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1Cadernos Conib
2 Cadernos Conib
Nº4 • Novembro 2016
4 Cadernos Conib
Cadernos Conib
Nº 4 • Novembro de 2016
Edição:
Henrique Veltman
RT Assessoria
Serviços Gráficos:
Coordenação: Joel Rechtman
JR Graphiks
Diagramação: Reginaldo Coelho
C&D Editora
Revisão de texto:
Ricardo Besen
Capa:
Resgate de refugiados em julho de 2014,
em região próxima à ilha de Lampedusa,
no Mediterrâneo.
Colaboraram neste número:
Bernardo Sorj
Carla Bassanezi Pinsky
Celso Lafer
Flavio Azm Rassekh
Gabriel Holzhacker
Hélio Carnassale
Henrique Veltman
Ivanir dos Santos
Jaime Pinsky
Lelette Couto
Nilton Bonder
Peter Demant
Renato Janine Ribeiro
Rony Vainzof
Patrícia Campos Mello
Yossi Alpern
Fernando Lottenberg
Presidente
Gilberto Meiches
Vice-Presidente
Paulo Maltz
Vice-Presidente
Eduardo Wurzmann
Secretário-Geral
Rony Vainzof
Secretário
Paulo Gartner
Tesoureiro
Itche Vasserman
Tesoureiro
Octavio Aronis
Diretor de Segurança Institucional
Mario Arthur Adler
Diretor
Boris Ber
Diretor
Daniel Matone
Diretor
Julio Serson
Diretor
Milton Seligman
Diretor
Ruth Goldberg
Diretora
Sérgio Malbergier
Diretor de Comunicação
Diretor de Relações Institucionais
Sérgio Napchan
Diretora-Executiva
Karen Didio Sasson
Gerente de Comunicação
Ricardo Besen
CONFEDERAÇÃO ISRAELITA DO BRASIL – CONIB – GESTÃO 2014-2017
Representante da Comunidade Judaica Brasileira
www.conib.org.br
5Cadernos Conib
Gisela WajkopFernando Lottenberg e Eduardo Wurzmann
ivemos num mundo cada vez mais aberto e
conectado. Grandes avanços na comunicação
deram voz a tudo e a todos. E, como outras mu-
danças de paradigma da humanidade, podem estimular
o que há de melhor e de pior nas pessoas.
Por isso, ao mesmo tempo em que vemos as novas e
poderosas armas de comunicação/mobilização sendo
usadas para promover o ódio e a intolerância, constata-
mos que igualmente têm o poder de mobilizar as vozes
da tolerância, do respeito e do bom convívio entre as di-
ferenças.
É assim que os Cadernos Conib apresentam, nesta
nova edição, uma seleção de escritos focados na promo-
ção da tolerância e no combate à intolerância. O povo
judeu conhece muito bem os efeitos de ambos. Sofremos
Um viva à tolerânciaUm viva à tolerância
6 Cadernos Conib
como nenhum outro povo as con-
sequências devastadoras do ódio
e da intolerância e aprendemos a
importância de cultivar a tolerân-
cia e o entendimento, após tanto
sofrimento.
O judaísmo é uma religião que
não busca impor seus preceitos a
terceiros. Pelo contrário. Vivemos
por séculos, e seguimos vivendo,
em meio a outros povos e religiões
e aprendemos o valor máximo da
coexistência pacífica e produtiva.
Boa parte das instituições judai-
cas no mundo buscam promover
o entendimento inter-religioso e
combater a intolerância. A Conib,
entre elas, está representada no
Conselho Nacional de Políticas de
Igualdade Racial (CNPIR), órgão
colegiado de caráter consultivo e
integrante da estrutura da Secre-
taria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência
da República (SEPPIR). Nos textos
a seguir, o leitor encontrará visões
plurais sobre o tema que, espera-
mos, contribuam para promover
o assunto no Brasil, num momen-
to de nosso país profundamente
marcado por diferenças agudas.
Aqui na Conib acreditamos que
é possível promover a tolerância
e o entendimento, no Brasil e no
mundo. Ao lado dos conflitos e
ataques que ganham as manche-
tes, os blogs e as redes sociais, há
muita gente se unindo para pro-
mover o entendimento.
É com esse espírito que apre-
sentamos mais um Cadernos
Conib. Boa leitura!
7Cadernos Conib
SUMÁRIO
A missão moral de
Elie Wiesel
Henrique Veltman
Um ano letal para os
refugiados
Patrícia Campos Mello
Refugiados, os indesejáveis
Celso Lafer
O que significa tolerância?
Renato Janine Ribeiro
Jerusalém e a tolerância
Nilton Bonder
O fanatismo na história
Jaime Pinsky e
Carla Bassanezi Pinsky
O islã e nós:
fundamentalismo ou
aproximação?
Peter Demant
Intolerância no regime
dos aiatolás
Flavio Azm Rassekh
Como viramos fanáticos?
Bernardo Sorj
Diferentes, porém juntos
Yossi Alpern
A liberdade religiosa
Helio Carnassale
Intolerância religiosa:
racismo religioso
Ivanir dos Santos
A lição que vem do esporte
Gabriel Holzhacker
Diversidades: um exercício
do bem viver
Lelette Couto
A proteção democrática
do ciberespaço
Rony Vainzof
7
13
17
35
21
37
25
41
29
45
31
49
53
57
61
Réplica de crematório em Auschwitz - Museu do Holocausto - Washington
Afinal de contas, quem foi esse homem, sobrevivente
do Holocausto, agraciado com o Nobel da Paz em 1986
e que morreu em Nova York em 2016, aos 88 anos?
Henrique Veltman
A missão moral de
Elie Wiesel
A missão moral de
Elie Wiesel
HENRIQUE VELTMAN
Jornalista,
escritor e sociólogo
9Cadernos Conib
Henrique Veltman
nico varão entre os quatro filhos do comerciante
e ativista comunitário Shlomo e da dona de casa
Sarah Feig, Wiesel nasceu na cidade de Sighet em
1928. Embora Sighet, na época, fizesse parte da Romê-
nia, era húngara na sua perspectiva cultural. Voltou a ser
novamente Hungria em 1940 e, assim, o destino de Wie-
sel durante o Holocausto uniu-se ao dos judeus húngaros
de nascimento, que foram discriminados e perseguidos,
mas cuja aniquilação teve início a partir de 19 de mar-
ço de 1944, com a ocupação nazista. Já um mês depois
surgiam os guetos; de 15 de maio até 8 de julho, 437.402
judeus foram deportados da Hungria - em 54 dias, 147
trens partiram lotados com destino ao campo de concen-
tração de Birkenau. A contabilidade nazista sempre tinha
os números exatos da Solução Final.
10 Cadernos Conib
Para Wiesel, a contabilidade re-
gistrou perdas irreparáveis: sua
irmã mais nova, Tsipora, e sua mãe,
foram “selecionadas” logo nos pri-
meiros momentos da ocupação ale-
mã. O jovem Elie, aos 16 anos, pre-
senciou a morte do pai em Buchen-
wald, para onde haviam sido trans-
feridos.
Apenas Hilda e Bea, suas irmãs
mais velhas, sobreviveram.
No seu livro Celebração Pro-
fética, de 1999, Wiesel escreve:
“O que é um profeta? Um prega-
dor? Um visionário que prevê o fu-
turo? Que faz chegar a palavra de
Deus às criaturas? Que intercede
junto a Ele pelos seus filhos?”.
Para judeus e não judeus, Wie-
sel pode ser visto como um profeta,
um herdeiro de Isaías, por exem-
plo, com suas palavras de conso-
lo... “O lobo viverá com o cordeiro,
o leopardo se deitará com o bode,
o bezerro, o leão e o novilho gor-
do pastarão juntos; e uma criança
os guiará.” Isaías é o profeta mais
trágico da história judaica, e seus
escritos na Bíblia possuem uma be-
leza sem par.
Tanto Wiesel como Isaías de-
nunciam as injustiças, mas man-
têm a esperança no futuro.
Elie Wiesel se confunde tam-
bém com o profeta Ezequiel, cujos
“ossos secos vieram à vida nova-
mente”. Como Wiesel, Ezequiel é a
mensagem de esperança dada por
meio de símbolos e ações, a fim de
que o povo continue a esperar o
tempo de Deus.
Gosto dessa última imagem.
Acredito que Wiesel tenha sido
o único sobrevivente do Holocaus-
to com autoridade para cobrar da
humanidade uma postura ativa
em relação às vítimas do terror.
Foi o principal responsável pela
Elie Wiesel em frente a uma foto em que aparece, junto com outros prisioneiros, no campo de
extermínio de Buchenwald.
SvenNackstrand/afp/GettyImages
11Cadernos Conib
mudança do status dos sobrevi-
ventes; esses homens, mulheres
e crianças deixaram de ser vistos
apenas como vítimas e refugiados
e passaram a testemunhas da His-
tória. Neles está a missão moral de
lembrar o passado, mas também
de transformar o futuro.
Para Elie Wiesel, o Holocausto
foi “o mistério sagrado do nosso
tempo”. E o escritor não fugiu da
terrível questão de falar do papel
de Deus nesse grande desastre.
“Onde estava Deus quando o seu
povo era aniquilado nas câmaras
de gás?” .
até governantes, sempre fiel à sua
visão de mundo: o Holocausto para
Wiesel era incompreensível e inex-
plicável.
A Intolerância
No prefácio ao livro “A Intolerân-
cia”, editado pela Academia Uni-
versal das Culturas em 1997, Elie
Wiesel reafirma a sua visão sobre o
ódio e o racismo. “Pertenço a uma
geração traumatizada, que sofreu
na pele e na consciência uma glori-
ficação do ódio; conseguiu vencer
o nazismo e o fascismo, mas não a
intolerância e o fanatismo que os
caracterizam.”
Para ele, a postura do homem
frente ao fascismo não admite dú-
vidas: “O fascismo é simples: com
ele não transigimos. Nunca. Nós o
denunciamos, desmascaramos, re-
jeitamos, repudiamos, nós o exclu-
ímos da sociedade humana.”
Já a intolerância é sutil, o
que torna a luta mais complexa.
“Onde reconhecê-la? Como discer-
ni-la? São muitas as respostas, sem
dúvida; mas conheço apenas uma:
de uma ideia ou de um movimento
que inspirem o ódio, podemos di-
zer que são intolerantes. Digamos
que a intolerância está situada no
início do ódio. Se não a detiver-
mos, será tarde demais”, escreve.
O livro reúne 35 textos dos par-
ticipantes do Fórum Internacional
sobre a Intolerância, realizado na
Sorbonne, em março de 1997. Os
autores são filósofos, escritores,
historiadores, antropólogos, soció-
logos, professores, juristas, jorna-
listas e homens públicos de todo o
mundo, entre eles, Umberto Eco,
Mohammed Arkoun, Paul Ricoeur,
Ao explorar o Holocausto a par-
tir de uma visão religiosa, Wiesel
produziu uma nova maneira de fa-
lar de Deus e do homem; utilizou
ferramentas da própria tradição
para quebrá-la, mas com as mes-
mas ferramentas tratou de recons-
truí-la. Marcuse?
Ele mesmo se descrevia como
um hassídico, um judeu extrema-
mente devoto, mas que agia como
um rebe secular, líder de uma corte
de discipulos e seguidores prontos
a ouvir cada palavra sua nas pales-
tras, conferências, cada ideia con-
tida nos artigos, nos livros. Com-
prou brigas memoráveis e rompeu
com historiadores, autoridades e
Se, na religião, o ódio esconde
a face de Deus, na política,
ele destrói a liberdade dos
homens. No campo das ciências,
está a serviço da morte;
na literatura, ele deforma a
verdade, desnaturaliza o sentido
12 Cadernos Conib
Jacques Le Goff, Françoise Héri-
tier, Zvi Yavetz, Jorge Semprún,
Yehudi Menuhin, Per Ahlmark, An-
toni Tàpies, Ariel Dorfman e Wole
Soyinka.
No seu texto, Elie Wiesel salien-
ta que a intolerância não é apenas
o instrumento fácil do inimigo; ela
é o inimigo e nega toda a riqueza
expressa pela linguagem.
“Quando a linguagem fracas-
sa, é a violência que a substitui. A
violência é a linguagem daquele
que não se exprime mais pela pala-
vra.”, salienta.
Para Wiesel, a intolerância e
o fascismo desembocam ambos,
inevitavelmente, na humilhação
do outro, portanto, na negação do
homem e de suas possibilidades de
realização.
O ódio é um flagelo de origens
obscuras e insondáveis; “obra de
humanos, nem Deus pode detê-lo.
Nenhum povo pode se considerar
imune a seu veneno, e nenhuma
comunidade, a salvo de seus ata-
ques (...) Odiar é atear o fogo da
guerra em que as crianças se tor-
nam órfãs, e os velhos, loucos de
dor e de pena.”
