que visa o acesso de estudantes de escolas públicas às universidades públicas que acontece na Casa Mafalda, espaço autônomo libertário localizado na Lapa, em São Paulo. É um coletivo formado por pessoas de diferentes linhas ideológicas, que partem de princípios como autonomia e horizontalidade na tentativa de promover uma experiência de educação transformadora. Por ser um grupo extremamente heterogêneo, acolher a diversidade mostrou-se parte dos incontestáveis desafios de uma educação que se propõe diferente da hegemônica. Por outro lado, sabia-se que seriam encontrados obstáculos na convivência das diferenças. Foi para romper esses obstáculos que diversas instâncias políticas de decisão foram criadas ao longo deste primeiro ano de experiência do cursinho. Imaginou-se que possivelmente surgiriam questões relativas a gênero (inclusive entre educadores e educadoras), por exemplo, quando se deu prioridade a mulheres na matrícula. Formou-se então um grupo de discussão de gênero entre as mulheres - tanto estudantes, quanto educadoras - para que tais questões fossem colocadas, discutidas e em seguida levadas para o interior do grupo misto para tentar resolvê-las. Poucas questões surgiram e, ao final, o grupo de mulheres acabou crescendo e saindo da esfera do CLL. Ao mesmo tempo, muitas estudantes apresentaram dificuldades para pagar o transporte de casa ou da escola até o CLL. As próprias estudantes engajadas e autônomas decidiram organizar festas e saraus para arrecadar dinheiro para o pagamento do transporte, enquanto uma campanha de crowdfunding - que entre outras coisas teria essa finalidade - não se concretizasse. No decorrer do processo, entretanto, foi possível notar que questões das mais diversas possíveis, para além de gênero e sobrevivência material do projeto, surgiam e não eram resolvidas. Essas questões apareciam de maneira descuidada e informal, fazendo com que as propostas de resolução não se mostrassem tão eficazes. Inúmeras vezes educadoras e educadores se colocaram abertamente ao diálogo, o que não foi o bastante. Notou-se que mostrar abertura para ajudar a resolver os problemas não necessariamente faz com que o outro se sinta à vontade para questionar, para se colocar ou apresentar críticas, sejam educadores, educadoras ou estudantes. Por isso, sentiu-se a necessidade de criar outros canais e mecanismos de diálogo e resolução de conflitos para que de fato as coisas fossem ditas e de alguma forma os ruídos fossem diminuindo ao longo do tempo.
  • 13. 13 Surgiram assim dois novos meios de lidar com os problemas. O primeiro deles é a caixinha de sugestões, canal anônimo para quem não se sente confortável em falar abertamente. O outro meio é a Comissão de Mediação Pedagógica, que tem como finalidade a partilha de dificuldades e o diálogo como caminho para se tentar superar os conflitos. Mesmo com a criação desta Comissão, fez-se necessário reiterar a crença na resolução de conflitos cara a cara, que a Comissão era apenas um canal de auxílio no que tange problemas, mas que o ideal seria que ela não existisse. Como um suspiro aliviado, ao nascer a comissão, questões começaram a aparecer. Ao se deparar com o que era dito ou escrito, a Comissão procurou as partes envolvidas na tentativa de conversar com elas. As questões sempre foram colocadas como políticas, na tentativa de não personalizar nenhum problema numa pessoa ou em outra, sempre entendendo que as questões pedagógicas devem ser tratadas de maneira ampla evitando desgastes emocionais e desentendimentos. Em setembro, surgiu uma denúncia aberta de machismo e racismo em uma página de divulgação de um show de apoio à já citada campanha de crowdfunding. A denúncia foi feita por uma mulher negra contra um homem branco de uma das bandas que tocariam nesse evento. Ela e ele nunca fizeram parte do cursinho, e o CLL só passou a ter relação com o episódio a partir do momento em que a denúncia foi feita na página do evento da campanha. Enquanto o CLL se mobilizava diante da denúncia e tentava entendê-la para propor algum encaminhamento (com as mulheres do cursinho indo encontrar a denunciante para ouvi-la) a banda retirou-se do evento. Em uma reunião de mulheres do CLL na Casa Mafalda, marcada para mediar a denúncia, uma educadora cobrou politicamente uma estudante com relação a uma postura que esta havia tomado numa outra ocasião. A estudante, ao se sentir desconfortável com a situação, buscou amparo entre amigas de fora do cursinho. Em seguida, na mesma noite, três delas se dirigiram à Casa Mafalda, interromperam uma reunião mista e, sentindo a cobrança feita como uma agressão racista, agrediram física e verbalmente a educadora. Diante desse novo problema, foi marcada uma nova reunião, agora com os coletivos das três amigas da estudante e os coletivos da educadora. Os objetivos dessa reunião foram expor os fatos, debatê-los politicamente e buscar, pelo diálogo, maneiras de garantir que novas opressões e agressões não fossem cometidas. Tanto durante o processo de mediação em que surgiu a denúncia de agressões machista e racista, quanto na busca por um entendimento entre as partes envolvidas na nova acusação racista e na agressão física e verbal, nós, educadoras, educadores e estudantes do CLL, buscamos tratar todas as decisões políticas como prioritárias e anteriores a relações de ordem pessoal. Acreditamos que as relações de poder, por serem social e historicamente construídas, trazem em si práticas opressoras, as quais podem ser reconhecidas e enfrentadas de forma coletiva, horizontal e sem personificar problemas. Quando tais problemas decorrem de um projeto libertário-
  • 14. 14 pedagógico como o CLL, é fundamental que sejam encarados de um ponto de vista não só político, mas também pedagógico - nunca pessoal. Não temos a intenção de esconder a acusação de racismo. Estamos em pleno processo de discussão sobre ela, pois cabe a nós essa responsabilidade. Também não podemos esconder as consequências do que aconteceu até o momento: depois das acusações e agressões, militantes se afastaram de coletivos, algumas estudantes abandonaram as aulas, houve desentendimentos entre esses coletivos. Estes, entre outros elementos, desarticulam as lutas contra opressões. Neste momento, temos um grande ônus a ser encarado seriamente, que são estes afastamentos de mulheres negras, brancas e estudantes de escola pública dos espaços políticos. E nos fica a pergunta: quem ganha com isso? Nossa proposta política é de diálogo no sentido de construir relações libertárias com pessoas que tenham a mesma intenção; nossa ideia não é conciliar classes, raças, sexualidades, gêneros e usar um pretenso purismo ideológico como cortina para opressões que tem sido sistematicamente minimizadas nos mais diversos contextos e que poderiam estar sendo reproduzidas em nosso coletivo. Nossa intenção é o avanço de uma discussão política que não se limite a apontar as diferenças, mas busque a criação coletiva de mecanismos que impeçam que tais diferenças justifiquem velhas e novas formas de dominação de qualquer pessoa sobre outras. Seremos incapazes de avançar nessa discussão se não estabelecermos parcerias com outros coletivos. Acreditamos que a criação de canais de diálogo para ouvir e denunciar incômodos e agressões contribuem no processo de superação das opressões. Todas elas. Nesse sentido, negar o diálogo como forma primeira de resolver atritos é minar as possibilidades de nos revermos e continuarmos construindo junto. Nós não abriremos mão do objetivo ao qual o CLL tem se proposto desde sua origem: a construção política coletiva que tenha em seu horizonte uma transformação social integral.
  • 15. 15 REFLEXÕES SOBRE O I CICLO DE FORMAÇÃO DO CURSINHO LIVRE DA LAPA (OU SOBRE COMO O PESSOAL TAMBÉM IMPORTA) Durante o mês de agosto de 2015, aconteceu na Casa Mafalda, o I Ciclo de Formação do Cursinho Livre da Lapa. Os encontros aconteceram em quatro noites (alternadas entre quarta e terças feiras) e sobre estes traço algumas considerações. A primeira consideração que me ocorre diz respeito à riqueza do ciclo e o dedicação dos educadores envolvidos no processo de organização e participação deste. Posto que este é o primeiro ano do Cursinho Livre da Lapa e que este grupo de pessoas pouco se conhecia há um ano, o engajamento no ciclo, aparece como um sinal de entusiasmo com o projeto em si e isso se refletiu também nos debates. No primeiro dia do ciclo (05-08), nossa convidada foi a Marina Mauymi que veio nos contar sua experiência nos Bachilleratos populares na Argentina. Ela leciona português e artes na Escuela Libre de Constituicón (na região metropolitana de Buenos Aires). Os Bachilleratos na Argentina são regulamentados pelo Ministério da Educação, o que garante certificação ao final do curso. No caso da escola na qual Mayumi leciona isso se torna fundamental para a manutenção de estudantes, mas não atrapalha (às vezes até garante) a autonomia das aulas. Ali se preza por uma educação não hierárquica (nem entre educadores, nem entre educadores e estudantes). A estrutura de organização é feita por reuniões pedagógicas, assembleias nas quais estudantes também participam. As aulas são pensadas por duplas pedagógicas (para garantir uma pluralidade de olhares sobre o mesmo assunto). Na escola não existe a figura de um diretor e eles se organizam de maneira autônoma no espaço onde também se organiza a FLA (Federação Libertaria Argentina) e isso implica em também pagar o aluguel do espaço fazendo festas, eventos e os educadores também contribuem financeiramente com o que podem por mês. Os educadores trabalham em outros lugares e não ganham nada para lecionar na Escuela Libre de Constituición. O projeto é construído de maneira bem horizontal, não existe uma avaliação formal, existem avaliações coletivas. Ao final desta fala, o debate nos mostrou muitas aproximações entre o nosso projeto e o dela. Começamos a pensar em quais são os limites da nossa atuação pedagógica na medida em que os egressos escolhem caminhos para suas vidas profissionais distintos dos quais nós acreditamos. Pensamos que parte disso pode estar ligado também à autonomia, já que é isso que estamos buscando nesse tipo de educação.
