1) A crise na educação não é genuinamente da educação, mas um fenômeno político externo que a afeta. Isso ocorre porque a política enfrenta uma crise de identidade e papel na sociedade moderna.
2) Essa crise política se espalha para a educação e gera uma crise no senso comum e na autoridade. Isso porque a lógica da produção e do consumo passou a dominar todas as esferas, incluindo a política.
3) A educação tem a tarefa de introduzir as no
Educação, responsabilidade e crise política no pensamento de Hannah Arendt
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EDUCAÇÃO E RESPONSABILIDADE PELO MUNDO: REFLEXÕES
EM TORNO DO PENSAMENTO ARENDTIANO
Ricardo George de Araújo Silva1
1. Introdução
Quando optamos por tratar da educação na esteira do pensamento de Hannah
Arendt, o fizemos por entender que as questões que assolam esta, se encontram fora
dela, por serem de ordem política. Constatação que nos intriga, conduzindo-nos a essa
problemática. Cabe ainda esclarecer, que embora concordemos com Arendt a respeito
da educação ser um espaço pré-político (Cf, ARENDT, 2001, p. 128), entendemos que
esta guarda forte diálogo com a política, na medida em que os agentes da intenção
pedagógica, isto é, os mestres, ocupam o espaço educacional a partir de uma
compreensão de mundo, de sociedade e de homem, seja esta compreensão consciente ou
não.
O mestre educa com uma intenção. Este telos não é significativo para o aluno,
que o acolhe como a verdade repassada pelo mestre, mas é politicamente constituído de
sentido ideológico, pelo mestre que o repassa. Assim, não há como dissociar Educação
e Política. Todavia, devamos estabelecer suas fronteiras. Como esclarece Freire (2003,
p.99) “É ingênua ou astuta a dicotomia entre educação para a libertação e educação para
a responsabilidade”. Arendt chama a atenção para a responsabilidade que temos diante
do mundo. Se responsabilizar pelo mundo, enquanto lócus da ação humana e das teias
de relações ai travadas é, em nosso entendimento, uma atitude política, de primeira
ordem. Ainda que Arendt esclareça que a autoridade se configure no mundo pré-político
e, até esse, já esteja em crise (Arendt, 2001, p. 40) não podemos negar sua importância
no que se refere à política e o cuidado com o mundo e nisso entendemos existir um
pedra de toque na relação Educação e Política, haja vista que:
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o
bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto,
salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse à renovação e a vinda
dos novos e os jovens. A educação é, também, onde decidimos se
amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso
mundo, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de
empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as
em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo
comum. (ARENDT, 2001, p. 247)
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Mestre em Filosofia (UFC). Professor da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA.
Membro do Grupo de Pesquisa do Laboratório de estudos do Trabalho e qualificação profissional –
Labor/UFC, e do Grupo de Estudos em Filosofia Política da UFC, ambos cadastrados no CNPQ.
Coordenador do Grupo de Estudos em Política, Educação e Ética – GEPEDE.
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Com estas questões esclarecemos qual nosso foco: ao analisar a educação e a a
responsabilidade pelo mundo. Entendemos assim, que a crise da educação não é dela,
mas política. Para tanto nos ocuparemos em nossa análise das categorias: crise,
Responsabilidade, mundo, política e educação, como norteadoras de nossa
argumentação. Privilegiamos como texto central o ensaio intitulado “A crise na
Educação” publicado na obra “Entre o passado e o futuro”.