A face de Deus
Se, na religião, o ódio esconde a
face de Deus, na política, ele des-
trói a liberdade dos homens. No
campo das ciências, está a serviço
da morte; na literatura, ele defor-
ma a verdade, desnaturaliza o sen-
tido da história e encobre qualquer
beleza sob uma grossa camada de
sangue e de feiura.
Em seus muitos livros e arti-
gos, Elie Wiesel afirma que deci-
diu dedicar sua vida “para contar
a história porque senti que, tendo
sobrevivido, eu devo algo aos mor-
tos; e qualquer um que não recor-
dar estará traindo-os novamente.”
“Isto é o que devemos fazer: não
dormir bem quando as pessoas so-
frem em qualquer lugar do mundo,
não dormir bem quando alguém é
perseguido, não dormir bem quan-
do as pessoas estão com fome aqui
ou ali, não dormir bem quando há
pessoas doentes e ninguém está lá
para ajudá-los, não dormir bem,
quando alguém em algum lugar
precisa de você.”
“A violência é também a lin-
guagem da intolerância, que gera
o ódio. O ódio é irracional, im-
pulsivo, implacável; suas forças
sinistras impulsionam o que há de
destruidor no homem. Seu ritmo
é rápido, seu objetivo ameaça-
dor, seu movimento inexorável.”.
Prossegue Wiesel, “Existe alguma
coisa de positivo, de transcenden-
te, de nobre, no ódio? O ódio é
capaz de produzir outra coisa que
não o ódio? Outras perguntas se
impõem: deve-se demonstrar tole-
rância frente à intolerância? Deve-
-se empregar a força bruta contra
os fascistas? É preciso odiar o ódio
para destruí-lo?”
O ódio é um flagelo de origens
obscuras e insondáveis; “obra
de humanos, nem Deus pode
detê-lo. Nenhum povo pode se
considerar imune a seu veneno,
e nenhuma comunidade, a salvo
de seus ataques (...) Odiar é
atear o fogo da guerra em que
as crianças se tornam órfãs"
13Cadernos Conib
Além de trabalhar incansavel-
mente na defesa do povo judeu,
Elie Wiesel também ergueu a voz
para denunciar massacres de di-
versos povos de todo o mundo,
atento ao reino da injustiça.
Ele escreveu mais de 50 obras
de ficção e não ficção, tendo como
destaque seu livro de memórias,
“All rivers run to the sea”, publica-
do por Alfred A. Knopf, em sucessi-
vas edições a partir de 1995.
Conheci-o pessoalmente em
São Paulo, em 2001, numa coleti-
va de imprensa. Sua presença en-
tre nós foi mais uma etapa de sua
missão de atuar como um crítico,
de acordo com o dizer de Montei-
ro Lobato, “conscientizando o in-
consciente”. Voltei a encontrá-lo,
em Nova York, em 2014, durante
um evento social. Entre os alegres
convidados encontrei-o, discreto,
sentado ao lado da esposa Marion
Ester Rose. Falei-lhe em iídiche,
seus olhos brilharam, animou-se,
trocamos algumas palavras. Foi
bom e inesquecível.
O Nobel da Paz em seu escritório
APPhoto/BebetoMatthews
JeffJMitchell/GettyImages)JeffJMitchell/GettyImages)
Refugiados tentam entrar na Europa
15Cadernos Conib
Gisela WajkopPatrícia Campos Mello
Um ano letal
para os refugiados
Patrícia Campos Mello
Repórter especial da
Folha de S. Paulo, foi
correspondente nos
EUA e escreve sobre
política e economia
internacional
m um único dia, 29 de agosto de 2016, cerca de
6.500 refugiados foram resgatados pela guarda
costeira italiana no mar Mediterrâneo. Eram so-
malis e eritreus amontoados em frágeis botes de borracha.
Mais de 160 mil refugiados e migrantes econômicos
já encararam essa rota perigosa neste ano. Eles pagam
entre US$ 1.000 e US$ 2.000 aos traficantes para sair da
Líbia e chegar ao sonho europeu via Itália. Muitos se afo-
gam bem antes de atingir seu destino.
A União Europeia achou que tinha resolvido o proble-
ma dos refugiados que inundam suas fronteiras. Em mar-
ço, fechou o acordo de «um entra, um sai» com o autocra-
ta turco Recep Tayyip Erdogan: para cada sírio devolvido
pela Grécia à Turquia, a UE se comprometia a receber um
sírio que estivesse esperando na Turquia.
Um ano letal
para os refugiados
16 Cadernos Conib
Em troca, a Europa fechou os
olhos para as arbitrariedades de
Erdogan e prometeu seis bilhões
de euros para o governo turco.
Depois do acordo, o fluxo de re-
fugiados da Turquia para a Grécia
praticamente secou. A média de
2.248 pessoas chegando por dia à
Grécia em janeiro caiu para 60 em
julho, segundo dados da Organiza-
ção Internacional para Migrações
(IOM, na sigla em inglês). Nesta
rota, a maioria dos refugiados são
sírios, iraquianos e afegãos.
Mas o pacto criou outros pro-
blemas. Os refugiados agora se
acumulam na fronteira da Síria
com a Turquia, país que já tem mais
de 2 milhões de sírios, a maioria vi-
vendo em campos insalubres, sem
acesso a assistência médica ou ao
mercado de trabalho. Outros mi-
grantes estão encalhados na Gré-
cia, porque não conseguem pros-
seguir rumo ao norte da Europa e
não têm dinheiro para voltar para
a Turquia. Desde o acordo com a
UE, o número de refugiados api-
nhados em campos na Grécia su-
biu 37%, chegando a 58. 635.
Na outra rota, da Líbia para a
Itália, a situação é ainda pior. A mé-
dia de 176 migrantes chegando por
dia em janeiro subiu para 782 em
julho,umaumentodemaisde400%.
Para a Itália, vão principalmente
refugiados da Nigéria, que sofrem
com a pobreza e o Boko Haram,
milícia extremista que declarou le-
aldade ao Estado Islâmico e se no-
tabilizou ao sequestrar meninas e
transformá-las em mulheres-bom-
ba. Chegam também migrantes do
Níger,Sudão,Gana,Guiné,Senegal,
Costa do Marfim, Somália e Mali.
O ano de 2016 se encaminha
para ser o mais letal para os refu-
giados que querem chegar à Euro-
pa – neste ano, já morreram mais
de 3.000 (85% vindos da Líbia).
No ano passado, no mesmo perío-
do, 2.657 haviam morrido.
A Líbia se tornou o principal
centro de tráfico de refugiados no
mundo. E a rota mais letal para os
migrantes que querem chegar à
Europa.
Após a derrubada do ditador
Muammar Gaddafi, em 2011, o
país viveu uma breve paz e mer-
gulhou no caos. Hoje, tem três go-
vernos, guerra civil, fronteiras sem
fiscalização e impunidade para os
traficantes de pessoas.
Para completar, a Líbia está
cercada por nações da África sub-
saariana com massas de jovens su-
bempregados, ávidos pela oportu-
nidade de emigrar para a Europa.
Segundo a IOM, há 275 mil mi-
grantes na Líbia esperando para
embarcar rumo à Europa.
Eles juntam dinheiro para en-
viar às suas famílias ou pagar a um
atravessador e pegar o barco para
a Itália.
Estive na Líbia em julho de
2016 fazendo reportagens sobre os
refugiados.
Tudo isso mostra quão inútil é a
tentativa dos países ocidentais
de resolver a tragédia da
migração em massa por meio
de medidas de segurança e
vigilância, em vez de abordar
os problemas no país de origem
17Cadernos Conib
É muito fácil encontrá-los: são
dezenas de jovens que se aglome-
ram nas rotatórias das cidades lí-
bias, esperando que os contratem
para um dia de trabalho. Cada um
leva seu instrumento para identifi-
car o serviço que oferece – demo-
lidores, com martelos; pintores,
com rolos.
Ganham entre US$ 5 e US$ 10
por dia. Vivem em cortiços, amon-
toados em até 10 pessoas no mes-
mo quarto. E estes são os sortudos.
Muitos migrantes acabam presos
em um dos 30 campos de detenção
da Líbia.
No centro de detenção Abu Sle-
em, havia dois banheiros para cem
pessoas. O de Al Karareem, que
eu visitei, estava sem receber pro-
dutos de limpeza havia um mês.
“Às vezes o cheiro é insuportável”,
dizia um funcionário.
Detentos em Karareem me con-
taram que falta comida e que são
espancados frequentemente.
Mesmo assim, a situação ainda
é melhor do que em seus países de
origem, garantem os refugiados.
Tudo isso mostra quão inútil é
a tentativa dos países ocidentais
de resolver a tragédia da migração
em massa por meio de medidas de
segurança e vigilância, em vez de
abordar os problemas no país de
origem dos refugiados.
Não adianta barrar a entrada
dos imigrantes ou devolvê-los para
a Turquia ou Líbia se não forem
resolvidos os conflitos e a pobreza
na Síria, Nigéria, Sudão, Iraque e
Afeganistão.
Nota
Uma versão condensada deste artigo foi publicada na Folha de S. Paulo
Campo de refugiados no Sudão
AlbertGonzálezFarran/UN
Menino curdo em campo de refugiados na Turquia
19Cadernos Conib
Gisela WajkopCelso Lafer
Refugiados,
os indesejáveis
Refugiados,
os indesejáveis
CELSO LAFER
Advogado, jurista,
professor, membro da
Academia Brasileira
de Letras e ex-
ministro das Relações
Exteriores.
século 20 foi caracterizado como uma era
de extremos pelas rupturas, tanto criativas quan-
to destrutivas, na vida das pessoas num mun-
do que foi crescentemente se interconectando. Esses ex-
tremos, para o bem e para o mal, se prolongam no século 21.
No plano das relações internacionais, a permanência
da violência, que a inovação tecnológica amplia e irradia, é
um dos dados mais constantes da dinâmica dos extremos.
Essa violência expressa as dificuldades da diplomacia em
encontrar interesses comuns e compartilháveis. Revela
como o sistema internacional não tem sido capaz de bem
lidar com o mundo caleidoscópico que resultou dos desdo-
bramentos do término da Guerra Fria.
Neste mundo, a globalização das emoções, dos ressen-
timentos e das paixões se conjuga e frequentemente se
20 Cadernos Conib
sobrepõe à razoabilidade dos inte-
resses dos povos e dos Estados.
É o caso do resultado do plebis-
cito da Grã-Bretanha, em prol da
saída da União Europeia. Essa de-
cisão deixa de lado a convergência
da reciprocidade de interesses. Ex-
plicita a corrosão dos valores que
impulsionaram uma das poucas
utopias bem-sucedidas da segunda
metade do século 20: a lógica da
construção, juridicamente acorda-
da, e não imposta, de uma Europa
próspera e em paz. A ressonância
da candidatura presidencial de
Donald Trump nos EUA insere-se
nessa moldura, na qual a mobiliza-
ção interna das emoções deixa em
segundo plano a articulação dos
interesses americanos no mundo.
A vigência das emoções se vê
intensificada também porque as
memórias dos povos e dos seus di-
rigentes nem sempre são compar-
tilháveis. Daí conflitos de valores
e perspectivas que dificultam o
papel da convergência universali-
zadora de receios e esperanças. A
narrativa da memória da Europa,
por exemplo, é muito distinta da
do mundo muçulmano e árabe. O
desagregador unilateralismo fun-
damentalista do Estado Islâmico e
a intensificação da ação do terro-
rismo transfronteiras almejam a
propagação do medo, que não se
amolda aos critérios da razoabili-
dade diplomática da solução pací-
fica dos conflitos.
Pode-se dizer que o sistema in-
ternacional contemporâneo vive
a instabilidade desordenada pro-
veniente da interação de forças
centrípetas e centrífugas e está
permeado pelos desdobramentos,
que têm impacto na dinâmica glo-
bal da alteração das relações de
poder. Na Ásia, as que resultam da
primazia da China e da emergên-
cia da Índia. No Oriente Médio, as
provenientes de um novo e mais
significativo papel que passaram
a desempenhar na região o Irã e a
Turquia.
Nada disso põe em questão
com tanta profundidade o valor e
o papel de uma comunidade inter-
nacional, tal como preconizada no
preâmbulodaCartadaONU,quan-
to o problema dos refugiados. Com
efeito, as nações não estão unidas
para efetivamente conterem por
uma ação conjunta a emergência
em larga escala de uma crescente
população de excluídos do mundo.
Estão se repetindo em novos
termos no século 21 componentes
dos extremos do século 20 que ge-
raram, com o flagelo da guerra e
os fanatismos das emoções do po-
der cego, tantas pessoas sem lugar
no mundo.