  • 16. 16 Pensamos também que escolhas profissionais muitas vezes esbarram em limitações socioeconômicas e que isso está fora do nosso alcance no final das contas. Mas podendo contribuir para uma visão de mundo distinta do status quo talvez seja o bastante. No segundo encontro (11-08) o Rodrigo Rosa da Biblioteca Terra Livre falou sobre experiências em educação libertária e da experiência das Escolas Modernas. Sua fala, além de apresentar princípios da educação anarquista, nos trouxe questões como: estar dentro do sistema educacional ou criar novas escolas? Qual o papel social da escola? Num projeto anarquista, a escola faz parte de todo o processo revolucionário, isso implica numa escola necessariamente livre, autogerida e laica, com saídas de campo para se conhecer o entorno, que preze o desenvolvimento e autonomia das crianças (ou estudantes de maneira geral) e relações mais horizontais entre estudantes e educadores. Para um projeto assim acontecer é necessário que se consiga garantir autogestão pedagógica, econômica e política. Atualmente existe uma escola que se tenha notícia - a Paideia, na Espanha - que consegue garantir sua autogestão em todos esses aspectos e que se considera anarquista. Rodrigo apresentou alguns exemplos de escolas anarquistas que funcionaram em algum momento da história e apresentou os fundamentos da escola moderna, pensados por Ferrer. Estes fundamentos baseiam-se na colaboração, na observação e na experiência, na ausência de prêmios e castigos (o que desestimula a competição entre estudantes), a ausência de seriação e avaliações, a ideia de coeducação, pois no processo educativo enquanto educadores aprendemos o tempo inteiro. Além de colocar o estudante não no papel de receptor do conhecimento, mas de autor da própria aprendizagem. Durante o debate surgiu a questão sobre como abrir uma escola nesses parâmetros. Quais são os limites legais para isso? Concluímos que diante da nossa legislação talvez não fosse possível, pois certamente esbarraríamos em alguma limitação (econômica ou política provavelmente, já que a LDB garante autonomia pedagógica ao menos). Mas, ao reunir no mesmo lugar, numa terça feira à noite, um número grande de pessoas interessadas em pensar num projeto de educação realmente autônomo, se faz notar a urgência da criação de espaços onde caibam essas discussões. O terceiro encontro (19-05) foi com o João Branco, discutindo o levante de professores em Oaxaca, no México em 2006. Sua fala trouxe inúmeros aspectos que dialogam com os outros dois encontros e vão além. Ele contextualizou o levante de Oaxaca e pontuou que no México, a ideia de revolução vem geralmente acompanhada da luta dos povos por continuar vivendo suas tradições e criticou o
  • 17. 17 fato do termo revolução ter sido apropriado por setores da esquerda que disputam a tomada do poder. Mas, refletiu, não é necessário tomar o poder. Em Oaxaca isso faz todo o sentido. Depois de uma greve de professores que foi fortemente apoiada pela população local a região se transformou numa comuna autogestionada e durante este levante, que durou seis meses, a comunidade passou a se organizar como os indígenas (maioria da população da região). Segundo João, no filme “Un poquito de tanta verdad”, que mostra o panorama político do levante, os educadores perceberam que as barricadas foram “a expressão máxima de um processo educativo”, uma vez que não seria possível mais, a partir do levante, escola e vida comunitária estarem dissociadas. Sendo aquela, uma continuação desta e não um rompimento. Neste sentido, o processo educativo é um processo coletivo, social. A partir dali a importância para a cultura dos povos originários só aumentou no processo educativo e isso nos coloca luz sobre o que entendemos por educação ocidental (que João classificou como políticas de terror), pois que costuma ser “etnocida”, “culturicida”, já que arruína a autoestima dos povos e coloca seus saberes como de segunda ordem, ao colonizar a vida material e seu imaginário, inclusive sobre si mesmos. O último encontro (25-08) foi destinado para nós apresentarmos nossa experiência no Cursinho Livre da Lapa. Dividimos nossa fala em: histórico, como tem sido esse processo do ponto de vista dos educadores e das estudantes. Eu e a Elo falamos um pouco sobre o processo da Casa Mafalda começando a se entender como espaço educativo: não é isso, no fundo, um espaço autônomo? E sobre como pensar no cursinho foi pensar com os estudantes desde o início. A ideia do fazer junto nasceu com o projeto, ou o projeto nasceu dela? Não sabemos. Está tudo muito imbricado agora. Além disso, ou justamente por isso, nesse projeto cabe o desajuste, cabem aqueles que não se adequam na escola tradicional. Juninho pontuou que pra ele o cursinho é encarado como um processo de formação política, que propõe uma relação diferente com o ensino e a relação forma- conteúdo das aulas também é outra. Este é um espaço de formação para os educadores também. Zé concordou e acrescentou que a forma como fazemos as coisas ali são tão diferentes, que muitas vezes é difícil. Pois não estamos acostumados a lidar com os próprios problemas sem que um “adulto” resolva, por isso a resolução de problemas ainda acaba muitas vezes recaindo sobre os educadores. Giovana colocou que para ela a relação horizontal e próxima com os educadores e a percepção de que as aulas e questões pertinentes ao cursinho são realmente pensadas em conjunto com os estudantes são os fatores mais importantes a serem destacados. Virgínia colocou como fundamental o não estímulo à competição que se tem nos cursinhos tradicionais, concordou com a Giovana em
  • 18. 18 relação à construção coletiva das aulas ser um ponto fundamental no processo, além de chamar atenção para as saídas de campo que ela achou que complementaram os conteúdos das aulas. Ela ressaltou também a importância do respeito que se tem pelos indivíduos neste espaço e de como tem aprendido a respeitar o próprio tempo no que diz respeito ao vestibular: sem crises, sem cobranças, quando tiver que ser, será! Rafa trouxe também um relato sobre como se aproximou do cursinho e sentiu ali em espaço de liberdade. Ele contou que no ensino formal ele se sentia culpado por não aprender, mas, disse, “aqui eu aprendo, aqui a gente troca, aqui é um lugar que agrega na minha vida”. Pra ele aquele lugar é um experimento da liberdade, de acolhimento, de experiência que transforma. As falas tanto dos educadores, como - e principalmente - das estudantes refletiu de alguma maneira questões que apareceram nas falas dos convidados dos encontros anteriores: a ideia de horizontalidade nas relações, de construção coletiva, de existir de fato possibilidades para outro tipo de educação e que ela pode funcionar. Assim, com sucessivos relatos pessoais o debate seguiu e todos sempre pontuavam que o relato seria pessoal, como se isso fosse um problema. Foi o Danilo Mandioca que ponderou: ali o pessoal, o individual é importante. Pra gente importa quem é cada um, quais as vontades e as dificuldades, os medos. Os relatos pessoais são importantes ali, porque fora eles não são. Fora eles são tolices, fora cada indivíduo não passa de um número e dependendo de onde esse “número” morar, dependendo da classe social, da cor da pele ele vira uma estatística. E a maioria dos nossos estudantes são passíveis de entrar pras estatísticas. No mundo que a gente quer construir os indivíduos, são, antes de tudo. Eles tem rosto, tem nome, vontades. E claro, como pontuo o Juninho depois, ali, com aquele pequeno número de pessoas somos exclusivos. Somos poucos. É preciso voltar à pergunta feita pelo Rodrigo Rosa e reiterada pelo próprio Juninho: como estar dentro do sistema educacional e fazer diferente? Como transformar a educação formal caminhando na direção que a gente acredita? Como garantir que a educação pública seja de fato transformadora? Como transformar nossas relações com a educação para fazer do viver uma experiência de educação integral e coletiva? Luara Carvalho - educadora da área de história do Cursinho Livre da Lapa
  • 19. 19 COMISSÃO DE MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA Comissão de Mediação Pedagógica surgiu para suprir a falta de um mecanismo capaz de mediar conflitos entre estudantes, educadores e educadoras do Cursinho Livre da Lapa. Apesar da existência de reuniões pedagógicas e de gestão, caixinha de sugestões, reuniões de mulheres e até mesmo laços de afeto e confiança entre as pessoas do Cursinho, que poderiam parecer suficientes para a resolução de problemas e conflitos, no meio do primeiro ano de existência do projeto percebeu-se que essas instâncias não supriam a necessidade de superar obstáculos nos mais diferentes tipos de relações. Entende-se por obstáculos: metodologia de ensino, didática e outros aspectos pedagógicos, dificuldade de reconhecer ruídos na comunicação, falta de predisposição ao diálogo, diferenças de visão de mundo, dificuldade de expressar incômodos e não reconhecer no coletivo pessoas de confiança para mediar conflitos. A Comissão foi procurada para ajudar algumas vezes e mediou caso a caso. Segue alguns relatos de como a Comissão atuou. Houve casos de estudantes não sentirem abertura para participar ativamente das aulas, ou de notarem que professores de algumas áreas se preocupavam mais em avançar com o conteúdo do que em garantir que todas as pessoas estivessem acompanhando as aulas sem dificuldades. Nesses casos, a Comissão comunicou o incômodo aos professores, que se dispuseram a rever suas práticas em sala de aula. A Comissão não teve uma devolutiva das estudantes sobre todos esses casos, no entanto as que vieram foram positivas. Houve também mais de um caso de educadores/as mostrarem incômodos com relação a outros educadores/as da mesma área. A Comissão, após conversar individualmente com eles e elas, reconheceu nos incômodos diferenças metodológicas e dificuldade de comunicá-los sem ruídos aos seus pares. A proposta para resolver esses problemas foi um diálogo entre eles e elas mediado por pessoas da própria Comissão. Infelizmente uma dessas conversas não aconteceu, enquanto a outra se deu no final do período de aulas e, por ter acontecido tão tarde, não houve um retorno para saber como essa relação vem se desenvolvendo. Na caixinha de sugestões, cujo cuidado ficou a cargo da Comissão, apareceram bilhetes anônimos, tanto pautando conflitos e diferenças de visão de mundo quanto brincadeiras e recados evasivos como “sei lá, tem muita coisa errada”, aos quais a Comissão não deu nenhum encaminhamento prático. Em um desses bilhetes, que apontou a necessidade de uso de linguagem não-sexista por educadores em sala de aula, disparou-se uma mensagem para a lista de e-mails informando o incômodo sem que a Comissão interferisse na situação.