2. Educação e Crise
A crise posta é uma crise política, que atinge a educação. Assim, a crise na
educação não é genuinamente sua, mas um fenômeno exógeno que a atinge. Esta crise
se configura em duas frentes de entendimento, a nosso ver. Primeiro encontrar respostas
novas aos problemas postos. Segundo Arendt (2001, p. 223) uma crise só se torna um
desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com pré-
conceitos”. Esta precisa ser tratada com novas abordagens, sob pena de agudizar seus
efeitos e, sobretudo, deixar passar o momento da reflexão. Segundo, viabilizar ação para
superação da crise a partir das respostas novas e das ações que enfrentam a realidade
objetiva constituída. Assim:
A realidade social, objetiva, não existe por acaso, mas como produto
da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os
homens são produtores desta realidade e se esta, na “inversão da
práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade
opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens” (FREIRE. 2005, p,
41)
Ao tratarmos de crise cabe destacar a crise da autoridade ou pelo menos sua
confusão conceitual que também reside fora dela, esta se encontra no engodo político
fundamental, qual seja, não responsabilizar-se pelo mundo. Ao agir assim,
negligenciando o mundo, a política ganha relevância secundária e aparece como serva
de outros saberes, como exemplo podemos citar a sociedade de produção e consumo
regulada pela economia, que ganha primazia em relação à política. Esta visa à
transformação da natureza e das relações humanas em produto. Neste contexto, tudo se
inscreve na lógica do consumo, na perspectiva do homem laborans. A política se for
possível nessa perspectiva, é pra dar sustentação à lógica da produção e do consumo. De
modo, que a organização social entendida nessa lógica conduz a política a uma crise de
identidade, seu papel fica reduzido e confuso. Tal situação se estende as veias da
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sociedade chegando à educação, que já não ver com clareza qual seu papel. Emerge aqui
a crise do senso comum, Isto é, valores e sentidos antes compartilhados se esfacelam e
já não são reconhecidos no corpo social, de modo que não partilhando sentido e valores
estabelecidos pela família e pela escola, estes perdem relevância, entre eles a
autoridade. Assim, compreendemos que o desaparecimento do sendo comum [enquanto
sentido compartilhado] nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Grifo nosso
(ARENDT, 2001, p, 227)
Todavia voltando a questão da redução da política a atividades da produção
Arendt (2002b, p.15) elabora uma distinção entre as necessidades humanas básicas.
Apresenta as que estão presas ao ciclo vital e se encontram em predominância, a
liberdade – o trabalho – e àquelas que se voltam para o mundo e seu cuidado – a
fabricação, a ação e o pensamento. Essa distinção elaborada por Arendt nos esclarece o
fenômeno vivido pela modernidade que tomou a dimensão de cuidado com a vida,
enquanto sobrevivência orgânica e, lançou esta perspectiva sobre todas as outras esferas
do existir. Conforme Almeida (2009 p. 18) “no mundo moderno, os processos vitais
ameaçam reduzir-nos a meros consumidores e limitar-nos a nosso aspecto de animal
laborans, de modo que sobram cada vez menos espaços para outros princípios e
atividades,” Explicando de outra maneira, asseveramos que a produção e o consumo, na
sua origem, restritas aos processos biológicos, ganharam na modernidade uma lupa de
aumento e, não só passaram a ser vista como necessidade, como se tornaram uma
prática. Assim, o hábito da produção e consumo de tudo o quanto fosse possível,
desencadeou um sentimento de insatisfação compulsivo, que em nosso entender chegou
a atingir os valores. Assim:
Esse ciclo de produção e consumo, originalmente ligado aos processos
biológicos, na modernidade extrapola cada vez mais satisfação das
necessidades biológicas e se estende a outras dimensões. Não
consumimos apenas alimentos, mas estilos de vida, produtos
“culturais”, emoções, imagens. Contudo, embora o processo de
produção e consumo seja cada vez mais exacerbado, a exigência
imperiosa que lhe é inerente continua sendo a mesma: o suprimento
das carências vitais sejam elas biológicas ou não. O ser humano
enquanto ser vivo submetido às necessidades sempre prementes e
obrigado a trabalhar para atendê-las é chamado por Arendt de animal
laborans. (ALMEIDA, 2009,p.16)
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O animal laborans, não se ocupa de responder a nenhuma indagação que se
inscreva fora da relação de consumo. De modo que o cuidado com o mundo não lhe
interessa, por sua constituição não ser política, ainda que o contexto seja de crise.