Na discussão dos extremos no
século 21 cabe um paralelismo com
os do século 20. Lembro, assim, a
análise de Hannah Arendt a respei-
to daqueles que na Europa pós-Pri-
meira Guerra Mundial se viram,
por obra dos totalitarismos, expul-
sos da trindade Estado-povo-ter-
ritório, tornando-se indesejáveis
não documentados em quase to-
dos os lugares e tidos como descar-
táveis – ponto de partida dos cam-
pos de refugiados, facilitadores
dos campos de concentração.
Foi a reação diplomática a es-
sas catástrofes que levou à “ideia
a realizar”, que está na origem da
ONU, de institucionalizar uma
21Cadernos Conib
comunidade internacional atenta
aos direitos fundamentais e à dig-
nidade do ser humano. Partiu-se
conceitualmente do pressuposto
kantiano de um direito à hospita-
lidade universal, lastreado na hi-
pótese de que a violação do direito
num ponto da Terra seria efetiva-
mente sentida em todos os demais.
É esta “ideia a realizar” de uma
comunidade internacional tute-
ladora do direito à hospitalidade
universal que está hoje em questão
de maneira dramática.
Na perspectiva do efeito des-
trutivo atual dos extremos, cabe
sublinhar a trágica precariedade
que assola a vida de pessoas nas
regiões do que pode ser qualifica-
do de o arco da crise. No Oriente
Médio e em partes da África há
Estados falidos (como o Iraque e a
Líbia), Estados em estado pré-fa-
limentar, conflitos e guerras civis
que se prolongam com interven-
ções extrarregionais, como a que
desagrega a Síria, a precariedade
e artificialidade de fronteiras in-
terestatais, que instigam conflitos
étnicos e religiosos. Tudo isso, em
conjunto, vem catalisando a exis-
tência dessa enorme população
de excluídos do mundo comum,
refugiados que fogem do arco da
crise, sem encontrar destino e
acolhida.
O número de pessoas que bus-
cam asilo, estão internamente
deslocadas nos seus países ou são
refugiadas por obra de guerras e
perseguições se elevou de 59.6 mi-
lhões em 2014 para 65.3 milhões
de pessoas no final de 2015. Isso
significa que uma em cada 113
pessoas da população mundial
está fora do mundo comum e não
tem acesso ao direito à hospitali-
dade universal. Cerca de 51% de
refugiados do mundo são crianças,
muitas separadas dos pais e viajan-
do sozinhas à procura de destino.
A situação da Síria, a do Sudão do
Sul, a do Iêmen, do Burundi, da
República Centro-Africana são for-
ças alimentadoras desse fluxo de
pessoas de países de baixa renda
que enfrentam essa dura realida-
de.
O limbo em que se encontram
os excluídos do mundo comum,
mais tenebroso que os círculos do
inferno de Dante, é, na perspec-
tiva de uma razão abrangente da
humanidade, a mais grave tensão
difusa que permeia a vida interna-
cional.
Nota
Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S.Paulo
São Domingos e os Albigenses - Pedro Berruguete - Museu do Prado - Madri
23Cadernos Conib
Gisela WajkopRenato Janine Ribeiro
O que significa
tolerância?
O que significa
tolerância?
Renato Janine Ribeiro
Professor-titular
da cadeira de Ética
e Filosofia política
da Faculdade de
Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da
Universidade de São
Paulo. Foi ministro da
Educação do Brasil,
entre abril e setembro
de 2015.
tolerância se torna um grande tema no pensa-
mento ocidental durante o século 17. Isso depois
de mais cem anos de guerras de religião. Com a
Reforma Protestante, o Ocidente rachou entre católicos e
protestantes. Quando vemos a intolerância de católicos
com protestantes e vice-versa nas produções de cinema,
como por exemplo, em “Elizabeth”, dos anos 1990, o que
eles fazem é colocar todo o conflito como se fosse apenas
uma questão de ignorância, de preconceito, de uma coi-
sa errada, que pessoas mais abertas, mais normais - em
suma: nós-, não fariam.
Tudo passa como um grande erro, uma grande falha.
Mas na verdade o conflito que havia nas guerras de reli-
gião tinha razões muito mais básicas. Os protestantes, por
exemplo, negavam que o padre católico fosse capaz, du-
24 Cadernos Conib
nem protestantes nem judeus, que
tinham muitas vezes capacitações
econômicas que lhes fizeram fal-
ta. Já em outros lugares, como
Inglaterra e Holanda, a tolerância
surgiu, em boa parte, justamente
para manter essa mão de obra qua-
lificada, inteligente, que permite o
desenvolvimento econômico.
O que então significa tolerân-
cia? Nada mais, nada menos do
que isso: tolerar. Não é admirar
nem gostar, não é concordar nem
prezar. É como quando digo que
tolero determinada conduta. Não
gosto, sou contra, mas tolero por-
que acho que não vale a pena ficar
brigando por causa disso e arru-
mar problemas grandes por uma
questão pequena. O equivalente
disso hoje seria liberar o consumo
da maconha, porque fica muito
mais complicado ir atrás do usu-
ário e mesmo do traficante: você
tem que gastar muita força poli-
cial, muito dinheiro para investi-
gar, muito dinheiro para prender,
para depois colocá-los na escola do
crime, que é a cadeia. Chega uma
hora em que você diz: “Não con-
cordo, não acho que seja uma coi-
sa boa, mas perseguir é mais caro,
pior, mais oneroso”.
Mais ou menos foi isso que fez,
inicialmente na Inglaterra e na
Holanda, a tolerância entrar na
ordem do dia. Não era uma admi-
ração. Apenas uma admissão, nem
sempre dando todos os direitos à
pessoa tolerada, que não poderia
assumir certos cargos, etc...
Isso é o que hoje chamamos de
tolerância em um sentido fraco.
Nos últimos tempos, surgiu a ideia
de que existiria uma tolerância em
rante a missa, de consagrar o pão e
o vinho, transformando-os em cor-
po e sangue de Jesus Cristo. Quan-
do o fiel recebe a hóstia ou quando
o padre ingere o vinho, o fiel está
ingerindo o corpo; e o padre, o cor-
po e o sangue de Jesus. Esse é um
dogma da Igreja Católica.
Para os protestantes, isso sig-
nificava algo inaceitável, porque
o padre se comportava como um
mágico e não como um homem
de fé. Cada missa católica, para os
protestantes, era um ato de magia,
uma coisa que negava completa-
mente os princípios do cristianis-
mo. E para os católicos, os protes-
tantes, como não obedeciam ao
papa, como não davam à missa
a mesma importância que os ca-
tólicos lhe davam, eram hereges,
pessoas que tinham fugido do bom
caminho.
Daí o fato de as guerras de reli-
gião terem sido tão cruéis: porque
havia concepções diferentes e re-
sultados diferentes. Se um rei se
tornava protestante, ele eliminava
o poder do papa sobre o seu terri-
tório. Foi o que aconteceu na Ingla-
terra, com Henrique VIII, nos vários
principados alemães que se torna-
ram luteranos. Então, o conflito era
muito mais forte do que apenas di-
vergências de ideias. A questão da
tolerância surge na segunda meta-
de do século 17. Por quê?
Porque um lado e outro perce-
beram que era muito difícil manter
esse conflito. O custo dele às vezes
era muito alto. Há lugares que con-
tinuaram intolerantes: Portugal
e Espanha, por exemplo. E paga-
ram um preço alto por isso, porque
não tiveram mais em seu território
25Cadernos Conib
sentido forte, que usa o mesmo
termo, porque é um termo consa-
grado, mas muda completamente
o sentido dele, pois considera que
se pode aprender com a diferença,
com o outro. Em vez de simples-
mente deixar que uma pessoa es-
teja lá, porque é pior e mais one-
roso persegui-la, percebe-se que
será interessante o contato com o
outro.
Essa é uma grande mudança
que houve no mundo. Do lado da
Igreja Católica, ela se deve muito
ao papa João 23, que convocou o
Concílio Vaticano II e deu vários
passos importantes, como por
exemplo abolir as maledicências,
que até durante a missa eram ditas
sobre os judeus, dialogar intensa-
mente com os líderes religiosos
protestantes, ortodoxos, judeus e
abrir espaço para diálogo constan-
te com os muçulmanos.
Tudo isso mudou inteiramente
o perfil que hoje temos da tolerân-
cia. Há uma ideia cada vez mais
forte: não importa quais sejam
suas liturgias, seus ritos, até mes-
mo seus dogmas e artigos de fé.
Importa é que você creia em Deus
ou em deuses até, se quiser, como
no caso de alguns politeísmos
brandos como os cultos afro-brasi-
leiros. Importa é que você creia em
alguma divindade e que você pra-
tique o bem.
Então, passa a haver a ideia que
as diferentes religiões são quase
nomes diferentes para designar a
ideia de uma transcendência, de
uma dimensão espiritual, que esta-
rá cada vez mais ligada ao bem, o
que também é uma novidade. Dis-
solve-se muito da importância ri-
tualística extrema que havia quan-
do, por exemplo, Deus fulminava
um homem, simplesmente porque
ele, sem querer, tinha esbarrado
na Arca da Aliança.
Passa a haver a ideia de que a
fé, a religião são algo mais profun-
do, o que acaba permitindo um di-
álogo, em pé de igualdade, entre
fés muito diferentes. Esse é um dos
pontos muito bons dos tempos atu-
ais e que vai bastante além da tole-
rância do século 17, porque agora
a ideia é de que realmente se possa
aprender com o outro.
Tribunal da Inquisição - Francisco Goya - Real Academia de Belas Artes - Madri
Vista de Jerusalém
27Cadernos Conib
Gisela WajkopNilton Bonder
Jerusalém
e a tolerância
Nilton Bonder
Rabino e escritor,
líder espiritual
da Congregação
Judaica do Brasil.
Dirige o Centro de
Cultura Midrash
no Rio de Janeiro.
om certeza não existe ícone maior da dificuldade
de convivência humana do que a cidade de Jeru-
salém. Fundada há três mil anos pelo rei Davi,
possivelmente já então sobre um sítio sagrado arcaico da
região, Jerusalém era um projeto. Seu nome o revelava:
Ierushalem, a cidade da plenitude ou a cidade da paz. E o
projeto deu certo. Não exatamente por ter trazido paz em
sua história, muito pelo contrário, mas por ter sintetizado
a dificuldade humana de obtê-la. Jerusalém se transfor-
mou em símbolo de triunfo, e se há algo que a paz não é...
é ser fruto do triunfo.
Em junho de 1967, poucos dias após a Guerra dos Seis
Dias e a conquista da cidade velha de Jerusalém pelo
exército israelense, a figura política e a liderança mais
proeminente do novo Estado de Israel, David Ben Gurion,
BS’D
Jerusalém
e a tolerância
28 Cadernos Conib
recebia uma carta. Era de um re-
metente relativamente desconhe-
cido, um rabino de nome Zalman
Schachter. Em sua carta, o rabino
alertava para a grandeza histórica
daquele momento. Após 18 sécu-
los sem soberania sobre seu maior
monumento, o Monte do Templo,
plantado no coração da cidade ve-
lha, os judeus não só tinham aces-
so, mas também controle do local.
Enquanto os judeus se emocio-
navam com as fotos de soldados
rezando junto ao Muro das La-
mentações, enquanto a experiên-
cia do maior exílio e dispersão da
história humana parecia chegar ao
fim com conotações messiânicas
mesmo para a imprensa mundial,
aquela carta trazia um conteúdo
chocante. O rabino Zalman exor-
tava a Ben Gurion que declarasse
imediatamente Jerusalém como
um monumento internacional e
que permitisse à cidade, justa-
mente em sua reconquista pelos
judeus, a realização de seu proje-
to histórico – não o triunfo, mas a
paz.
O argumento do rabino era no
mínimo interessante. Ele dizia que
o triunfo representava a mais efê-
mera das seguranças e usava da
própria história dos judeus para
mostrar que o triunfo dos assírios,
gregos, romanos, bizantinos, cru-
zados e otomanos era uma metáfo-
ra recorrente de que o vencedor de
hoje é o derrotado de amanhã. Não
pela força, mas pelo espírito – para
colocar nas palavras milenares dos
profetas de Israel. Quem vence
produz um vencido e se coloca na
cadeia sucessiva e interminável da
violência.
Talvez no furor e euforia de
um povo que duas décadas antes
estava sendo aniquilado em câma-
ras de gás, ficasse difícil não dar a
essa carta o fim que provavelmen-
te teve – o de ser ignorada. Mas ela
continha algo merecedor de refle-
xão, particularmente hoje quando
israelenses e palestinos são irre-
dutíveis em postular um acordo de
paz que lhes garanta, para ambos,
ter Jerusalém como capital metá-
fora do triunfo.