  • 20. 20 Outras pessoas solicitaram a intervenção da Comissão. Não será feito o relato de todos os casos pela dificuldade de contá-los sem expor as pessoas que pediram a mediação. Pode-se dizer que em todos os casos a Comissão de Mediação Pedagógica frisou sua finalidade de partilhar dificuldades e de promover o diálogo como caminho para se tentar superar os conflitos. Mesmo com a criação desta Comissão, fez-se necessário reiterar a crença na resolução de conflitos cara a cara, que a Comissão era apenas um canal de auxílio no que tange problemas, mas que o ideal seria que ela não existisse. Houve um momento em que as pessoas da Comissão se sentiram no limiar entre a mediação e a intervenção direta sobre o problema. Percebeu-se que, sem um cuidado de apenas ajudar a apontar soluções ao invés de solucionar o problema da relação alheia, corria-se o risco de a Comissão fazer o papel de julgar os casos e apontar sentenças. Esse cuidado deve ser permanente a fim de que não se assuma o papel de serviço terceirizado de resolução de problemas. Outra preocupação da Comissão foi o de pautar a mediação dos conflitos em termos políticos e pedagógicos. Político no sentido de ver nas relações de poder vícios que impedem a construção coletiva de um projeto de pedagogia libertária e que prefigure a sociedade como gostaríamos que ela fosse; e pedagógico por se tratar de uma instituição que tem em seu horizonte o processo de ensino e aprendizagem com o objetivo de pessoas terem uma formação política orientada para a transformação social além de serem capazes de passarem no vestibular. A ideia foi evitar que, de maneira espontânea, os conflitos pudessem ser encarados como problemas pessoais e não ter a mediação orientada para a construção política a qual o projeto do Cursinho se propõe. Vale apontar que participar da mediação de conflitos de pessoas do Cursinho fez com que as pessoas da própria Comissão repensassem suas relações em termos pedagógicos e o políticos, o que sugere que há pedagogia não apenas na sala de aula ou em reuniões de educadores/as e estudantes. Essa avaliação reforça a necessidade de a Comissão ser rotativa - prevê-se a mudança de seus membros a cada seis meses - não apenas para que outros olhares sejam lançados sobre os problemas que permeiam as relações, mas também para que todas as pessoas possam se perceber como capazes de identificar em si suas responsabilidades nesses relações e de assim se empoderarem para a construção de projetos políticos como o do Cursinho.
  • 21. 21 QUANDO A VONTADE DE IGUALDADE REPRODUZ PRIVILÉGIOS: A RELAÇÃO ESTUDANTE-EDUCANTE O ideal libertário prevê relações baseadas em apoio mútuo e solidariedade. Em uma sociedade em que a violência é banalizada e oprimidos e opressores se misturam, fazer com que nossas relações sejam mais justas se torna um processo difícil. Reinventar a moral humana, como proporia Bakunin, e criar relações em que não caibam opressões de nenhum tipo, são em si tarefas hercúleas diante dos aparelhos ideológicos e repressivos contra os quais temos que lutar; pior fica quando subestimamos essas tarefas. Subestimar a necessidade de mecanismos que garantam relações livres é fazer o jogo de quem nos oprime. Quando não premeditamos mudar nossas relações, perdemos o cabo-de-guerra da transformação social e ajudamos a consolidar ainda mais a ordem das coisas. A pedagogia criou o conceito de relação professor-aluno (que poderia abranger maior pluralidade se chamada de relação estudante-educante). Como toda relação, não é possível isolar da sociedade em que se insere a relação entre quem educa e quem aprende. Assim, quando as partes não tomam os devidos cuidados, a relação estudante-educante pode reproduzir machismo, sexismo, homotranslesbofobia, fascismo, etarismo e qualquer outra discriminação, preconceito ou opressão que alicerça nosso cotidiano. Além dos fatores sociais, externos (mas não menos conectados) à educação formal, que regulam a relação entre educadores, educadoras e estudantes, há um elemento inerente ao processo de ensino e aprendizagem: é a intencionalidade intrínseca aos papéis dessa relação. Coberto de razão estava Paulo Freire ao ressignificar os papéis de educador e educando, renomeando-os para educador- educando e educando-educador: é impossível não aprender quando se ensina, e quem aprende sempre tem algo a ensinar a quem educa. Uma leitura descuidada de Freire pode sugerir que os atos de educar e de ser educado se misturam, se confundem a ponto de serem os mesmos. No entanto, Freire nunca negou a intencionalidade de educadores e educadoras. Tal intencionalidade é nitidamente exposta em sua análise da ética do educador em “Pedagogia da autonomia”. A intenção de educar é o que diferencia educação de educação formal, faz com que a pedagogia seja uma área de conhecimento. Assim, os saberes pedagógicos, mesmo sendo compartilhados com estudantes, fazem com que educantes, que detêm esse conhecimento, tenham um papel necessariamente diferente em sua relação com estudantes. Assim, a relação não pode ser em si horizontal, uma vez que os saberes delineiam a diferença entre os papéis dos dois lados da relação.
  • 22. 22 Reconhecer as diferenças e as assimetrias entre os papéis de estudantes e educantes não implica necessariamente em dar justificativa a pretensos privilégios e abusos por parte de educadores e educadoras. É fundamental ter mapeadas tais diferenças justamente para não transformá-las em privilégios. Por outro lado, ao negligenciar a assimetria entre os papéis, corre-se o risco de tornar a relação abusiva. Decorre dessa constatação a responsabilidade de quem está em uma posição reconhecida de privilégio construído socialmente, como é o caso de quem educa, de impedir que a diferença entre papéis se transforme em privilégio. No Cursinho Livre da Lapa, já houve em seu um ano e meio de história algumas situações em que a falta de cuidado de educadores e educadoras em sua relação com estudantes criou problemas ao projeto como um todo. Uma delas aconteceu em setembro de 2015. Na ocasião, educadores e educadoras perceberam que estudantes iam ao Cursinho, mas não entravam nas aulas; não seguiam a orientação de fazer exercícios em casa; e, em alguns casos, desqualificavam momentos de aprendizagem com atitudes que sugeriam pouca responsabilidade com o objetivo de aprender. No olhar dos educadores e das educadoras, estudantes de maneira geral pareciam não ter percebido sua responsabilidade com a própria aprendizagem, não estavam cientes de que, enquanto partes da relação, deveriam ter o mínimo comprometimento com o aprender e gastar alguma energia para chegarem ao objetivo, seja ele passar no vestibular ou se relacionar de maneira diferente do que lhe é imposto em outros espaços. Educadores e educadoras, depois de conversarem entre si e entenderem que esse sentimento de desresponsabilização de estudantes era comum a todas, resolveram não esperar uma nova reunião (ou assembleia) mensal para tocar nesse assunto e resolveram chamar uma reunião geral extraordinária. Essa reunião aconteceu durante o horário de uma aula, a fim de garantir a presença de um maior número de estudantes. Na reunião, estudantes ouviram educadores e educadoras contarem o que viam acontecer nos últimos meses, como achavam negligenciadas as responsabilidades com a própria aprendizagem e que provavelmente havia uma reprodução, de maneira irrefletida, de práticas da escola tradicional por parte de estudantes. A resposta de estudantes àquela reunião, acontecida em setembro, veio na última hora do encontro de fechamento e avaliação do ano, chamado fórum, em dezembro. Estudantes contaram terem se sentido acuadas e acharam que educadores e educadoras foram “blocadas” à reunião para fazer a cobrança, como se estivessem abusando de sua posição de educadores. Esse incidente sugere ruídos na comunicação entre educantes e estudantes. Primeiro porque parece não ter ficado claro que não é um problema em si haver cobranças em um diálogo; afinal, se há responsabilidades a serem cumpridas a fim de