A política está em crise. Assim, também, o papel da educação se encontra em
crise, por que está em crise, a tríade fundamental, a saber: a fundação, a tradição e a
autoridade estas, quando no bojo da crise, não são por si destrutivas. Contudo,
potencializam o hiato entre passado e as realidades presentes dificultando o
encaminhamento ao futuro. Rompendo essa continuidade o passado fica fragmentado,
exigindo do presente novas formas de entendimento e, novo método de enfrentamento
da realidade hodierna. Assim:
Nossa experiência com a tradição vive, segundo Arendt, uma situação
lacunar entre estas duas ordens de tempo (passado e futuro) onde,
retomando Tocquivelle, o passado não iluminando mais o presente,
somos obrigados a avançar no escuro. (BRAYNER, 2008, P. 21)
Uma das conclusões que Arendt chega é que a Crise na educação frente às
atrocidades histórico-sociais, sempre parecer ser menor. (Arendt, 2001, p. 222) A nosso
ver, essa constatação permanece até os dias atuais, observamos isso tanto na crise da
educação, como na reduzida importância do problema da educação em relação a outros
problemas. O que ocorre no interior da educação sempre é legado a um segundo plano,
como se esta pudesse sempre esperar o melhor momento de resolver, o que nunca
chega. Se a crise desponta como oportunidade de mudança e de reflexão, a educação
nunca se apropria dessa possibilidade na medida em que não lhes são abertas
oportunidades. Assim, a impressão que vigora é que sempre tem problemas e crises
mais urgentes e relevantes em outras áreas. Consoante Arendt (2001, p.222) “é de fato
tentador considerá-la [a educação] como um fenômeno local e sem conexão com as
questões principais do século.Grifo nosso”
O que não se percebe, ou passa a vista sem um exame mais acurado, é que a
crise na educação não é dela, como anteriormente destacamos, e sim política e
generalizada. Por isso, o título tratar da crise na educação e, não da educação. O
entendimento desse ponto torna-se relevante na medida em que a pretensão de Arendt,
anunciada logo no inicio do texto (Cf. Arendt, 2001, p, 221), visa um problema maior.
Arendt chama atenção para a política, enquanto ocupação do espaço público, que foi
perdido pela tradição ao negar autoridade. Há, portanto um fio condutor perdido pela
tradição que precisa ser resgatado. Nesse sentido, precisamos resgatar a educação
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naquilo que a movimenta e significa. Segundo Arendt (2001, p, 223) “A essência da
educação é a natalidade, o fato de que seres humanos nascem para o mundo”. Nascer
para o mundo tem significados fundamentais, sejam eles: Integrar a comunidade de
falantes e agentes; Perpetuar a vida e o mundo público; Garantir a renovação das
instituições, entre outras. De modo que
Essa crise está relacionada às características básicas da sociedade
moderna. (...) Os pressupostos do mundo moderno têm seus efeitos
também na pedagogia e nas práticas educacionais, de modo que a crise
mais ampla ganha uma expressão específica nesse âmbito. As
questões e os problemas assim provocados, porém, não dizem respeito
apenas aos pais e educadores, mas, em princípio, são da preocupação
de todos, devido ao lugar fundamental que a educação ocupa no
mundo. É por meio da educação que cada comunidade introduz as
novas gerações em seu modo específico de existência.(ALMEIDA,
2009, p.14)
Dito isto nos parece pertinente a constatação de que a educação tem como tarefa
primordial, introduzir a crianças no mundo, contudo, cabe destacar a peculiaridade
desse ato, haja vista que esse mundo antecede as crianças e continuará depois deles. De
modo que viver implica se inserir em um espaço-tempo determinado e constituído em
que as histórias de cada um se desenrola. Segundo, Almeida( 2009, p. 15) Essa
existência “se insere numa história mais abrangente, na qual as muitas histórias
singulares se entrelaçam, devido ao aparecimento constante de novos atores, num tecido
em contínua transformação”.Assim, nada nos autoriza no contexto de uma crise ou fora
dele pensar a educação apenas como preparação para um mundo novo, isto pode até
funcionar como uma dimensão da educação mas, não como seu fim absoluto, sob pena
de estarmos ferindo a perspectiva desta enquanto fenômeno filiado a natalidade e, a
constituição do novo. Pois,
Pertence à própria natureza, da condição humana o fato de que cada
geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar
uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de
arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face
ao novo. (Arendt, 2001, p. 226)
Consoante Almeida (2009, p, 15) A natalidade, portanto, diz respeito à
dinâmica entre o mundo historicamente constituído e a chegada dos novos, que podem
intervir nele.” Contudo, ainda que identifiquemos um diálogo sólido entre educação e
política, faz-se necessário estabelecer sua fronteira. O estabelecimento desse limite é
importante para evitar um equívoco corriqueiro que é tratar a educação como
genuinamente política. Ao agir assim, demonstramos nossa incompreensão do
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fenômeno político, que tem seu sentido na liberdade, (Cf. Arendt, 2002a, p, 38). A
educação,por sua vez, se inscreve entre os desiguais.