Quem visitasse Jerusalém antes
da “intifada” encontraria a cidade
velha sob evidentes “controles”
que se organizaram na prática. Os
muçulmanos controlavam a região
das mesquitas, os judeus, a região
do Muro, os católicos, as igrejas
e seus monumentos santos. Algo
que, se não era perfeito, não esta-
va na prática longe dos corações.
Essa prática havia sido um interes-
sante resultado de convívio e, ob-
viamente, de um relativo estado de
liberdade e democracia, que bem
ou mal, o Estado de Israel trouxe
como novidade àquele canto do
mundo. A solução com certeza
passa por estes três ingredientes:
o convívio, o estado de liberdade e
o fim do triunfalismo. Algo muito
diferente do que as lideranças de
ambos os lados estão fazendo.
Jerusalém “minha ou sua”, vo-
tação pela internet para ver quem
“ganha” e atitudes afins não apro-
ximam ninguém de uma possível
capital-metáfora da paz. Há uma
profunda irresponsabilidade em
colocar quem quer que seja na po-
sição de “perder” Jerusalém.
Há profundos trabalhos de
amadurecimento para o Ocidente
29Cadernos Conib
e o Oriente Médio a serem realiza-
dos em torno de Jerusalém. Para
os judeus há uma difícil autoanáli-
se, que não é apenas política, mas
teológica.
Compreender o monoteísmo
não apenas como a religião de
um D’us único, mas de apenas um
povo, é um ato de triunfalismo no
século 21. Para muçulmanos e cris-
tãos o trabalho não é menos pro-
fundo e complexo. Passa pela mes-
ma questão, acrescida da reflexão
de querer ser a legítima Israel (ou
Ismael para os muçulmanos) ou a
Nova-Israel (na visão cristã). Foi
este desejo de triunfo teológico
que marcou as guerras entre cris-
tãos e muçulmanos nos últimos
dois milênios pela conquista de
Jerusalém. Não apenas um triunfo
político, mas teológico. E quando o
triunfo é teológico e simbólico, en-
tão não se trata de saber com quem
fica Jerusalém, mas quem fica com
D’us. E aí as negociações passam
a ser de ordem psicológica, tendo
como questão básica: de qual dos
filhos Você gosta mais?
Não haverá paz enquanto am-
bos, ou melhor, todos os lados in-
teressados não forem derrotados.
Uma derrota na expectativa de
triunfo de todos é a única esperan-
ça da paz. Sempre foi.
A praga do convencimento
Entramos neste século com o papa
tocando numa antiga ferida do-
mundo ocidental. Pediu perdão
pelos crimes cometidos em “nome
de D’us”. Nunca ficou tão politica-
mente claro o significado do ter-
ceiro mandamento“não tomarás o
nome de teu D’us em vão”. Em par-
ticular foram lembrados os crimes
cometidos a serviço da “verdade”:
a intolerância e violência contra
dissidentes, guerras religiosas;
violência e abusos dos cruzados e
os métodos cruéis utilizados pela
Inquisição. Uma das lutas funda-
mentais dos “direitos humanos”
é contra o desejo de “convencer”
e “converter”. A ideia que norteia
nossa civilização ocidental é que
para um lado ter razão o outro tem
que, necessariamente, estar erra-
do.
Conta-se que um rabino foi cer-
ta vez consultado sobre um litígio.
Uma das partes envolvidas apre-
sentou seu caso, e o rabino aquies-
ceu: “Você tem razão”. A outra
parte também apresentou sua ar-
gumentação, e o rabino reconhe-
ceu: “Você também tem razão”.
Seu assistente que o acompanha-
va, atônito, questionou o mestre:
“isso é um litígio, como pode ser
que este tenha razão e aquele te-
nha razão?”. O rabino concordou:
“Você também tem razão”.
À primeira vista, o rabino nos
parece uma figura patética que
concorda com qualquer argumen-
tação. Num segundo olhar perce-
Jerusalém "minha ou sua",
votos pela internet para ver
quem “ganha” e atitudes afins
não aproximam ninguém de
uma possível capital-metáfora
da paz. Há uma profunda
irresponsabilidade em colocar
quem quer que seja na posição
de “perder” Jerusalém
30 Cadernos Conib
bemos seu ensinamento acerca de
uma “razão” que não é indivisível
ou única. Para nossa dificuldade,
a realidade é sempre composta de
vários “certos”. A democratização
do “certo” talvez seja o mais im-
portante ato de cidadania e de es-
piritualidade de nossos tempos.
Mais importante talvez do que
a memória e o julgamento do pas-
sado seja a capacidade de identi-
ficar em nosso tempo as atitudes
que ainda representam as forças
do convencimento. Elas estão por
todas as partes travestidas de into-
lerância.
Os que “precisam convencer”
são aqueles que acreditam que a
vida é uma caminhada que deve
chegar a algum lugar onde suas
vivências e seus valores serão com-
parados às vivências e aos valores
dos outros. Os que “não precisam
convencer” não percebem a vida
como um “megavestibular”.
Não há primeiros colocados,
nem sequer aprovados e repro-
vados por parâmetros externos e
excludentes. Não há salvos e per-
didos. É possível que todos vivam
suas vidas com reverência, integri-
dade e intensidade.
Há neste mundo os que “vivem
e deixam viver” e há no mundo os
que precisam afirmar suas certezas
provando e apontando o “outro”
como errado.
Um dia concordaremos que só
existe um parâmetro externo para
definir o “certo” e o “errado”: cer-
to é qualquer coisa que não queira
convencer ou impor a vontade de
um sobre o outro; “errado” é a pos-
tura do convencimento.
Tanto o convencido quanto o
que convence são perdedores. O
julgamento da vida se baseia em
duas listas de acusação: as ocasi-
ões em que fomos convencidos e
as ocasiões em que convencemos.
Nossa identidade e nosso senso
de presença são experimentados
quando não estamos nem na con-
dição de convencidos nem na de
convencer. A própria alegria de-
pende do quanto somos convenci-
dos pelos outros e do quanto con-
vencemos os outros. Quanto mais
somos convencidos e convence-
mos, mais tristes e insatisfeitos nos
tornamos; maior nosso senso de
inadequação; maiores nossa inse-
gurança e nosso medo.
O convencimento nos rouba a
vitalidade fundamental e nos faz
dependentes do outro para definir
a nós mesmos. O convencimento
é uma inveja dissimulada. Hos-
pedeiro do mal, ele se instala em
todas as áreas estagnadas e alie-
nadas de nossa vida e lá deposita
suas larvas. Podemos erradicar o
“convencimento” do mundo com
uma ação “sanitária” cuidadosa e
organizada. Podemos nos educar a
ponto de termos “tolerância zero”
para com a intolerância. O reco-
nhecimento dos erros do passado é
um importante passo, mas apenas
aumenta a responsabilidade.
Isso porque a história julgará a
todos não por sua consciência do
erro, mas por sua capacidade de
evitar repeti-lo.
31Cadernos Conib
Gisela WajkopJaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky
O fanatismo
na história
O fanatismo
na história
Jaime Pinsky
historiador e editor.
Doutor e livre-docente
pela USP, professor
titular aposentado
da Unicamp, diretor
editorial da Editora
Contexto.
Carla Bassanezi Pinsky,
historiadora, mestre
pela USP e doutora pela
Unicamp.
anático é um termo cunhado no século 18 para
denominar pessoas que seriam partidárias ex-
tremistas, exaltadas e acríticas de uma causa. O
grande perigo do fanático consiste na certeza absoluta e
incontestável que ele tem a respeito de suas verdades. De-
tentor de uma verdade supostamente revelada especial-
mente para ele pelo seu deus, o fanático não tem como
aceitar discussões ou questionamentos racionais com
relação àquilo que apresenta como sendo seu conheci-
mento: a origem divina de suas certezas não permite que
argumentos apresentados por simples mortais se contra-
ponham a elas.
Pode-se argumentar que as palavras de Hitler ou as de
Mao mobilizaram fanáticos tão convictos como os religio-
sos e não tinham origem divina. Ora, de certa forma, eles
eram cultuados como deuses, e suas palavras não podiam
ser objeto de contestação, do mesmo modo que ocor-
re com qualquer conhecimento de origem dogmática.
É, portanto, condição do fanático a irracionalidade.
É possível estudar as manifestações de fanatismo na
história, inclusive em períodos anteriores à Era Moderna,
sem incorrer em anacronismos, se procuramos compre-
ender o fenômeno, lançando mão de uma cuidadosa in-
32 Cadernos Conib
vestigação histórica. Como se sabe,
o olhar que despejamos sobre o
acontecido é, necessariamente, o
de alguém que vive numa determi-
nada época, em um determinado
lugar, e é fruto das contingências
decorrentes dessas determinações.
Nesse sentido, podemos olhar a
história e as sociedades a partir da
perspectiva do século 21, ao iden-
tificar, em vários contextos, sinais
de fanatismo como uma forma de
atentado ao que reconhecemos
hoje como direitos humanos, uma
conquista incorporada ao patrimô-
nio cultural da humanidade, um
avanço que, embora localizado na
sua origem, adquiriu caráter uni-
versal, ou seja, o reconhecimento
do direito à vida.
Com essa postura, podemos
apontar manifestações de fanatis-
mo baseadas em quatro grandes
tipos de justificativas ideológicas
adotadas pelos fanáticos: as reli-
giosas, as racistas, as políticas e as
“esportivas”.
A religião serviu e serve como
explicação/pretexto para perse-
guições, torturas e assassinatos
em diversos momentos da história,
dos cruzados medievais aos funda-
mentalistas do século 21.
O racismo (contra negros, se-
mitas, orientais, etnias minoritá-
rias) provocou e provoca muitas
humilhações e derramamento de
sangue, tendo chegado ao ponto
máximo, em pleno século 20, ao
confinar pessoas em campos de ex-
termínio, onde seriam escraviza-
das, torturadas e mortas, por sua
suposta inferioridade racial. As
manifestações mais conhecidas de
fanatismo racista são as atividades
da Ku Klux Klan, do nazismo e do
famigerado e atuante neonazismo.
A política foi e é desculpa para
inúmeras violências contra opo-
sitores, manifestações agressivas
de chauvinismo, opressão e ter-
rorismo – a partir de “verdades
definitivas” tão diversas como a
comunista, a imperial, a libertária,
a do “mundo livre”, a nacionalista.
O fanatismo político é facilmente
identificável nos expurgos stalinis-
tas, na ação kamikase, no macar-
tismo, na Revolução Cultural na
China e no terror com finalidades
políticas.
Torcer no futebol surge como
o mais novo fundamento para ati-
tudes antissociais e violentas, não
só contra simpatizantes dos times
“inimigos” mas também contra
determinados grupos étnicos, mu-
lheres, homossexuais e migrantes.
Os hooligans e os membros das
torcidas organizadas no Brasil são
evidentemente sujeitos fanáticos.
O machismo (misoginia, ho-
mofobia) – motivação para violên-
cias específicas contra mulheres e
homossexuais – aparece de várias
formas que assumem as justificati-
vas acima mencionadas.
Num tempo de perplexidade,
em que olhamos para as conquistas
da humanidade, por um lado, mas
vemos, por outro, os homens exi-
bindo sua face mais cruel, é mui-
to importante analisar as diversas
faces que o fanatismo adquiriu ao
longo do tempo e em contextos
distintos. Numa época de homens-
-bomba, atentados terroristas, ma-
nifestações racistas, ações extre-
mistas, pensar o fanatismo é atual,
relevante e urgente.
33Cadernos Conib
Gisela WajkopPeter Demant
O islã e nós:
fundamentalismo
ou aproximação?
O islã e nós:
fundamentalismo
ou aproximação?
Peter Demant
Historiador e
professor de Relações
Internacionais da
USP, especialista em
questões do Oriente
Médio, o mundo
muçulmano e as
relações islã-ocidente.
ouco após o 11 de setembro, o famoso especialis-
ta em Oriente Médio Bernard Lewis observou que
a maioria dos muçulmanos não é fundamentalis-
ta, e que a maioria dos fundamentalistas não é terroris-
ta, mas... a maioria dos terroristas é composta por fun-
damentalistas muçulmanos. Essas palavras desde então
têm se verificado amplamente. Paris, Bruxelas, Orlando,
Nice, Ansbach… o terrorismo islamista parece estar em
cada lugar. A ameaça ao Ocidente é universal? Por quê?
O que podemos fazer?