  • 23. 23 que as expectativas de aprendizagem e organização de qualquer projeto sejam atingidas, todas as pessoas envolvidas devem cumprir com seus papéis, de modo que, quando não cumprem, acabam por colocar em risco os objetivos a serem atingidos. Portanto é fundamental haver cobrança para que se perceba como as responsabilidades de estudantes e educantes é igualmente importante para o avanço do Cursinho. Afinal, apoio mútuo e solidariedade só existe quando compartilhados e só se concretizam quando a responsabilidade é mutuamente assumida. Outro ruído é o de que educadores e educadoras não deveriam conversar entre si enquanto uma frente e “blocarem”, chegando a um consenso entre si. O equívoco nessa ideia surge quando não se reconhece a diferença entre os papéis e, além disso, pressupõe-se que tal diferença implica de maneira inequívoca em privilégios, que se concretizou na cobrança sentida pelas estudantes. Irresponsável seria negar as diferenças e ignorar que as pessoas partem de histórias diferentes para cumprir coletivamente com um dado objetivo. Confundir o princípio de igualdade com o de equidade é um erro recorrente no meio libertário, e cabe a quem reconhece a diferença entre esses dois princípios realçá-los para que a igualdade não se torne opressão. É elementar que mecanismos sejam criados em nossos projetos para que não reproduzamos opressões. Para tanto, precisamos olhar para o que já foi construído, avaliar o que estamos construindo e realinhar sempre que possível nossos princípios aos nossos objetivos. Não se chega aos objetivos de maneira espontânea, e solidariedade e apoio mútuo não nascem naturalmente de nossas práticas. Transpor a ideia de relações mais justas à relação entre educantes e estudantes não é tarefa fácil, e exige constante cuidado para que essa relação se torne de fato horizontal, uma vez é impossível fugir à diferença entre aos papéis que dela fazem parte. A defesa da diferença entre os papéis de educantes e estudantes não pode ser confundida com os tradicionais abusos e privilégios de professores e professoras em ambiente escolar. Se não deixarmos clara tal diferença, faremos com que a inexistência de mecanismos que promovam a equidade permita a reprodução da opressão e dos privilégios de quem educa, que têm sistematicamente sido fantasiados de igualdade. Zé Almeida - educador de Física do Cursinho Livre da Lapa
  • 24. 24 DIVISÃO DE TAREFAS ENTRE CURSINHO LIVRE DA LAPA E CASA MAFALDA O Cursinho Livre da Lapa foi criado por pessoas da gestão da Casa Mafalda que sentiram a necessidade de criar um projeto de pedagogia libertária que pudesse consolidar alguns dos objetivos da Casa, como fazer com que pessoas do bairro se visitassem e frequentassem o espaço, deixar o período da tarde menos ocioso, aumentar o tempo disponível da Casa a quem quisesse frequentá-la e criar um espaço pedagógico de formação política, com espaço compartilhado de gestão e tomada de decisões. Um ano e meio depois de seu início, nem todos esses objetivos foram concretizados. O Cursinho é constituído por estudantes que em geral pegam ônibus para chegarem a Casa. As decisões políticas têm sido tomadas coletivamente. No entanto, no momento em que a gestão da Casa Mafalda, constituída atualmente por três pessoas que entraram na gestão há menos da metade do tempo de vida desse espaço autônomo, são sensíveis alguns problemas com relação à gestão e à participação do Cursinho na tomada de decisões na Casa. A gestão da Casa Mafalda tem uma história conturbada. O espaço foi criado para ser um espaço de formação e divulgação político-cultural e sede do time de futebol de várzea Autônomos FC, o qual a geria. Os jogadores do time, responsáveis pela compra do ponto comercial (Espaço e Estúdio Fábrica Lapa) que existia no imóvel alugado da Rua Clélia, 1745, propuseram organizar o espaço de maneira estritamente horizontal, sem criar qualquer tipo de órgão ou estrutura organizativa para dividir as tarefas e nomear responsáveis por cada uma delas. Como consequência da inexistência de qualquer estrutura que cobrasse a responsabilidade por limpeza, cuidado com estúdio, bar, compra de bebidas para festas etc., algumas pessoas naturalmente passaram a cumprir com essas tarefas enquanto grande parte do grupo se isentava de assumir algum papel na gestão do espaço. Nos primeiros meses de vida, essa rotina, que sobrecarregava as pessoas mais frequentes no espaço (principalmente as duas que nessa época ocupavam um quarto como moradia temporária), levou à criação de reuniões de gestão, abertas a quem quisesse participar da Casa. As reuniões eram abertas, e quem era do time não tinha qualquer obrigação de participar delas ou assumir qualquer tipo de responsabilidade, por mais que todos eles frequentassem o espaço em seus eventos e atividade, e até promovessem os próprios eventos e encontros do time. As pessoas que costumavam participar dessas reuniões, constituída por parte do time e por outras que não eram do Autônomos, assumiriam as responsabilidades inerentes ao cuidado com a Casa. Nascia o embrião do coletivo gestor da Casa Mafalda, corpo que, em 2013, assumiria uma identidade absolutamente independente do time. Tal identidade foi em parte determinada pela concentração de responsabilidade nas mãos de poucas
  • 25. 25 pessoas, que tiveram que tomar as decisões para garantir a sobrevivência da Casa. Esse grupo passou a se reconhecer como um coletivo quando, estando a Casa em uma de suas crises financeiras e de organização, propôs o encerramento das atividades no espaço. O time não mostrou interesse em continuar tocando o espaço e se desresponsabilizou por dar sequência às atividades. Nesse instante, o grupo se autodefiniu como coletivo gestor da Casa Mafalda. O espaço deixava assim de ser a sede do Autônomos FC. Desde então, o coletivo gestor assumiu as responsabilidades da organização espacial e financeira do espaço. Apesar de alguns indivíduos e coletivos terem estabelecido parceria e usassem o espaço (como fazia um estúdio sublocado para fins particulares, a Fanfarra do M.A.L., reuniões diversas, o coletivo bagu.io, que criou em um dos quartos um espaço para pensar em tecnologia etc.) a responsabilidade pela manutenção do espaço físico (pintura de paredes, vazamentos, infiltrações) e pagamento de contas sempre se concentrou nas mãos do coletivo gestor. Tal responsabilidade foi uma das heranças deixadas pelas reuniões de gestão que precederam o coletivo. Raros foram os movimentos de compartilhar essas responsabilidades. Em parte, porque ninguém tinha muito interesse em assumir a gestão financeira e de espaço físico de um projeto (não é à toa que poucos coletivos têm seus próprios espaços). Além disso, provavelmente as pessoas não previram os problemas de concentrar responsabilidades – por mais que em a má divisão de tarefas e a sensação de prestação de serviços de organização e gestão já tivesse sido percebida como um dos motivos que levaram à separação entre a Casa e o time Autônomos e Autônomas FC. O Cursinho trouxe novos ares à Casa. Novas pessoas frequentando o espaço parecia impor uma nova dinâmica à organização do espaço. Apesar dessa expectativa, o Cursinho sempre teve dificuldade de se reconhecer (e como consequência ser reconhecido) como um coletivo, o que tornava nebulosa sua relação com a Casa. Como o coletivo gestor da Casa poderia fazer algum tipo de cobrança ao Cursinho se este era composto por pessoas que não assumiam todas as tarefas, se não tinha existia estrutura de representação delegada ou se, para piorar, não se chegou a ter confiança de que todas as pessoas envolvidas, estudantes e educantes, compreendiam o projeto em que se inseriram? Embora o Cursinho se organizasse em reuniões mensais, as tarefas muitas vezes deixavam de ser executadas por falta de pessoas que quisessem ou pudessem se responsabilizar por elas – assim como acontecia no início da história da gestão da Casa Mafalda. No início do segundo ano do Cursinho, houve um crescimento político em sua organização. Como ao final de 2015 o diálogo como forma de resolução de problemas parecia ainda ser subestimado por estudantes, educadoras e educadores, o que sugeria que não se concretizara o desejo de o Cursinho ser um espaço de formação política e diferenciado no que diz respeito à forma em que as decisões são