Outro ponto importante a ser reconhecido é o modo como a modernidade tratou
a educação, tomando esta como ferramenta política, não só ela, mas todas as utopias que
se ocuparam do Estado, de alguma forma, buscaram na educação subsídio para legitimar
a estrutura política. Sendo assim, a educação foi igualada a política, e passou ao longo
da tradição a vigorar como mecanismo fundamental nessa estrutura. Podemos observar
isso na República de Platão, no Emilio de Rousseau entre outros. Isto se torna deveras
grave na medida em que os novos passam a ser tratados como “ovelhas”, quem sem a
oportunidade de decidir a onde ir são conduzidos. Ou ainda, lhes são tiradas as
possibilidades de decidir sobre o novo a construir, na medida em que os novos recebem
pronto o estabelecido (velho) com feições de novo. A educação deve fornecer o
convívio entre seus iguais e a possibilidade de acerto e fracasso entre eles. Contudo, o
que se tem percebido, é a imposição do mundo adulto sobre o mundo infantil. Essa
ditadura do mundo adulto, já consolidado coloca os novos - oi neói – a mercê de um
paradigma já estabelecido, “passando a ideia de que o novo já existia” (ARENDT, 2001,
p, 225).
Assim, temos que a “educação não pode desempenhar papel nenhum na política,
pois, na política lidamos com aqueles que já estão educados”. (ARENDT, 2001, p, 225).
Isto implica dizer que embora seja possível, e entendemos que o é, um diálogo, entre
política e educação, a primeira não tem na sua estrutura, nada da segunda e vice-versa.
Portando, tomá-las como iguais é adentrar o movediço terreno da confusão conceitual e
da prática estabelecida pelas tiranias que tomou a educação com o fim de responder seus
interesses. Mas por que isso?
Por que quem deseja educar adultos na realidade pretende agir como
guardião e impedi-los de atividade política. Como não se pode educar
adultos, a palavra “educação” soa mal em política; o que há é um
simulacro de educação, enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso
da força. (ARENDT, 2001, p, 225)
Outro fortuito engano é achar que é possível tratar da crise na educação como
um problema de ordem metodológica ou de técnica de ensino, quando na verdade esses
são frutos da questão maior,que é política, e ao atingir a educação, atinge suas
peculiaridades como a metodologia. Neste contexto, a crise na educação não é uma crise
da nação circunscrita a fronteiras, em que pese apenas aos diretamente afetados. Ao
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contrário, diz respeito a uma esfera de alcance maior no que concerne a organização e
deliberação dos homens e mulheres enquanto teia de relações estabelecidas.
Considerações finais
Ao propormos essa reflexão em torno da Educação e da responsabilidade pelo
mundo objetivamos trazer à tona o entendimento dessas categorias e seus limites no
intuito de esclarecer possíveis equívocos. Contudo, nos posicionamos contrários àquelas
posturas que em nome da fronteira existente entre educação e política afirmam a
impossibilidade de um diálogo entre estas esferas.
A responsabilidade pelo mundo é uma tarefa que exige de todos ação. Sabemos
que a ação é uma categoria política por excelência no constructo teórico de Hannah
Arendt. Sendo Assim, entendemos que a superação e enfrentamento da crise deva se dar
no campo da política. O que não significa que a educação não seja capaz de
responsabilizar-se pelo mundo. Entendemos que a educação guarda consigo parcela
dessa tarefa na medida em que acolhe em bojo os novos, os recém chegados, sendo
assim, guarida da natalidade.
Por fim, tornamos claro que não pretendemos esgotar a questão em torno da
responsabilidade pelo mundo e sua relação com a educação, ao contrário pretendemos
apenas ser mais uma provocação ao debate no sentido de construir e possibilidade a
circulação das ideias que possam de alguma maneira iluminar ou em um retorno ser
iluminada.
Referência Bibliográfica
ARENDT. Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. De Mauro W. Barbosa de
Almeida. Ed. Perspectiva. São Paulo. 2001
________________. O que é a Política. Trad. De Ursula. Ed. Bertrand Brasil. 2002a
________________. A Condição Humana. Trad. Ed. Forense Universitária. 2002b
ALMEIDA. Vanessa Sierves. Amor Mundi e Educação:reflexões sobre o pensamento
de Hannah Arendt.Orientação de José Sergio Fonseca de Carvalho. Tese de doutorado-
Programa de Pós-Gradução em Educação. USP. Área de concentração em Filosofia da
Educação. São Paulo. 2009.
BRAYNER, Flávio. Educação e Republicanismo – Experimentos Arendtianos para
uma educação melhor. Ed. Liber –livro. Brailia.2008.
FREIRE. Paulo. Política e Educação. Col. questões de nosso época. Ed. Cortez. São