A primeira tarefa é entender. O terror jihadista é an-
tiocidental mas não menos anti-islâmico. De Istambul e
Bagdá até Karachi, Kabul ou nas florestas de Nigéria, a
grande maioria das vítimas do terror jihadista são outros
muçulmanos. Nem é o terrorismo um monopólio mu-
çulmano, como uma breve analise da história do cristia-
nismo mostraria. Na Noruega um adepto da supremacia
34 Cadernos Conib
ocidental massacrou jovens sus-
peitos de simpatizar com o multi-
culturalismo. Em Myanmar mon-
ges budistas aterrorizam a minoria
muçulmana. Nenhuma religião
ou ideologia é imune à tentação
fundamentalista, pois o funda-
mentalismo é uma reação contra
a modernidade – particularmente
eficaz por mobilizar seus próprios
meios contra os valores da moder-
nidade –– e as insatisfações com a
vida moderna são tão universais
quanto a própria modernização.
Lembremos rapidamente. Des-
de o iluminismo e as revoluções
francesa e industrial, o projeto da
modernidade inclui três facetas. A
democracia e os direitos humanos
substituem os ditames do absolu-
tismo real com uma pletora de es-
colhas individuais; a tradição e os
dogmasdareligiãoreveladacedem
à ciência baseada na razão e obser-
vação, o que por sua vez impele a
tecnologia e a indústria; as socie-
dades (ocidentais em primeiro lu-
gar) que conseguem essa transição
do velho para o novo se fortalecem
tanto que logo se impõem ao mun-
do inteiro: a colonização deixa um
rastro de globalização não apenas
militar e econômica mas também
demográfica e cultural. Exemplo:
o mundo muçulmano não só teve
que se curvar a nações “infiéis”
com armas e ideias mais poderosas
e eficazes, mas hoje também migra
e entra fisicamente no Ocidente.
Uma parte dos imigrantes muçul-
manos se torna ocidental.
Porém, se o resultado é rela-
tivamente benigno: um mundo
dominado por Estados industria-
lizados mas pautado por um ideal
da democracia liberal universal,
é também verdade que o processo
para alcançar tal progresso veio a
altíssimo preço. Da superexplora-
ção dos trabalhadores às guerras
mundiais e genocídios, a transição
para a modernidade tem sido ex-
tremamente dolorosa. E o resulta-
do ainda está longe de paradisíaco.
A liberdade individual se compra
com anomia, isolamento e perda
de certezas quanto ao sentido de
nossa vida. A ciência proporciona
tanto prosperidade quanto guer-
ras mais destruidoras e formas
de controle mais invasivas. Nosso
confronto com o diferente pro-
duz choque de civilizações. Nosso
modo de viver destrói o planeta.
Não surpreende que muitos sin-
tam nostalgia do mundo pré-mo-
derno perdido e buscam refúgio
em tradições e fé que ali têm suas
raízes. Quando o impulso de “vol-
tar às raízes” da religião se une
à rejeição da modernidade, mas
com o uso de sua tecnologia (de
telecomunicação a ADMs), fala-se
de fundamentalismo. O termo ori-
ginalmente descrevia protestantes
norte-americanos conservadores
e/ou evangélicos, mas agora tam-
bém se aplica a fenômenos parale-
los em outras religiões: judaísmo,
hinduísmo, etc. No islã, o termo is-
lamismo é o mais correto. Quando
o fundamentalista (ou islamista)
começa a privilegiar (o que é sem-
pre uma escolha!) leituras de suas
fontes sagradas que parecem justi-
ficar ou até impor o uso da violên-
cia, estamos a caminho da guerra,
guerra civil, ou terrorismo.
Até aqui nosso relato é genéri-
co. As nações muçulmanas foram
35Cadernos Conib
as vítimas da expansão de poder
de outras nações que as antecede-
ram ou ultrapassaram na rota para
a modernidade: cristãs, europeias,
ocidentais. Portanto, as reações
islâmicas têm geralmente sido an-
ticoloniais e antiocidentais. Mas, o
mesmo valeria para os ameríndios,
hindus e chineses. A explosão de
raiva e violência no bojo do islã se-
ria então apenas uma ilusão ótica?
A segunda parte da máxima de
Lewis avisa que não. A virulência
do terror jihadista está em outra
categoria.. Parece que temos um
problema especial com o islã. A
menos que saibamos decifrá-lo, o
problema não desaparecerá.
Parte da resposta é que o
mundo muçulmano está geogra-
ficamente mais próximo à cris-
tandade. Contudo a causa mais
determinante do excepcionalismo
islâmico é provavelmente o fato de
ele ter demais em comum com os
judeus e cristãos, seus concorren-
tes monoteístas que hoje compõem
“o Ocidente”, para conseguir acei-
tar facilmente a perda de sua hege-
monia e glória de outrora.
O islã inclui múltiplas tendên-
cias – não todas radicais ou mesmo
antimodernas – que propõem solu-
ções para remediar uma situação
desfavorável em relação ao Oci-
dente, e na qual os muçulmanos se
sentem presos. Dentro deste leque,
o jihadismo é a corrente islamista
mais extremista antimoderna e
antiocidental, atacando o suposto
inimigo com os meios que possui.
Apesar da brutal disparidade de
recursos, não acredita que a luta
seja invencível. E, na verdade, po-
deria mesmo não ser. As democra-
cias ocidentais “ímpias” e “islamo-
fóbicas” estão mergulhadas num
profundo mal-estar ideológico e
politico. Os jihadistas combinam
a estratégia clássica de provocar
o aumento da miséria (ou imise-
ração, de Verelendung, termo da
teoria marxista) como alavanca da
conscientização das massas mu-
çulmanas discriminadas e aliena-
das, com a tática da guerra assimé-
trica e da manipulação midiática.
Usam a força da sociedade aberta,
moderna e democrática, contra ela
mesma.
A reação dos governos e pú-
blicos ocidentais é tão previsível
quanto contraproducente. Quanto
mais os países europeus ou os EUA
reagem aos ataques terroristas
com medidas “defensivas”, sejam
elas militares como no Iraque ou
na Síria, ou xenófobas em casa,
mais os públicos muçulmanos as
interpretarão como agressão con-
tra o islã. O que torna mais plau-
sível para eles a narrativa jihadista
do “ataque dos inimigos de Deus”.
O Estado Islâmico funciona
como atrativo utópico, um Sião
islamista. Grupelhos jihadistas
prometem o que falta: respeito
e autoestima, amizade,
heroísmo e o sacrifício que
outorga sentido aqui e salvação
no além. São estes valores
de significado, comunidade
e transcendência que nossa
sociedade democrática deve
reconstruir e oferecer àqueles
que nela moram.
36 Cadernos Conib
Medidas antiterror violentas ob-
viamente nem sempre podem ser
evitadas mas – a menos que sejam
tão maciças e prolongadas quan-
to as ocupações alemã e japonesa
pós-1945 – sempre arriscarão ser
ineficazes. Além do mais, dificil-
mente uma invasão militar acaba-
rá com terroristas espalhados e/ou
solitários.
Por outro lado, se por medo de
rótulos do “politicamente incorre-
to” ou da islamofobia ou por outras
vulnerabilidades, as sociedades
democráticas não reagem, elas le-
gitimam outra narrativa jihadista,
a de que o Ocidente é um tigre de
papel.
Em ambos os cenários, o Oci-
dente perde e os jihadistas ga-
nham.
O que fazer? As democracias li-
berais, baluartes do moderno, de-
veriam adotar contra os terroristas
islamistas o mesmo princípio das
artes marciais orientais que estes
usam – com êxito - contra nós:
usar a força do oponente contra
ele mesmo. De fato, a tarefa em-
bora dificílima, não é impossível.
As democracias já superaram este
desafio duas vezes contra adversá-
rios totalitários, sempre aplicando
o mesmo princípio. O fascismo se
justificou ao olhar das populações
que tentava mobilizar pela glori-
ficação da força brutal da nação,
rejeitando qualquer diversidade
interna e concentrando o poder
nas mãos de um líder. Foi derro-
tado pela aplicação de uma contra
força maior. A própria derrota mi-
litar derrubou definitivamente a
atração ideológica do militarismo
da direita. Os regimes comunistas,
por outro lado, se justificavam por
sua suposta produtividade econô-
mica maior, riqueza que (na teo-
ria) se distribuía de maneira mais
equitativa do que nos países capita-
listas. Foram derrotados sem der-
ramamento de sangue pelo exem-
plo mais atraente das economias
ocidentais, social-democráticas em
particular, que combinavam maior
produtividade com uma mais jus-
ta distribuição dos recursos e das
oportunidades. Em outras pala-
vras, a ideologia comunista foi
derrotada no plano de sua própria
promessa da emancipação huma-
na. Desde o fim da Guerra Fria, não
recuperou sua antiga atração.
Não poderíamos adequar o
mesmo princípio contra o islamis-
mo radical, hoje o maior desafio
remanescente à modernidade?
Os jovens muçulmanos urbanos,
semiocidentalizados e muitas ve-
zes educados nas metrópoles do
Ocidente (incluindo ali grupos de
convertidos) e no Oriente Médio,
constituem as camadas mais “em
risco” de radicalização islamista.
O Estado Islâmico funciona como
atrativo utópico, um Sião islamis-
ta. Grupelhos jihadistas prome-
tem o que lhes falta: respeito e
autoestima, amizade, heroísmo
e o sacrifício que outorga sentido
aqui, e salvação no além. São es-
tes valores de significado, comu-
nidade e transcendência que nos-
sa sociedade democrática deve
reconstruir e oferecer àqueles que
nela moram. O preço da seguran-
ça é a integração do outro que
mora entre nós – e num mundo
globalizado o “entre nós” equivale
ao mundo inteiro!
37Cadernos Conib
Gisela WajkopFlavio Azm Rassekh
Intolerância no regime
dos aiatolás
Intolerância no regime
dos aiatolás
Flavio Azm Rassekh
Formado em
Arquitetura, pela
FAU-USP, e em Direção
de Cinema e TV, pela
UCLA. É representante
da ONG United4Iran
no Brasil. Desde
2011 é consultor
para os projetos da
Bill & Melinda Gates
Foundation.
uatro anos após passar meses na mais infame das
prisões iranianas, o jornalista da revista ameri-
cana Newsweek Maziar Bahari teve uma ideia.
Na prisão, ele se deu conta da quantidade de ativistas
de direitos humanos, jornalistas, advogados, cineastas e
membros da religião Bahá’í, que eram encarcerados, so-
frendo regularmente todo tipo de maus-tratos e tortura.
O que lhe chamou mais a atenção foi o fato de a perse-
guição religiosa contra os membros da Fé Bahá’í passar
totalmente desapercebida da mídia.
A partir dessa constatação, criou em 2014 a campanha
“Education is not a Crime”, cujo foco é fazer a comuni-
dade internacional conhecer as políticas discriminatórias
adotadas pelas lideranças religiosas do Irã e tentar pres-
sionar os aiatolás a respeitar os diretos fundamentais de
educação, trabalho e liberdade religiosa dos membros da
comunidade Bahá’í.
A campanha criada por Maziar consiste em expor
em grandes cidades obras de grafiteiros que fomentem
a reflexão e sejam um testemunho da solidariedade da
comunidade internacional para com as minorias do Irã.
38 Cadernos Conib
As obras, espalhadas pelo mundo,
retratam de forma sutil e, às vezes,
poética um dos aspectos mais em-
blemáticos da sistemática discri-
minação sofrida por jovens bahá’ís
no Irã, proibidos de ter acesso à
educação superior por conta de
sua crença.
Os primeiros muros foram pin-
tados em Nova York e, aos poucos,
a campanha se espalhou para cida-
des como Londres, Sidney, Cidade
do Cabo, Johanesburgo, Nova Dé-
lhi, Rio de Janeiro, Atlanta, Salva-
dor e, agora também chega a São
Paulo, na praça Roosevelt, locali-
zada no centro da cidade.
Artistas de fama internacio-
nal, como Mark Rufallo, Andy
Grammer, Justin Baldoni e Rainn
Wilson, endossaram a campanha,
ao lado de dois laureados com o
Prêmio Nobel da Paz: o arcebispo
Desmond Tutu e a iraniana Shirin
Ebadi.
A partir do momento em que
os muros receberam os grafites, a
comunidade internacional come-
çou a se perguntar quem são os
Bahá’ís e por que o governo do Irã
se sente tão ameaçado por uma re-
ligião que rechaça todas as formas
de violência, prega o fim dos pre-
conceitos, defende a igualdade de
direitos entre homens e mulheres,
promove a harmonia entre ciência
e religião e conclama a humanida-
de a aceitar o conceito da unidade
na diversidade como evolução na-
tural da consciência humana.
Apesar dos paradoxais acenos
do presidente Rouhani ao Ociden-
te, o governo iraniano continua
não apenas negando os direitos
dos Bahá’ís, como também execu-
tando prisioneiros sem julgamento
devido ou sem direito a recurso,
enforcando jovens gays em praça
pública e negando às cidadãs do
país o acesso a diversos cursos uni-
versitários. Os opositores estão na
cadeia ou no exílio. Nenhuma voz
dissonante pode ser levantada den-
tro das fronteiras do país persa.