  • 26. 26 tomadas, optou-se por fazer assembleias semanais. O aumento na frequência de reuniões poderia encurtar o caminho para o objetivo de as pessoas poderem conversar mais e se construírem politicamente, dada a ausência de fóruns com esse caráter em outros espaços de nosso cotidiano. A inexistência de estrutura organizativa parece ter resultado em pessoas, em especial estudantes, mais engajadas com o projeto do Cursinho. Por discutirem semanalmente a importância de participarem da organização das aulas e de todas as tarefas que decorriam de estarem ali em um espaço autônomo, rapidamente as estudantes se apropriaram do espaço e, conforme sentiam a demanda de ajudarem na gestão da Casa, cumpriam com as tarefas aparentemente mais relevantes, como limpeza e realização de eventos para ajudar a pagar o aluguel do espaço, além de, obviamente, gerirem o próprio Cursinho. Para quem não conhecia a dinâmica e a história da Casa Mafalda, foi difícil desvencilhar os dois projetos e compreender que havia uma divisão de tarefas assimétrica e, portanto, papéis diferentes entre quem frequentava e usava o espaço. Embora coletivo gestor da Casa e Cursinho tenham pessoas, objetivos, calendários e geografia comum, eram corpos e projetos distintos. Naturalmente, estudantes do Cursinho que não tiveram qualquer estímulo para reconhecer tais diferenças se sentiram como pertencentes a um único projeto, em que Casa e Cursinho se misturavam. A confusão na divisão de papéis só foi percebida com o anúncio feito pelo coletivo gestor de que iria ser dissolvido por diversos motivos, sendo um deles a falta de interesse das três mulheres que então o constituíam em continuar a gerir um espaço com uma história desalinhada ao interesse das três. O coletivo gestor tinha planos de se tornar um coletivo feminista, e convidou o Cursinho e outros coletivos para dividirem a gestão de um novo espaço autônomo, em outro endereço. As estudantes, graças a alguns ruídos na comunicação dessa decisão, mostraram-se decepcionadas e acharam que a Casa e o Cursinho iriam acabar. Para piorar, não participaram dessa decisão depois de terem dedicado esforços para manter o espaço, com festas, limpeza, trabalho, dinheiro... Mais uma vez a má divisão de tarefas parece ter sido mal feita na Casa e causado transtornos a quem se envolveu com a gestão da Casa Mafalda e, agora, também do Cursinho. Em reuniões realizadas para se decidir sobre como o Cursinho deveria agir nessa transição para um novo espaço autônomo, chegou-se ao consenso de que um coletivo gestor do espaço, com responsabilidades diferentes de outros coletivos que o utilizam, é problemático por concentrar em si tarefas que levam ao desgaste das relações, reproduzindo a cultura de prestação de serviços (essencialmente exploratória) que é um dos maiores alvos de críticas do meio anarquista e libertário. Conclui-se nessa reunião que a gestão do espaço (independente de haver ou não a mudança para outro imóvel) deve ser
  • 27. 27 compartilhada entre coletivos – o que na realidade, na visão de estudantes, era o que deveria estar acontecendo desde sempre. Fica o aprendizado de que a má divisão de tarefas, a falta de clareza de papéis e o não-reconhecimento da assimetria das relações pode levar a desentendimentos que podem inclusive por nosso projetos coletivos em risco. Zé Almeida - educador de Física do Cursinho Livre da Lapa
  • 28. 28 RELATOS DE ATIVIDADES DAS ÁREAS EM 2015 BIOLOGIA A equipe de Bio era composta por duas educadoras, uma delas chamada Livia (a outra não me lembro). Elas começaram os dois primeiros meses ensinado Ecologia como foi decidido por elas em conjunto com xs estudantes. Em seguida, com a entrada do Valter (3º educador) e saída das duas primeiras, a turma começou a ver genética, pois havia maior conexão com a matéria dada pela área de química e visava promover interdisciplinaridade. Neste momento o Rodrigo e a Renata entraram no projeto (4ºe 5ª educadorxs), pouco após o início da genética. As aulas de genética começaram com a primeira lei de Mendel atrelada a conceitos de citologia. Como não havíamos abordado citologia antes, as aulas ficaram confusas e difíceis para a maior parte dxs estudantes. Mesmo assim, as aulas de genética continuaram até a segunda lei de Mendel e com noções de casos especiais, como epistasia, codominância, dominância incompleta, alelos múltiplos e ligação gênica. Prosseguimos com a entrada do Luis (6º educador) e saída do Valter. No segundo semestre iniciamos as aulas de citologia, focando nas organelas e suas funções. Passamos para mitose e meiose e começamos a colocar mais exercícios com foco no ENEM e vestibulares. No começo do semestre a Renata saiu do projeto. Depois fomos para biomoléculas, explicando como é a síntese de proteínas e as diversas funções destas. A grande maioria das aulas foi expositiva. Apesar da disposição da sala, com cadeiras em torno de uma única mesa grande, tivemos poucos momentos de discussão. Por outro lado, nesses momentos em que as aulas foram mais construtivistas ou que levavam a uma reflexão tivemos um bom feedback com as aulas sendo bem recebidas pelos estudantes. Quanto aos recursos audiovisuais utilizamos principalmente de notebook para passar vídeos e slideshows, além do quadro branco. ESTUDANTES Aulas Introduzimos aulas de redação, pois passar no vestibular é objetivo da maioria das/os estudantes (nem por isso deixamos de criticar o sistema de ingresso nas universidades), fizemos simulados também para nos acostumarmos com a estrutura do exame e com a prova de resistência física que é o vestibular.
  • 29. 29 As áreas sempre tentam fazer com que as aulas sejam menos “formais” então sempre que possível usamos vídeos, textos, jogos, experimentos e debates para complementar o conteúdo. Além das aulas em sala, aconteceram saídas de campo e encontros que fizemos para gerir o espaço, resolver conflitos e nos formar pedagógica e politicamente. Nas aulas de linguagens e política discutimos temas que não, necessariamente, irão ser cobrados no vestibular. No final do semestre passado, na aula de linguagens, decidimos estudar cultura indígena e fizemos algumas aulas para introduzir o tema: selecionamos jogos e brincadeiras de alguns povos e brincamos, convidamos os militantes Giva e Sasá para falarem sobre as lutas dos povos e, por fim, fizemos uma saída pelo bairro perguntando para as pessoas sobre o que elas sabiam sobre o “índio”. A partir dessas atividades escolhemos temas de estudo para nos aprofundarmos. Focamos em produções (textos, vídeos) feitas por indígenas para não cairmos em preconceitos e suposições errôneas. Problematizamos a imagem do “selvagem” que é construída em cima deles, tentamos desconstruir a imagem generalizada em torno dos povos e estudamos quais são as lutas que enfrentam. Após encerrarmos esse assunto retomamos o tema identidade, o que foi o nosso primeiro foco no começo do ano. Analisamos imagens e como elas nos influenciam diariamente e para finalizar, produzimos algo que nos representasse de alguma forma, essa última aula, com a produção, aconteceu na escola ocupada Romeu de Moraes. Na área de política dividimos os temas, escolhidos em assembleia no começo do ano, em blocos. Na primeira aula do bloco introduzimos o tema e na segunda aula convidamos alguém com mais propriedade ou experiência para falar. Geralmente, os temas estão relacionados às lutas sociais. Nesse semestre tratamos de temas como redução da maioridade penal, assistimos ao doc. “Enquanto a liberdade não canta”, lutas dos FGTS sob a perspectiva de uma mulher negra lésbica, a situação de mulheres que trabalham em empresas terceirizadas com a Thaís Lapa para falar dos seus estudos sobre, lava jato e corrupção, história das lutas por direitos e cotas (políticas afirmativas), convidamos uma professora grevista e uma aluna secundarista para falarem sobre as lutas pela educação. As últimas aulas foram dadas pelas/os estudantes que ocuparam as escolas Fernão Dias Paes e Prof. Manuel Ciridião Buarque, elas e eles nos contaram como foi o processo de ocupação, os motivos, as represálias que estão sofrendo e como se organizam dentro da ocupação. Nas últimas semanas transferimos nossas aulas para a escola ocupada Romeu de Moraes, foi uma experiência bastante rica ver as/os alunas/os ocupando, cuidando e se apropriando do espaço da escola. Na última semana de aula voltamos para a Casa Mafalda para focar na segunda fase do vestibular.