Que ninguém tenha dúvida: o
Irã é o país que mais executa pri-
sioneiros (per capita) no mundo.
É uma teocracia militar que pro-
move eleições, mas só permite a
participação de candidatos alinha-
dos aos conservadores de Teerã.
Não existe liberdade de expressão,
liberdade política ou religiosa.
Precisamos revisitar as tragé-
dias do século 20 para combater
nossa paralisia. Será que o Holo-
causto não nos ensinou nada? E
os genocídios do Camboja, Bósnia
e Ruanda?
A discriminação e o preconcei-
to não precisam de uma razão con-
creta e lógica: surgem da crença da
superioridade de uma ideologia,
religião, povo, ou nação sobre os
demais, do fanatismo religioso,
da cultura da violência e da igno-
rância da verdadeira natureza do
homem. Edmund Burke nos faz
um lembrete que foi importante no
passado e é novamente fundamen-
tal nos dias de hoje:
“Tudo o que é necessário para o
triunfo do mal é que os homens de
bem nada façam”.
Tudo que os aiatolás do Irã es-
peram de nós é que continuemos
em silêncio, enquanto seu governo
promove um genocídio silencioso
contra uma parcela importante da
sua população.
39Cadernos Conib
Gisela WajkopBernardo Sorj
Como viramos
fanáticos?
Bernardo Sorj
Professor titular de
Sociologia da UFRJ
e diretor do Centro
Edelstein de Pesquisas
Sociais.
ara entender o fanatismo devemos entender o fa-
nático - atual ou potencial -, que habita em cada
um de nós. Portanto, a pergunta que devemos
fazer é: como cada um de nós pode virar fanático? Isto
acontece quando transformamos o ódio numa narrativa.
Todos temos momentos de ódio, mas eles passam. Quan-
do, no lugar de tratar os sentimentos de ódio como algo
passageiro, passamos a construir sobre eles uma explica-
ção que justifica a desumanização do outro, estamos no
caminho de transformar-nos em fanáticos.
O fanatismo é uma construção narcisista, centrada
sobre si mesma e dominada pelas emoções, que nos leva
a abrir mão de nossa capacidade de reflexão, questiona-
mento e dúvida, abandonando assim qualquer esforço de
compreensão e empatia sobre a complexidade, circuns-
Como viramos
fanáticos?
40 Cadernos Conib
conseguem catalisar e cristalizar
ódios, sempre existentes na so-
ciedade em forma difusa, num
discurso político que desqualifica,
destrói o respeito e desumaniza os
grupos aos quais atribui caraterís-
ticas negativas. Estas característi-
cas que o fanático atribui ao odia-
do são sempre inerentes, inscritas
na natureza das pessoas e do gru-
po, portanto imutáveis. Para ele,
não existe lugar para o diálogo
ou a expectativa de que o sujeito
odiado possa mudar. Assim, este
só merece o escárnio, e, no limi-
te justifica-se, inclusive, que seja
aniquilado.
Como se proteger e educar
contra o fanatismo? Em primeiro
lugar tendo sempre em mente a
teoria de psicologia social conheci-
da como “erro de atribuição”. Ela
afirma que explicamos os erros de
conduta, nossos e de pessoas ou
instituições com as quais nos iden-
tificamos, como sendo produto de
circunstâncias particulares, e por
tanto excepcionais. Por sua vez, os
erros cometidos por aqueles com
os quais não simpatizamos seriam
inerentes ao caráter deles.
Em segundo lugar lembrando
que todos nós temos o potencial
de virar fanáticos, especialmen-
te quando nosso ambiente social
se torna propicio, ele nos permite
xingar, ofender, culpar o outro em
forma aparentemente legítima.
Quem só denuncia o fanatismo
alheio, e não está atento ao pró-
prio, facilmente escorrega em no-
vas formas de intolerância.
Em terceiro lugar, valorizando a
capacidade de dissonância cogniti-
va, em particular em situações em
tâncias e singularidades do sujeito
de nosso ódio. Como toda constru-
ção narcisista, ser fanático é uma
forma de se relacionar com o en-
torno social, na qual nossa indivi-
dualidade se constrói pela negação
da humanidade do outro, levando
ao fechamento cognitivo e emocio-
nal. Por trás de todo fanático, exis-
te alguém profundamente insegu-
ro sobre seu lugar no mundo, que
se empodera e autovaloriza pela
demonização do objeto odiado.
O fanático que tratarei aqui é o
fanático social, aquele que trans-
forma seu ódio numa narrativa
sobre grupos sociais. Ele muitas
vezes se constrói em torno de um
outro puramente imaginário, e
não no conhecimento produzido
pela convivência; ou pela generali-
zação para todo um grupo a partir
de episódios individuais. A vítima
do fanatismo é o depositário dos
ódios e frustrações do fanático.
A vida democrática exige
sempre a capacidade de
equilibrar e contrabalançar
diferentes valores, pois
cada um deles tem uma
contribuição própria,
insubstituível, que se
enriquece na interação
com os outros. Não que
inexistam tensões e
contradições entre
os diversos valores
O problema do fanatismo para
a sociedade se coloca quando ele
é articulado por discursos e práti-
cas políticas. Ou seja, quando os
fanáticos que elaboram ideologias
41Cadernos Conib
que é cômodo pensar como a maio-
ria. Devemos educar e nos educar
para não perder a autonomia de
pensar e sentir de acordo com nos-
sos valores, inclusive quando isso
significa suportar o isolamento e a
incompreensão por parte da maio-
ria de nosso entorno.
Em quarto lugar, ensinando e
praticando o politeísmo de valores.
Não existe convivência democráti-
ca possível se um único valor - seja
ele, por exemplo, pátria, comuni-
dade, liberdade ou igualdade - se
sobrepõe e subordina o resto. A
vida democrática exige sempre a
capacidade de equilibrar e contra-
balançar diferentes valores, pois
cada um deles tem uma contribui-
ção própria, insubstituível, que
se enriquece na interação com os
outros. Não que inexistam tensões
e contradições entre os diversos va-
lores, mas a arte da vida democrá-
tica e o fundamento da autonomia
dos indivíduos é dosar e combinar,
em forma reflexiva, suas diferentes
afiliações e crenças do que é certo
e errado. O fanatismo político, em
suas diversas cores e tendências,
quer sacrificar a riqueza e diversi-
dade da vida social no altar de um
único valor superior.
Para finalizar, gostaria de lem-
brar que o fanatismo quando se
propaga, muitas vezes sutilmente,
acorda o fanático que carregamos
dentro de nós. Mesmo que nosso
fanatismo se expresse como revol-
ta contra os aspectos negativos que
o outro lado possa representar, fa-
cilmente pode adquirir caraterísti-
cas de fechamento e intolerância,
levando a que nos expressemos
em forma irresponsável, e nossas
ações se orientem pelo ódio.
O fanatismo é o principal perigo
para as sociedades democráticas, e
exige um esforço constante de au-
tocritica e abertura sincera ao de-
bate de ideias e o respeito mútuo.
Não existe tikun olam (reparar o
mundo) sem um constante tikun
atzmi (repararmos a nós mesmos).
Ascensão do nazismo: fanatismo
AFP-JIJI
Judeus ortodoxos em Nova York
43Cadernos Conib
Gisela WajkopYossi Alpern
Diferentes,
porém juntos
Diferentes,
porém juntos
Yossi Alpern
Rabino do Beit
Chabad Central,
São Paulo.
im, a intolerância existe em 2016 e está bem pre-
sente entre nós, seres humanos.
Não estou me referindo à intolerância que re-
sulta de alguma ameaça ou perigo, nem à intolerância
que surge da experiência negativa. Mas sim à intolerân-
cia de alguém que ousa existir, que ousa diminuir meu
espaço no universo. Intolerância sem causa.
Rabi Shalom Dov Ber de Lubavitch (1860-1920) de-
fine este comportamento como a kelipá de Midyan, ódio
infundado, um ódio que não tem motivo específico. Não é
ativado por algum ponto em especial, mas sim pela inca-
pacidade de alguém tolerar outra pessoa, mesmo se não a
conhece e jamais esteve com ela. Esse tipo de pessoa acha
impossível se unir com outra, pois a odeia sem nenhum
motivo.
BS’D
44 Cadernos Conib
A causa disso é egoísmo. A auto-
preocupação é dominante em to-
dos os aspectos da vida do egoísta,
que vê a existência do outro como
um menosprezo à sua e, portanto,
intolerável.
O Talmud (Tratado Shabat 30b-
31a) declara: “Deve-se sempre
procurar ser tolerante como Hilel”.
Para explicar, o Talmud ofere-
ce uma história engraçada sobre
um homem que apostou 400 zuz
dizendo que poderia fazer Hilel
perder a calma e ter um ataque de
fúria. Numa tarde de sexta-feira,
quando Hilel, o presidente da Su-
prema Corte (San’hedrin), estava
ocupado se lavando para o Shabat,
o homem caminhou em frente à
sua casa, gritando: “Há um Hilel
aí? Há um Hilel aí?” Hilel colocou
um casaco, saiu para cumprimen-
tar a pessoa e perguntou: “O que
você precisa, meu filho?”
“Tenho uma pergunta a fazer,”
respondeu o homem. “Por que as
cabeças dos babilônicos são redon-
das?”
Hilel respondeu reconhecendo
que essa era uma dúvida profunda
e explicou que as parteiras babi-
lônicas não eram exímias em seu
trabalho.
O homem saiu e então retor-
nou, incomodando Hilel com mais
perguntas irrelevantes: “Por que os
pés dos africanos são mais largos?”
“Por que os olhos dos tarmodianos
são redondos?”
A cada vez que o homem retorna-
va, Hilel interrompia suas prepara-
ções para o Shabat, vestia seu man-
to, saía e respondia ao homem com
grande respeito. A certa altura Hilel
diz a ele: “Fique à vontade para fa-
zer qualquer pergunta que deseje.”
Finalmente, quando o homem
percebeu que não havia como fa-
zer Hilel perder a paciência, decla-
rou: “Que não haja muitos como
você em Israel.”
“Por quê?” perguntou Hilel.
“Por sua causa eu perdi 400
zuz!” respondeu o homem. Hilel
disse: “É muito melhor você perder
400 zuz, do que Hilel perder a pa-
ciência.”
Qual era o segredo por trás da
paciência e tolerância de Hilel? Ele
estava mentindo quando disse ao
homem que suas perguntas eram
profundas?
Hilel não era ingênuo, nem um
rabino fraco com medo de confron-
tação. Ele foi um dos maiores líde-
res e eruditos da sua época. Enten-
dia algo sobre a condição humana
que muitos de nós não conseguem
compreender.
Algumas pessoas passam por
grande dificuldade, lidando com
opiniões e atitudes que diferem
das suas. Quando são confronta-
das com uma perspectiva drasti-
camente oposta à sua, podem se
desintegrar emocionalmente. Elas
sucumbem à raiva e se sentem for-
çadas a deslegitimar seu oponente
por completo.
Outros, porém, são muito me-
lhores para lidar com ideias, estra-
tégias e caminhos muito diferen-
tes, ou até opostos, dos seus. Isso
não porque sejam relativistas mo-
rais e acreditem que não haja ver-
dades absolutas pelas quais vale a
pena buscar e lutar. Não! Eles po-
dem professar convicções profun-
das e ideais com os quais estão to-
talmente comprometidos. Porém,
45Cadernos Conib
apesar disso, podem ouvir e refle-
tir sobre ideias opostas às suas sem
sucumbir à ira ou ressentimento.
Qual a razão para essas reações
contrastantes à oposição? Rabi
Shneur Zalman de Liadi, o funda-
dor da escola Chabad de Psicologia
e Misticismo (1745-1812), sugere
que é uma questão de espaçamen-
to. Alguns cérebros simplesmente
carecem de “espaço” para permi-
tir que perspectivas diferentes re-
sidam ali dentro juntas. Quando
uma opinião oposta lhes chega ao
cérebro, eles temem que vá subs-
tituir e superar sua própria iden-
tidade. O cérebro deles não pode
conter duas noções contrastante
simultaneamente. Para eles, real-
mente ouvir e refletir sobre uma
opinião contrastante seria uma
forma de morte mental.
Consequentemente, elas devem
instintivamente deslegitimar toda
a base de seu oponente ideológico
a fim de manterem a sua.
Outros cérebros, diz Rabi
Shneur Zalman, possuem mais es-
paço dentro deles e assim podem
conter dentro de si ideias e pers-
pectivas contrastantes. Essa pessoa
pode ser fortemente e de maneira
justificável convencida de que sua
posição é verdadeira enquanto a
posição de seu oponente é errada
e talvez até destrutiva, porém ele
ainda pode “ver” e entender de
onde a outra pessoa está vindo.
Ele pode defender sua opinião fe-
rozmente, mas não tem problema
em ouvir, revisar, examinar e se
sintonizar com uma opinião muito
diferente da sua, sem assassinar o
caráter de seu adversário. Ele va-
loriza o fato de que diversidade de
opinião e perspectiva é indispen-
sável à condição humana; que um
D’us indefinido criou possibilida-
des intermináveis de pensamento
e experiência. Ele jamais fica preso
à noção de que sua maneira de ver
as coisas é a única realidade.
D’us, essa pessoa entende, trans-
cende não apenas as propriedades
físicas do homem, mas também o
modo de pensar mental e intelec-
tual de qualquer indivíduo. Às ve-
zes isso significa que eu devo estar
preparado para descobrir que po-
dem haver duas respostas para a
mesma pergunta, ambas legítimas
e válidas. Às vezes, quando a opi-
nião diferente mina as verdades
morais transmitidas no documen-
to de D’us, a Torá, não devo acei-
tar a outra opinião como legítima,
mas valorizar e entender a jornada
da outra pessoa, e lembrar-me de
não demonizá-la apenas por cau-
sa da sua posição diferente. Devo
procurar entender o que levou a
essas conclusões.
O neto de Rabi Shneur Zalmam,
Rabi Menachem Mendel de Luba-
vitch (1789-1866), num comen-
tário sobre as declarações de seu
avô, sugere que Hilel incorporava
perfeitamente esse perfil. Ele não
estava sendo politicamente cor-
reto quando disse ao homem que
suas perguntas eram profundas.
Hilel, devido à amplidão de sua
consciência, criava genuinamente
espaço em sua alma para a autên-
tica diversidade e possuía a capa-
cidade de “ver” as coisas a partir da
perspectiva de outra pessoa.
Tolerância significa que embo-
ra você veja as falhas do outro em
toda a sua feiura diante de você,
46 Cadernos Conib
isso de maneira alguma diminui
seu respeito por ele como ser hu-
mano, e por tudo de bom que ele
tem dentro de si.
Em 3 de outubro de 2016, a
comunidade judaica recebeu o
Ano Novo Judaico de 5777, com
a celebração de Rosh Hashaná, o
aniversário da criação do primeiro
homem, Adão. Os Sábios do Tal-
mud explicam por que a criação do
homem diferiu da criação de ou-
tras espécies vivas e por que, entre
outras coisas, o homem foi criado
como um indivíduo único, ao con-
trário das outras criaturas criadas
aos pares. Um dos motivos é que é
o desígnio de D’us que a raça hu-
mana, todos os seres humanos em
toda parte e em todos os tempos,
devem saber que todo e cada um
descende de um único progenitor,
um ser humano plenamente desen-
volvido criado à imagem de D’us.
Portanto, ninguém pode alegar
origem ancestral superior; assim é
mais fácil cultivar uma verdadeira
sensação de afinidade em todos os
relacionamentos inter-humanos.
Embora Rosh Hashaná seja uma
festa judaica, nossas preces para
um Feliz Ano Novo incluem tam-
bém todas as nações e os morado-
res da terra. E a verdadeira felicida-
de inclui paz e prosperidade, tanto
material quanto espiritualmente.
Fontes
Ensinamentos dos mestres de Chabad e rabinos Yossi Jacobson e Tzvi Freeman.
O toque do Shofar celebra o aniversário da criação do primeiro homem
47Cadernos Conib
Gisela WajkopHelio Carnassale
A Liberdade ReligiosaA Liberdade Religiosa
quem foi esse homem, sobrevivente
graciado com o Nobel da Paz em 1986
m Nova York em 2016, aos 88 anos?
Helio Carnassale
Mestre em Ciências
da Religião, diretor
de liberdade religiosa
da Igreja Adventista
do Sétimo Dia
para oito países da
América do Sul.
nico varão entre os quatro filhos do comerciante e ativista
comunitário Shlomo e da dona de casa Sarah Feig, Wie-
sel nasceu na cidade de Sighet em 1928. Embora Sighet,
na época, fizesse parte da Romênia, era húngara na sua
perspectiva cultural. Voltou a ser novamente Hungria em
1940 e, assim, o destino de Wiesel durante o Holocausto
uniu-se ao dos judeus húngaros de nascimento, que fo-
ram discriminados e perseguidos, mas cuja aniquilação
teve início a partir de 19 de março de 1944, com a ocu-
pação nazista. Já um mês depois surgiam os guetos; de
15 de maio até 8 de julho, 437.402 judeus foram deporta-
dos da Hungria - em 54 dias, 147 trens partiram lotados
com destino ao campo de concentração de Birkenau. A
contabilidade nazista sempre tinha os números exatos da
Solução Final.
quem foi esse homem, sobrevivente
graciado com o Nobel da Paz em 1986
m Nova York em 2016, aos 88 anos?
om uma visão holística, os adventistas têm um
enfoque voltado para o ser humano como um
todo, trabalhando para o desenvolvimento har-
mônico das faculdades físicas, intelectuais, emocionais,
sociais e espirituais das pessoas. No cumprimento de sua
missão, além de pregar uma mensagem bíblica, muitas
de suas atividades têm fins humanitários, com o objetivo
de diminuir o sofrimento humano e levar paz e esperan-
ça.
O compromisso da Igreja Adventista também inclui
a causa da liberdade religiosa. No final do século 19, os
adventistas já estavam envolvidos com esse tema, por
conta de propostas surgidas nos Estados Unidos para im-
posição do domingo como dia santificado de repouso, as
chamadas leis dominicais. Nesse contexto, foi fundada
arnas-
ciências
, diretor de
eligiosa da
entista do
a, para oito
América
A Igreja Adventista do Sétimo Dia é uma organização cris-
tã fundada nos Estados Unidos em 1863 e presente em
205 países. Com pouco mais de 19 milhões de membros,
suas atividades envolvem uma forte atuação na área edu-
cacional, com escolas, colégios e universidades, e uma
rede mundial de hospitais, clínicas, fábricas de alimentos
saudáveis e casas publicadoras.
48 Cadernos Conib
a IRLA – International Religious
Liberty Association, a mais antiga
entidade do mundo na luta pela
liberdade religiosa e que ainda
mantém uma destacada atuação
mundial de âmbito interdenomi-
nacional e inter-religioso.
Na visão adventista, a princi-
pal justificativa para se trabalhar
em favor da promoção dos direitos
humanos e em defesa da liberdade
religiosa, bem como ser a voz dos
que não têm voz, defender os inde-
fesos e empreender outros esforços
legítimos em favor da humanida-
de, é a percepção da solidariedade
divina para com os seres humanos.
Há uma direta relação entre a ma-
neira como as pessoas são tratadas
e como isso repercute no seu re-
lacionamento com a divindade. A
visão cristã adventista compartilha
plenamente da compreensão que
qualquer coisa que seja feita a um
ser humano, está sendo feita dire-
tamente a Deus.
ventistas defendem uma ampla,
total, inclusiva e irrestrita liberda-
de religiosa para todos, indepen-
dentemente das diferenças ide-
ológicas e filosóficas que muitas
vezes separam as pessoas.
John Graz, que por 20 anos foi o
líder mundial de liberdade religio-
sa da Igreja Adventista, afirmou:
“Enquanto a religião e os líderes
religiosos estão representando
um papel crescente hoje, precisa-
mos ser cautelosos, pois a maioria
das religiões se sente ameaçada
de uma maneira ou de outra. A
despeito do aumento de diálogo
e de reuniões interconfessionais,
em muitos lugares há uma tensão
crescente entre as religiões”2
.
O adventismo mantém uma
ponte relacional com a maioria das
religiões do mundo, pois possui
pontosemcomumcomojudaísmo,
islamismo, budismo, hinduísmo, e
claro, com outras denominações
cristãs. Um aspecto fundamental
na visão adventista é a convicção
em uma liberdade inclusiva e não
exclusiva, isto é, pensar e traba-
lhar para todo ser humano, ainda
que não se possa compartilhar as
mesmas crenças e nem as mesmas
práticas religiosas.
Os adventistas trabalham em
conjunto com outras entidades e
organizações de ideologia diferen-
te, quando as causas são comuns.
Um vivo exemplo disso é a parce-
ria que a Igreja Adventista no Bra-
sil mantém com a Conib na luta
pelo não confinamento dos estu-
dantes aos sábados, por ocasião
do ENEM. Muitas vitórias têm sido
alcançadas, mas ainda há muito
por se alcançar.
Baseados na regra áurea do
cristianismo - “todas as coisas que
quereis que os homens vos façam,
fazei-o vós também a eles”1
, os ad-
Os adventistas trabalham
em conjunto com outras
entidades e organizações de
ideologia diferente, quando
as causas são comuns.
Um vivo exemplo disso
é a parceria que a Igreja
Adventista no Brasil mantém
com a Conib na luta
pelo não confinamento dos
estudantes aos sábados, por
ocasião do ENEM.
49Cadernos Conib
Ao encerrar este artigo, repro-
duzo aqui as sábias palavras de
John Graz, escritas em seu livro
Fé e Liberdade: “O que podemos
fazer? Muitas tendências globais
hoje não estão a favor da liber-
dade religiosa contínua. Há uma
grande batalha por vir e deve-
mos estar prontos para defender
a liberdade religiosa para todos.
Devemos defender o princípio da
separação igreja-estado. Devemos
trabalhar para criar respeito entre
as religiões. Temos que explicar
aos governos que a discriminação
religiosa não é boa política. No
artigo A Política das Minorias Reli-
giosas Perseguidas, Philipe Jenkins
escreveu: ‘Quanto mais as mino-
rias forem excluídas, mais devo-
tarão lealdade e esforços à subcul-
tura religiosa, e mais serão vistas
como exclusivistas, separatistas
e subversivas’. Não desista. Seja
a voz dos sem voz. Seja a voz dos
milhões de perseguidos por sua fé.
Precisamos promover, defender
e proteger a liberdade religiosa
para todas as pessoas em todos os
lugares. A liberdade religiosa é
um dom do Criador para a huma-
nidade”3
.
Notas
1
Evangelho de Mateus 7:12.
2
Graz, John, Fé e Liberdade, p. 8.
3
Graz, John, Fé e Liberdade, p. 10.
Fé na liberdade religiosa
51Cadernos Conib
Gisela WajkopIvanir dos Santos
Intolerância Religiosa:
Racismo Religioso
Ivanir dos Santos
Babalawô, doutorando
em História Comparada
(UFRJ), coordenador
da Coordenadoria de
Experiências Religiosas
Tradicionais Africanas,
Afrobrasileiras,
Racismo e Intolerância
Religiosa (UFRJ).
intolerância religiosa, assim como o racismo,
não é um fenômeno social que acontece exclusi-
vamente no Brasil. Ele aconteceu e ainda acon-
tece em diferentes partes do planeta. Um breve panorama
histórico nos mostra que a intolerância religiosa foi, du-
rante a Idade Média, um dos motivos da caças às bruxas
e, nas eras Moderna e Contemporânea, de perseguições
aos judeus, muçulmanos, cristãos ortodoxos, ciganos,
grupos religiosos afro-brasileiros etc.
Focando o contexto histórico americano e especifica-
mente brasileiro, chamamos a atenção para o fato de que
entre os grupos mais perseguidos estão os praticantes das
religiões de matriz africana.
Segundo dados do Relatório do Caso de Intolerância
Religiosa no Brasil 2015, escrito em parceria entre a Co-
Intolerância Religiosa:
Racismo Religioso
52 Cadernos Conib
missão de Combate à Intolerân-
cia Religiosa (CCIR), o Centro de
População Marginalizada (CEAP)
e o Laboratório de História das
Experiências Religiosas (LHER),
dos 1.014 casos de intolerância
registadas entre os anos de 2012
a 2015 pelo Centro de Promoção
da Liberdade Religiosa & Direitos
Humanos (CEPLIR), 73% são atos
de violência contra os praticantes
das religiões de matriz africana. O
caso da menina Kaylane Campos é
apenas um deles. Em 14 de junho
de 2015, no Rio de Janeiro, a ima-
gem da menina de apenas de 11
anos de idade com suas vestes reli-
giosas brancas manchadas de san-
gue, após ter levado uma pedrada,
estampou as manchetes e comoveu
a sociedade brasileira.
Uma dúvida paira. Afinal, se-
gundo o velho mito, o Brasil é o
país da igualdade racial, cultural,
social, econômica e quiçá religio-
sa. Qual seria o motivo de tanta in-
tolerância, a ponto de gerar agres-
sões físicas, destruição de templos
religiosos e injúrias? Não é possí-
vel analisar tais atos de violência
sem olhar de forma apurada para
as questões relacionadas aos pro-
cessos das diásporas africanas no
mundo e os olhares racistas sobre
as culturas, religiosidades e socie-
dades africanas.