  • 30. 30 Organização/ Autogestão Reunimos-nos mensalmente em reuniões para resolver conflitos e desafios que surgem diariamente, nos organizamos em comissões rotativas e a cada semestre temos um fórum para refletirmos sobre o que passamos e para organizarmos o próximo semestre. Num primeiro momento organizamos um sarau e festas, depois uma campanha de financiamento coletivo, pois não somos financiados por instituições ou pelo governo então temos que arrecadar, nós mesmos, os fundos para pagarmos aluguel, transporte de estudantes e materiais. Fora das aulas No mês de agosto fizemos o nosso primeiro ciclo de formação pedagógica, em quatro encontros abertos, chamamos pessoas que tiveram ou estudaram sobre experiências de pedagogia libertária. No primeiro encontro (5/08) convidamos a Marina Mayumi para apresentar os Bachilleratos populares na Argentina e nos contar sobre suas vivências na Escuela Libre de Constitución. No segundo encontro (11/08) o Rodrigo Rosa apresentou as Escolas Modernas e os princípios da educação anarquista. Na semana seguinte (19/08), convidamos o João Branco para falar mais sobre o levante popular de Oaxaca, em 2006, que teve como estopim a greve dos professores do Estado. No encerramento do ciclo, nós do cursinho, partilhamos as nossas experiências e perspectivas. FÍSICA Quem procura diferenciar o Cursinho Livre da Lapa de outros pela organização do horário das aulas poderá achar que se trata de mais um cursinho pré-vestibular tradicional. As aula de Física, com duas horas de duração, ocorreram semanalmente em horários fixos, normalmente às quintas-feiras – a não ser quando houve alguma atividade de outra área que deveria acontecer necessariamente na quinta-feira, trocando-se assim o dia em algumas ocasiões. Como é comum em cursinhos comunitários, a evasão de estudantes é alta, de modo que no meio do segundo semestre as duas turmas iniciais se uniram em uma, ainda com horário semanal fixo. Até aí, nada de novo. No entanto, uma análise mais profunda pode apontar como o diferencial do Cursinho está na tentativa das/os educadoras/es de alinhar os elementos da sala de aula e da relação entre estudantes e professores/as ao que se conhece de propostas libertárias de educação formal. Quando se trata do ensino de Física, um dos principais desafios é buscar condições para uma aprendizagem de fato significativa,
  • 31. 31 objetivo que faz da sala de aula uma grande trincheira político-pedagógica. Sabe-se que um projeto pouco estruturado ou um plano de ação pouco consistente pode resultar em firmes obstáculos à superação de dificuldades aparentemente menores, como encontrar motivação intrínseca para se aprender Física ou romper com o preconceito de que “Física é difícil”. Quando se trata de um projeto de pedagogia libertária como o do Cursinho Livre da Lapa, esse desafio se soma ao de implementar um projeto político radical no que diz respeito à horizontalidade da relação professor/a-estudante e a não-reprodução de opressões incorporadas à prática de ensino (em especial o de ciências) ao longo do tempo. Uma dificuldade de se ensinar Física sob uma proposta pedagógica e política de orientação libertária decorre da autoridade atribuída ao discurso científico. Esse discurso, ao se apresentar como totalizante e expressão da Verdade, menospreza a sabedoria popular e inferioriza outras formas de se construir o conhecimento. A Ciência se apresenta como autoridade para expressar a natureza, hierarquizando assim os saberes. Mostrar diferentes pontos de vista sobre um determinado problema e como as diferentes formas de ver o mundo podem contribuir para resolvê-lo em perspectivas distintas foi uma maneira de colocar em questão a rigidez de um currículo como o de Física, tradicionalmente tecnicista e que coloca a natureza como um objeto independente de quem a observa e analisa. Valorizar o lado humano e a subjetividade do conhecimento científico foi uma preocupação presente nas aulas de Física, a qual deve ser imprescindível numa pedagogia que se pretende libertária. Outro desafio é o de reconhecer onde o machismo se manifesta na Física – ciência em que, como as outras exatas, homens têm mais espaço que qualquer outro gênero para protagonizar a construção do conhecimento. Efeito do machismo é a falta de mulheres que participaram e vêm participando da história da Física. Outra evidência do machismo não só na Física, mas no conhecimento acadêmico, é como o homem é usado como generalização de ser humano. Problematizar essas evidências fez parte de nossas aulas não apenas enquanto elemento formador mas também como uma barreira a ser enfrentada na Universidade que, acreditamos, será frequentada por estudantes do CLL. Há um forte preconceito em nossa região de que é difícil aprender Física. É muito comum ouvirmos pessoas que dizem nunca terem aprendido Física na escola e que parece ser algo que não entra na cabeça. Na realidade, somos parte de uma cultura que pressupõe a Física como um corpo difícil de ser digerido, como se a dificuldade de aprendizagem fossem culpa de estudantes e não responsabilidade de uma metodologia de ensino arcaica que se repete de maneira sistemática e acrítica simplesmente para manter a ordem das coisas no ambiente escolar. A proposta para se quebrar tal paradigma foi organizar as aulas com base em temas que aproximavam os conteúdos exigidos pelo vestibular de fenômenos de nosso cotidiano. Ao invés de apresentar de maneira crua os conceitos chave (velocidade,
  • 32. 32 temperatura, carga elétrica) foram apresentados problemas ou perguntas que, para serem respondidas, exigiam a aprendizagem desses conceitos. Estudantes afirmam ter gostado desse tipo de abordagem, ao ponto de dizerem que enfim estavam aprendendo Física pela primeira vez na vida. Horizontalizar as aulas é outra preocupação constante. Poucas vezes não se pôde fugir do estigma de professor/a tradicional que deposita seu conhecimento em estudantes. Essa relação se reproduziu em aulas como as de ótica, em que a relação entre professor/a e estudante remeteu a cursinhos tradicionais. Apesar desses casos, as aula foram em roda, com educadores/as e estudantes sentadas em torno da mesma mesa, a ponto de a lousa ter sido usada poucas vezes. Foi valorizada uma metodologia baseada na investigação de fenômenos do cotidiano e em perguntas- problema, apoiada muitas vezes em objetos virtuais de aprendizagem, como simulações e vídeos. Foram também realizados experimentos com materiais de baixo custo. A participação de estudantes, o estímulo a manifestarem suas dúvidas e o protagonismo e a divisão do maior número possível de tarefas durante as aulas foram estimulados durante todo o ano. Vale ressaltar que a intencionalidade inerente ao papel de professor/a não foi deixada de lado. Em se tratando de um cursinho, com um de seus objetivos principais sendo a aprovação em vestibulares que preveem uma lista de conteúdos a serem provados, foi necessária a escolha de um formato de aula que contemplasse minimamente as exigências de provas como Fuvest e ENEM. Além disso, a escolha de um caminho que busque provocar o interesse e a motivação, além de subsidiar garantias de participação, impedindo que opressões se reproduzam em sala de aula, é papel de quem tem a iniciativa da educação formal. O desafio permanente (e utópico) tem sido o da busca por um equilíbrio entre conseguir a aprovação, pressupondo uma organização inicial da aula como tarefa de quem educa (sem se tornar um privilégio ou reproduzir a hierarquia professor-aluno), e ter uma prática verdadeiramente libertária (horizontal e de apoio mútuo) em sala de aula. Buscou-se criar uma relação das aulas de Física com outras áreas. Nosso planejamento começou em parceria com Biologia e Química, com reuniões unindo as três áreas. Foram escolhidos alguns temas que permitiriam aproximar as áreas e mostrar como o conhecimento se relacionam e é fragmentado de maneira arbitrária e oportuna, o que em si já é uma forma de questionar e problematizar como se constroem os saberes. Os temas “Do micro ao macro” (relações entre os mundos micro e macroscópicos) e “Energia” guiaram as aulas. Os temas foram oferecidos e escolhidos pelas duas turmas de estudantes durante as primeiras aulas do ano. Embora usar os temas como eixo das aulas tenha sido interessante no início, essa proposta não foi retomada ao longo do semestre, pois as reuniões entre Física, Química e Biologia deixaram de acontecer – por falta de tempo das pessoas envolvidas com o Cursinho. A falta de reuniões comprometeu a organização e,
  • 33. 33 consequentemente, o plano de trabalho das aulas. Atividades conjuntas, como uma visita ao Museu Catavento, deixaram de acontecer pela dificuldade de se organizar um horário que atendesse a demanda das três áreas. Interessante foi também poder ter mais de um/a professor/a em sala de aula ao mesmo tempo. Essa interação aumenta o potencial de apoio mútuo, fazendo com que alguns detalhes importantes pudessem ser apontados, o que provavelmente não aconteceria se outro/a professor/a estivesse na sala de aula. Além disso, a presença de mais de um/a professor/a oferece diferentes pontos de vista sobre alguns conteúdos durante as aulas, em casos de assuntos que surgem espontaneamente durante as aulas e que nem sempre são conversados previamente em sua preparação. Ao avaliarmos as atividades ao longo do ano 2015, entendemos que é possível investir mais na interação da Física com outras áreas. Para além de um melhor planejamento de elementos já mapeados pelas diferentes metodologias do ensino de Ciências, essa avaliação sugere que as aulas de Física no Cursinho, mesmo em ambientes fechados como as salas tradicionais de aula, mostraram-se um espaço privilegiado para uma construção política baseada no apoio mútuo e horizontalidade. Esse balanço nos encoraja a construir cada vez mais espaços de pedagogia libertária para uma aprendizagem de fato significativa. GEOGRAFIA A área de Geografia começou 2015 com 3 educadores. No meio do processo, uma nova educadora se somou e fomos em 4 a maior parte do tempo. De início, tentamos montar um cronograma pro primeiro semestre a partir da ementa do Enem. Dividimos as aulas de acordo com os temas que achamos que diziam respeito à Geografia e em seguida fizemos um calendário. Para cada aula, estipulamos um educador de referência, que preparava a aula, e outro para complementar e contrapor o primeiro. Utilizamos diversas ferramentas e trabalhamos diferentes habilidades: assistir a vídeos, ler e interpretar textos acadêmicos e notícias, discutir temas. Boa parte das aulas foi expositiva, ainda que abertas a questões a qualquer instante. Procuramos abordar os conteúdos fugindo da perspectiva tradicional, ou complementando-a (por exemplo, falando da perspectiva de tribos indígenas brasileiras para a formação da Terra e narrando o processo de industrialização na Inglaterra a partir do movimento luddita). Em alguns momentos, realizamos aulas com dinâmicas diferentes, como um jogo de tabuleiro sobre a questão agrária brasileira, que chamamos de "Guerra por Terra" e cujas regras fomos compondo conforme jogávamos com a turma. Fizemos também algumas aulas extra sobre temas atuais, como o Estado Islâmico, e tentamos
  • 34. 34 (ainda timidamente) convidar outras áreas para participar de aulas cujo conteúdo lhes fazia referência. No segundo semestre, por conta de impossibilidades dos educadores, acabamos fazendo muitas aulas sem o educador de apoio e apenas com o educador de referência. Tentamos também organizar saídas de campo, que acabaram não se realizando ou por problemas de agenda do Cursinho ou por impossibilidade do lugar a ser visitado. Nas últimas aulas, reservamos também parte do tempo para resolver exercícios de vestibular e discutir temas solicitados pela turma. No geral, nossa intenção foi a de tentar abranger os temas principais tradicionais da Geografia sem deixar de colocar contrapontos críticos. Ao mesmo tempo, tentamos experimentar novas dinâmicas em sala de acordo com as vontades e o comportamento da turma, e com as nossas possibilidades. Pedagogicamente, pensamos também na importância de trabalhar diferentes linguagens e de apresentar situações comuns do meio universitário, como ter que ler e fichar um texto. Em 2016, a área continua com as mesmas 4 pessoas e até o momento ganhou um novo educador, que já tinha nos acompanhado de fora em 2015. A intenção é manter o foco nas diversas ferramentas e linguagens e criar novos espaços pedagógicos de experimentação que visem proporcionar maior autonomia aos estudantes, tanto em sala de aula no Cursinho como fora dela e, futuramente, no meio universitário. HISTÓRIA O ensino de História em uma pedagogia libertária: a experiência do Cursinho Livre da Lapa. A área de História do Cursinho Livre da Lapa começou a ser formada no final de 2014. Desta data até então, tivemos oito educadores. Assim como as demais áreas do Cursinho, tivemos total autonomia para planejar nossa didática. Aliando a preocupação da demanda de dar conta do conteúdo das provas de vestibular com a de propiciar uma formação crítica, neste planejamento ressaltamos dois eixos: a abordagem do conteúdo por meio de uma cronologia regressiva ao invés da tradicional cronologia progressiva e a participação de dois educadores por aula. O primeiro ponto destacado por nós é a opção que fizemos em abordar os conteúdos a partir de uma cronologia regressiva. Isto é, ao invés de abordamos os conteúdos da maneira mais ortodoxa, do passado mais remoto até os dias de hoje, preferimos inverter a linha do tempo tradicional, abordando os conteúdos do presente para o passado. Apesar de acreditarmos que esta abordagem deu muito certo, já que os estudantes tiveram um grande empatia com os conteúdos ao
  • 35. 35 iniciarem seus estudos por aquilo que estava mais próximo a eles, mais próximo à sua realidade, como educadoras e educadores enfrentamos algumas dificuldades, pois estamos muito ligados à cronologia tradicional e sair dessa "zona de conforto" foi complicado para nós. Quanto à adoção de dois educadores por aula, nosso intuito foi de quebrar a ideia do professor pertencente a um lugar de autoridade acima dos estudantes. Pensamos que por mais que nos esforçássemos para construir com um educador por aula uma educação baseada em uma via de mão-dupla entre estudantes e educadores, em que ambas as partes aprendessem e ensinassem - realizando uma real troca de aprendizados - , teríamos muito mais dificuldade para ressignificar o papel de educador. Isso porque os estudantes ao longo de toda sua vida na educação formal foram ensinados a “respeitar” a voz do professor, tido como o detentor do saber, na prática representando silenciar-se perante a sua autoridade. Por isso, acreditamos que dois educadores por aula ajudaria mais na desconstrução desta ideia. Avaliamos que tivemos êxito nesta desconstrução, retirando os educadores de um suposto lugar superior e colocando-se no mesmo nível que os estudantes: olho no olho, ombro a ombro e lado a lado, em um caminho no qual o ensino seja de fato horizontal! LINGUAGENS A área de Linguagens iniciou 2015 composta por seis educadores, sendo que dois estavam ligados à área do teatro, uma da performance, dois das artes visuais e uma da linguagem cinematográfica. Pretendíamos unir essas linguagens com a ideia de leitura de mundo trazida por Paulo Freire no livro “A importância do ato de ler", no qual ele afirma que "a leitura do mundo precede a leitura da palavra". Pretendíamos também reservar entre quinze minutos e meia hora de cada aula para realizar práticas corporais, acreditando na importância de manter o corpo presente, ativo e tranquilo não apenas para o vestibular, mas numa tentativa de diminuir a distância que separa corpo e mente no nosso processo desescolarização, assim como acreditando também na potência da expressão não verbal e na criação de vínculos mais subjetivos do que a competitividade também estimuladas nos ambientes escolares e principalmente em cursinhos. Na primeira aula propusemos nos apresentarmos e nos conhecermos um pouco, de forma poética que fugisse da lógica acadêmica, escolar ou corporativa. Caminhamos pelas ruas do bairro recolhendo objetos na rua, partilhamos todos e escolhemos alguns para contar nossa história e quem somos a partir deles. Dessa atividade e em diálogo com as estudantes, elas trouxeram a vontade de estudarmos a cultura de povos indígenas e de povos afrodescendentes, compreendendo também
  • 36. 36 nossas próprias origens e estudando nossas histórias familiares e questionando a (falta de) representação desses povos ao longo dos séculos na história oficial. A partir daí definimos junto com o grupo de estudantes o tema 'identidade' para nos debruçarmos ao longo do ano. Os métodos utilizados foram saídas pelo bairro para conversar com a população que trabalha ou mora na região, conversa com ativistas que lutam contra o genocídio da população negra e indígena, análise de imagens, busca e apresentação de fotos e histórias pessoais, conversas em roda, vídeos e filmes e leitura de textos. O começo desse caminho sobre identidade foi um processo de muitas descobertas, de olhar pra si e pro outro, de partilhar histórias e ouvir. Entramos e saímos de lugares muito íntimos e partimos depois para pensar as relações dessa subjetividade com o macro, com o fora, com o mundo. Que falta de coincidência ter uma sala majoritariamente formada por mulheres em que quase todas, se não todas, terão um caso de violência pra contar? Como repensamos aquela opção de pardo nos formulários pra entender o que é ser pardo e não ser índio ou negro na nossa sociedade? Por não termos um conteúdo previamente definido, íamos fazendo escolhas e desenhando os rumos ao longo do caminhar junto com as estudantes. Muitas vezes essas escolhas deixavam dúvidas sobre ser aberto ao que elas traziam sem deixar de ser propositivo. Muitas vezes estar aberto também estava carregado com expectativas de que essa construção coletiva do nosso processo viesse também com uma responsabilidade dentro dele. Mas entendemos que era difícil depender das participações e contribuições das estudantes para que nossas aulas acontecessem. No meio do ano elas nos disseram que sentiam falta daquele momento mais íntimo, mais olhar pra si, que tivemos no começo. No final, sentiram que poderia haver aproximação maior com conteúdos do ENEM e, porém com poucas estudantes frequentando as aulas de Linguagens semanalmente. Por um lado avaliamos que essa evasão se deve por conta da proximidade com o vestibular e da ausência de um cronograma melhor definido, por outro entendemos que foi absolutamente importante nos colocar dispostas ao diálogo para desenvolver propostas que partissem das próprias estudantes e também respeitar a autonomia de cada uma de frequentar as aulas ou não. Pretendemos continuar com as práticas corporais funcionando também como um espaço de empatia, definir um cronograma, entendendo Linguagens uma aula tão prioritária quanto às outras, mantendo os processos coletivos de escolha do conteúdo, tratar questões individuais e pessoais mescladas com o conteúdo do vestibular, construir redes de saberes, incentivar a troca com estudantes da unidade Sé e dos bachirellatos populares argentinos.
  • 37. 37 MATEMÁTICA A área de matemática continuou a se pautar pelo currículo básico do Ensino Médio e os principais conteúdos cobrados nos vestibulares. Entretanto, nas aulas, tentamos frisar mais o aspecto de descoberta de relações e a solução de problemas do que o aspecto sistemático e formal da matemática. Buscamos fazer isso por meio de incursões, mesmo que muito breves, em pontos da história da matemática. Tentamos assim caracterizar a matemática não como um sistema fechado e acabado de verdades eternas ou mero jogo formal de símbolos de origem desconhecida, aparentemente inútil, pois voltado apenas para usos técnicos extremamente especializados e, portanto, obscuros. É assim, ao menos, que a maioria das estudantes parece pensar a matemática. Tentamos, pelo contrário, mostrar a matemática como o que ela realmente é: a história do enorme esforço intelectual, de homens e mulheres, ao longo dos séculos, em solucionar problemas gerais da vida. A matemática, portanto, como um saber construído, por pessoas, em circunstâncias específicas, e por isso mesmo, compreensível, e não como um saber pronto e dado. Pensamos ser essa uma perspectiva muito mais interessante e frutífera e, se dizemos que “tentamos", é porque na mais das vezes não conseguimos ir tão longe. A estupidez dos currículos tradicionais e o absurdo das cobranças de vestibulares, ainda mais em um período de tempo tão curto como um ano, se impõem como obstáculos difíceis de ultrapassar. Algumas das matérias vistas ao longo do semestre: trigonometria, alguns tópicos da álgebra (progressões, sistemas lineares, análise combinatória), geometria analítica e geometria clássica. Alguns assuntos foram estudados somente durante a resolução de exercícios de vestibular, nas últimas aulas do ano, que dedicamos exclusivamente para esse propósito. Conseguimos ao longo do ano, mesmo que superficialmente, cobrir a maior parte do currículo do Ensino Médio. Começamos o ano com dois educadores, que logo aumentaram para três. No segundo semestre, haviam apenas dois novamente e logo apenas um. No fim do ano, nas últimas aulas, mais um educador veio para colaborar com as revisões para o vestibular. POLÍTICA Resumo do ano A área de política tinha como objetivo provocar e mediar o debate de temas sensíveis / atuais da política, bem como trazer um panorama dos temas de sociologia e filosofia recorrentes nas provas do ENEM / vestibulares, visando uma experiência de educação libertária para além do vestibular. No início do ano, foi apresentado às e
  • 38. 38 aos estudantes um conjunto de temas para que escolhessem coletivamente quais gostariam de tratar durante o ano. Os temas debatidos ao longo do ano foram: moradia, política institucional, terceirização do trabalho, corrupção, maioridade penal, drogas, violência estatal e genocídio, gênero e sexualidade, raça / etnia, educação, entre outros. A proposta era fazer um debate em dois momentos: um inicial entre educadores e estudantes sobre o tema, e um segundo momento convidando pessoas de movimentos sociais / populares ligados aos temas e suas lutas, para falar sobre as questões em uma perspectiva crítica, a partir da política em movimento, "na prática". Essa contribuição das pessoas convidadas foi muito positiva para dar contorno crítico e possibilitou que os temas fossem discutidos e conhecidos na dimensão das lutas populares atuais. No segundo semestre, foi proposto um bloco de seis aulas sobre temas de filosofia e sociologia, com foco especial nas provas anteriores do ENEM. Foram apresentados os grandes problemas da filosofia e sociologia, alguns autores e debates desse campo de conhecimento. Para dar conta do grande volume de pensadores e obras, foi proposta a discussão e resolução coletiva a partir de questões de provas anteriores, visando especialmente à interpretação de texto destas questões, que é chave para a resolução delas. Ao longo do ano, especialmente no segundo semestre, a área teve uma grande evasão de estudantes nas aulas, que parece ser geral do cursinho, chegando a ter aulas com apenas duas estudantes presentes. Houve dificuldades em relação ao planejamento das aulas e a pouca quantidade de educadores disponíveis na área. Entendemos que há demanda das estudantes por mais tempo dedicado aos temas de filosofia e sociologia em razão de seu peso considerável no ENEM. Avaliamos que a área de politica contribuiu muito para a formação politica de estudantes do cursinho, tanto em termos de engajamento nas lutas sociais, quanto em termos de ter condições de realizar uma prova como a do ENEM 2015 que deu enorme peso a discussões politicas que tratamos ao longo do ano, como a questão de gênero. Atividades e saídas de campo Foram propostas diversas saídas de campo na área de política ao longo do ano. Houve saídas no centro de SP, no bairro da Lapa, na favela do Moinho, no monumento das bandeiras, além de conversas externas com convidados do movimento negro e da rede dois de outubro (visita à fundação casa). As saídas foram muito interessantes, apesar da baixa adesão de estudantes.
  • 39. 39 Quantos educadores e educadoras passaram pela área No inicio do ano, a área era bastante grande, com mais de 20 pessoas. Logo no primeiro mês, as pessoas inicialmente interessadas deixaram de contribuir e apenas 2 educadores permaneceram na área. Buscamos trazer novos educadores, e outras 4 pessoas passaram pela área, ficando um mês apenas. QUÍMICA Entrei no meio do ano com a possibilidade de contribuir muito mais com algum conhecimento teórico do que com uma participação efetiva na gestão do cursinho. Meus horários no semestre foram bem complicados, e à tarde de quarta-feira foi mesmo o único dia garantido. As aulas fluíram muito mais como tentativa de garantir uma base do que como um aprofundamento no ensino de química. Tanto por minha parte, que estava distante da área fazem alguns anos, como por parte das alunas e alunos, que em grande maioria (senão todos) se apresentaram com alto grau de dificuldade, nos princípios da matéria e também na matemática, essencial para o ensino de química. O conteúdo, imaginando um ciclo de 3 anos de ensino médio, cobriu, possivelmente, 50% do total, mas de forma mais rasa. Senti alguma dificuldade em propor alguma forma de exercício de casa, por exemplo. Nas aulas, as alunas e os alunos executavam alguns problemas, mas a evolução era lenta. Pensei que, na tentativa de garantir um conteúdo mínimo pra todos, quem estava mais avançado talvez tenha se cansado com a repetição de explicações. Imaginando um conteúdo que se complexifica, perder uma aula significa não compreender a seguinte, o que me obrigou a agir nessa chave. Como conteúdo, me baseei num material de escola, emprestado, e também num site www.profpc.com.br, específico da área de química, que possui exercícios de vestibular e explicações bem razoáveis, em tópicos. Parti do princípio do estudo de matéria e transformações, até o ensino de oxi-redução e uma passagem nas funções orgânicas e reações. De forma geral, fiquei muito honrado em poder contribuir com o Cursinho. É um espaço de troca fantástico. Sinto não poder ter entrado a fundo na participação e troca com todas e todos, mas de alguma forma acredito que tenha minimamente contribuído pra fazer algo bacana por aí. Aprendi muito e penso em levar as discussões pra Juiz de Fora, com algo semelhante. Vamos ver. Foi um prazer imenso, espero revê-los em algum momento.
  • 40. 40 DEPOIMENTO DE IVANNA, ESTUDANTE EM 2016 ‘‘Você não vai encontrar melhor espaço que a Casa Mafalda’’ - Fueron las palabras de un amigo cuando supo que estaba en busca de una escuela preparatoria popular (cursinho en portugués) porque el capitalismo me cerró las puertas del estudio si no contaba con dinero para pagar. Llegué a Brasil con mucho entusiasmo de estudiar, aprender, viajar y conocer. Sin experiencia y con dinero limitado emprendí este viaje sin saber lo que me esperaba pero con la esperanza de que toda fuera a salir bien, tudo ia dar certo. Las clases comenzaron a finales de febrero, ingresé con timidez a un espacio donde se me acogió como si fuese un hogar. Estaba lejos de casa y ellos me hicieron sentir como si estuviera en una. Donde entré era una escuela preparatoria anarquista/libertaria y los principios de este bello lugar son autonomía, anticapitalismo, horizontalidad, valorización de las minorías políticas, apoyo mutuo, entre otras cosas. Sin opresiones, sin machismo, sin racismo, sin homofobia, sin xenofobia y sin abuso del poder, solo personas conviviendo a diario con más personas LIBERTAD, LIBERTAD podía gritar ahí dentro, podía expresarme sin ser discriminada por era una visión diferente, nadie se entrometía en tu vida; comodidad sobraba en el lugar. Una mujer podía besar muchas personas y nadie la llamaría de puta o mujer fácil; si no te maquillabas, no iban a pensar que eres una despreocupada; si usabas la misma ropa dos días seguido, no significaba suciedad y si tenías los vellos largos, sonreían porque sabían que te sentías cómoda con tu cuerpo sin importar lo que diga la sociedad. Podías ser tú mismx. Era un espacio autónomo, por ende, no contábamos con ayuda del estado. Era una casa con las mismas necesidades que tienen otras casas; cada fin de mes se debía pagar el alquiler, luz, agua e internet. Para conseguir pagar esos gastos y continuar con nuestro maravilloso espacio, todos nos juntábamos para hacer eventos, ahí es donde se pudo ver el apoyo mutuo, el trabajo el equipo y que todos estábamos juntos. He aprendido mucho ahí, sobre autonomía, política, pedagogía, veganismo, bordado, productos naturales, electrónica, entre otras cosas. Considero la horizontalidad como la base principal de este hogar, no hay una jerarquía, no hay alguien que sea superior a otros, puede que unos sean llamados de educadores, otros de estudiantes y otros de educadores/estudiantes pero al final solo se sabía que era tu amigo aquel que estaba en el pizarrón ayudándote a aprender algo que desconociste en la escuela porque el sistema educativo es una shit.
  • 41. 41 Creo que nunca encontraré aquí otro lugar como este, un espacio donde te den toda la confianza del mundo, un lugar donde pueda cocinar o dormir cuando lo necesitara, un lugar donde alguien iba a llegar siempre con una sonrisa para alegrarte el día. Aquí se me abrieron mucho los ojos y aunque el mundo de allá fuera sea tan diferente como en estas cuatro paredes, en mi mente sigue construyéndose un mundo mejor y lo intento compartir con quien pudiese. Escribí en pasado porque no sé si habrá un futuro, el capitalismo sigue tocando nuestra puerta y aún no sabemos si vamos a poder continuar con ese peso encima. Queríamos cambiar el mundo y ahora vamos a intentar que el mundo no nos cambie a nosotros. Se me dio la llave para abrir y cerrar la puerta porque era la primera en llegar y la última en irse, y con esta misma llave cierro este primer bimestre y espero volver a abrirlo en agosto. Infinitamente agradecida de encontrar a la Casa Mafalda & al Cursinho Livre da Lapa. Ivanna C. Benites, peruana, Junio 2016.
  • 42. 42
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  • 44. 44 CURSINHO LIVRE DA LAPA RELATOS E REFLEXÕES SOBRE ATIVIDADES DE UM CURSINHO LIBERTÁRIO 2015-2016 É possível um cursinho pré-universitário basear suas aulas na pedagogia libertária experienciada por anarquistas dos séculos XIX e XX? Quais as mudanças reais em sala de aula trazidas por uma prática libertária? Há mudança significativa na relação entre estudantes, educadores e educadoras quando o cursinho e todas suas atividades são autogeridas por todos e todas as participantes? Quais as possibilidades de transformação política e social para além da realidade das pessoas envolvidas em um projeto de pedagogia libertária? Como lidar com conflitos de maneira eficiente sem abrir mão de prefigurar a sociedade que desejamos construir? São essas algumas questões presentes nesta publicação, que pretende compartilhar as experiências a fim de ter a ideia da pedagogia libertária e da transformação social difundida para além dos muros da educação tradicional.