Ao compreendermos que em
África o indivíduo existe em sua
totalidade religiosa, ou seja, não
é possível separa o ser social do
ser religioso, entendemos tam-
bém que, durante o período das
diásporas forçadas, os indivíduos
africanos aportaram na América
trajando sua religiosidade, pois o
mundo em que viviam não era/é
construído com base em uma visão
cartesiana, na qual seria possível
separar o indivíduo religioso e o
indivíduo social.
Sobre essa questão, Emamauel
Obiechina (1978: 28), salienta que
em África, “não existe qualquer di-
mensão importante da experiência
humana que não esteja ligada ao
sobrenatural, ao sentimento popu-
lar religioso e à piedade [...]. Tudo
isso constitui parte integrante da
estrutura ideológica da sociedade
tradicional e é essencial para uma
interpretação exata da experiência
no contexto social tradicional”.
A intolerância religiosa
contra os praticantes das
religiões de matriz africana no
Brasil pode ser diretamente
conectada ao racismo baseado
na cor da pele... negra, pois
todas as ressignificações
religiosas afro-brasileiras
estão intimamente ligadas
à religiosidade dos grupos
étnicos africanos
Em África, o religioso e o so-
cial integram a totalidade do ser.
A instauração do domínio colonial
europeu na África não compreen-
deu apenas a imposição forçada do
poder político, econômico e social.
Foi também uma grande impo-
sição cultural, valendo-se da mes-
ma para dar apoio às superestrutu-
ras políticas, econômicas e sociais
representadas pelo colonialismo
(OPOKU, 2010). Assim, a religião
tradicional em África estava (e ain-
53Cadernos Conib
da está) inseparavelmente ligada à
cultura africana.
Um olhar atento, alicerçado
pelas análises de Frantz Fanon
(2008), sobre a formação religio-
sa brasileira em suas múltiplas
tramas sincréticas – religiões ame-
ríndias, africanas e luso-católicas
– nos mostra que a ideologia da
igualdade das raças, construída e
presente na América Latina e prin-
cipalmente no Brasil, favorece a
criação de um suporte sólido para
que o racismo se mostre de forma
mais “velada”.
Ser insensível à existência do
racismo no Brasil, onde as rela-
ções são marcadas principalmente
pela assimetria entre os díspares
grupos étnicos, significa fortalecer
aqueles que detêm a hegemonia
política e econômica.
A intolerância religiosa contra
os praticantes das religiões de ma-
triz africana no Brasil pode ser dire-
tamente conectada ao racismo ba-
seado na cor da pele... negra, pois
todas as ressignificações religiosas
afro-brasileiras estão intimamente
ligadas à religiosidade dos grupos
étnicos africanos que aqui aporta-
ram, escravizados. Estes grupos fo-
ram duramente repreendidos como
irracionais, iletrados, sem cultura,
sem história e interpretados como
manifestação do mal. Da mesma
forma, as ideologias de inferiorida-
de das raças negras e das sociedades
africanas contribuíram, de maneira
ampla, para a construção do racis-
mo religioso, o crescimento da into-
lerância religiosa e a construção de
estereótipos, tais como: ‘todo negro
é praticante ou adepto das religiões
de matriz africana’ ou ‘negro vesti-
do de branco é praticante ou adepto
das religiões de matriz africana’.
Breve Reflexão final:  
Podemos interpretar o caso Kayla-
ne, de modo contundente, como
mais um caso de racismo religioso,
que é um dos tentáculos da into-
lerância. Juntos com a pedrada,
também vieram os insultos “vai
queimar no inferno” e “macumbei-
ra”. O caso, registrado no 38ª DP,
em Irajá, até o momento não foi
solucionado pelos órgãos gover-
namentais competentes. Daqui a
algum tempo, Kaylane será esque-
cida pela História.
Referências
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras
brancas; tradução de Renato da Sil-
veira - Salvador : EDUFBA, 2008.
OBIECHINA, E. 1978. Culture, Tradition
and Society In the West African Novel.
Cambridge, CUP.
OPOKU, Kofi Asare. A religião na África
durante a época colonial. In: História
geral da África, VII: África sob domi-
nação colonial, 1880-1935 / editado
por Albert Adu Boahen. – 2.ed. rev.
– Brasília : UNESCO, 2010.
ORO, Ari Pedro; BEM Daniel F. de. A dis-
criminação contra as religiões afro-
-brasileiras: ontem e hoje. In: Ciênc.
Let, Porto Alegre, n. 44, p. 301-318,
jul./dez. 2008.
Relatório de Intolerância Religiosa no
Brasil 2015.
54 Cadernos Conib Crianças palestinas e israelenses confraternizam em São Paulo
55Cadernos Conib
Gisela WajkopGabriel Holzhacker
A lição que vem
do esporte
A lição que vem
do esporte
Gabriel Holzhacker
Brasileiro, vive em
Israel desde 1999,
atua como vice-
diretor da ONG Gol da
Igualdade. Formado
em Direito na
Universidade Hebraica
de Jerusalém
uma região marcada por conflitos, guerras,
violência e constante tensão, uma ONG reúne
crianças de diferentes religiões, nacionalidades
e culturas em torno da paixão pelo futebol, compartilha-
da por todos.
O projeto Gol da Igualdade participa da construção de
uma sociedade melhor em Israel, baseada em valores de
respeito, tolerância e convivência. O objetivo é propor-
cionar a crianças da periferia social do país um quadro
esportivo e educacional nos horários da tarde (pós-esco-
la). O formato é simples: cada equipe com 15 jogadores
se reúne quatro vezes por semana durante o ano letivo:
dois dias são dedicados aos deveres escolares e atividades
sociais, e os outros dois dias aos treinos de futebol com
treinadores profissionais. As equipes são montadas em
56 Cadernos Conib
escolas de todo o país e divididas
em 12 regiões. Em cada uma des-
tas acontecem torneios regionais
mensais.
O projeto foi criado em 2009
por um grupo de estudantes da
Universidade Hebraica de Jerusa-
lém, liderados por Liran Gerassi
(atual diretor da ONG), que cur-
sava economia e administração de
empresas. No seu primeiro ano o
projeto contava com sete times, to-
dos de Jerusalém. Em 2016 partici-
param das atividades quase 2.500
crianças de 152 escolas de todo o
país. Entre os participantes, meni-
nos, meninas, judeus, árabes, mu-
çulmanos, cristãos, seculares, re-
ligiosos, drusos, beduínos, sabras,
olim hadashim (novos imigrantes)
e mais. Um verdadeiro mosaico hu-
mano criado em torno dos valores
do esporte e da tolerância.
O encontro entre crianças de
diferentes origens e crenças reli-
giosas é um grande desafio. A pai-
xão pelo futebol funciona como
uma ponte e ajuda a desenvolver
nas crianças a capacidade de se
comunicar, brincar e mesmo fazer
amizade com aqueles que até en-
tão eram estranhos ou até mesmo
inimigos.
Ao lado da equipe de diretores
da ONG e de treinadores de fute-
bol, mais de 400 voluntários par-
ticipam do Gol da Igualdade em
funções administrativas ou de mo-
nitoria. Todos trabalham com um
sentido de missão, crença no que
fazem e na capacidade de influen-
ciar as próximas gerações.
O grande desafio ao longo dos
próximos anos será cultivar
as sementes da viagem até
transformá-las em
raízes tão firmes que já não
possam mais ser arrancadas.
Que essas crianças guardem
para sempre na memória os
dez dias vividos no Brasil e que
possam, em breve, construir
um mundo de paz
A participação das crianças de-
pende unicamente de seu compor-
tamento, esforço e participação
Zé Roberto, jogador do Palmeiras, recepciona as crianças
57Cadernos Conib
na escola e em encontros educa-
cionais, – e não do desempenho
esportivo em campo. Nos casos de
racismo ou violência, a criança é
punida e pode eventualmente ser
suspensa.
Nos seus primeiros anos, a ONG
trabalhou somente com crianças
do ensino fundamental, da quarta
a sexta série. Em 2016, o projeto
foi expandido a adolescentes do
sétimo e oitavo ano escolar. Quan-
do atingirem o segundo grau, os
participantes se integrarão como
treinadores e instrutores nos times
das crianças menores, num forma-
to semelhante ao de um movimen-
to juvenil.
Gol da Igualdade no Brasil
Em agosto de 2016, 22 crianças
judias e árabes de Jerusalém que
participam das atividades da ONG
foram convidadas pela CBF para
vir ao Brasil conhecer a história
do futebol brasileiro e de seus ído-
los. A visita incluiu passagens pelo
Museu do Futebol, no Pacaembu,
Museu da CBF, no Rio de Janeiro,
Centro de Treinamentos do São
Paulo Futebol Clube em Cotia e a
sede do Santos Futebol Clube. As
crianças foram acompanhadas por
treinadores, professores e direto-
res do Gol da Igualdade.
O grande evento, o Gol da Paz,
aconteceu em 7 de agosto de 2016,
no Allianz Parque. Antes de par-
tida pelo Campeonato Brasileiro,
crianças árabes e judias de Jerusa-
lém entraram em campo para dar
o exemplo de coexistência, ao lado
de crianças dos clubes das comu-
nidades árabes e judaicas de São
Crianças no Allianz Parque: exemplo de tolerância
58 Cadernos Conib
Paulo: Hebraica, Macabi, Sírio-
-Libanês e Monte Líbano, além do
Pinheiros. A iniciativa foi da CBF,
Federação Paulista de Futebol e
organização Caminho de Abraão,
apoiada pela Sociedade Esportiva
Palmeiras e pelos clubes supracita-
dos.
Quando as crianças chegaram
ao Brasil, elas se conheciam pou-
co, por meio dos torneios mensais
da ONG.
No período em que estiveram
aqui, porém, além de jogar fute-
bol, elas compartilharam histórias,
dividiram angústias, expuseram
anseios e desenvolveram laços de
amizade. Após dez dias de intensa
convivência, as línguas hebraico
e árabe já não causavam estra-
nhamento. Elas saíram do Brasil
conhecendo os nomes uns dos
outros, cantando, jogando bola e
brincando juntas, e entendendo
que a diversidade enriquecia suas
vidas. Todas essas eram atitudes
inimagináveis antes da viagem.
Ao retornar a Jerusalém, leva-
ram na bagagem as sementes do
respeito ao próximo e da coexis-
tência. Algumas dessas sementes
já foram espalhadas em solo bra-
sileiro, durante essa convivência
intensa. As outras serão semeadas
no solo de Jerusalém com muito
esforço e trabalho. O grande de-
safio ao longo dos próximos anos
será cultivá-las até transformá-las
em raízes tão firmes que já não
possam mais ser arrancadas. Que
essas crianças guardem para sem-
pre na memória os dez dias vividos
no Brasil e que possam, em breve,
construir um mundo de paz. O Gol
da Igualdade fará sua parte e conta
com a ajuda de todos.
Amém. Inshallah.
Tolerância no esporte: exemplo para a vida
59Cadernos Conib
Gisela WajkopLelette Couto
Diversidades:
um exercício do bem viver
Lelette Couto
Arte-educadora,
diretora de teatro,
cineasta e professora
de música. Trabalhou
em produções
cinematográficas com
Nelson Pereira do
Santos, Ruy Guerra
e Valter Lima Jr. Em
2007, implementou
a Superintendência
de Promoção da
Igualdade Racial
no Estado do Rio de
Janeiro. Atualmente,
é a coordenadora
especial de Promoção
das Políticas de
Igualdade Racial da
cidade do Rio.
convívio respeitoso entre as diversidades reli-
giosas, étnicas, econômicas, intelectuais e de
gênero é um grande desafio. Com o avanço das
discussões sobre a promoção da igualdade racial e a ne-
cessidade de criar elos entre as diversas expressões hu-
manas, o Brasil criou políticas de ação afirmativa capazes
de impulsionar a construção do alicerce para a equidade.
Há sete anos, foi criada a Coordenadoria Especial de
Promoção das Políticas de Igualdade Racial – CEPPIR-
-Rio, um órgão público vinculado à Secretaria Munici-
pal da Casa Civil da cidade do Rio de Janeiro. Ela visa
promover, nos moldes da Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR-PR, políticas
voltadas para grupos historicamente discriminados.
Diversidades:
um exercício do bem viver
60 Cadernos Conib
A CEPPIR-Rio, com o objetivo
de se aproximar dos diversos gru-
pos étnicos discriminados que vi-
vem na cidade, criou o Grupo de
Trabalho de Promoção da Igual-
dade Racial – GTPIR, que durante
um ano se reuniu quinzenalmente
promovendo debates, discussões e
troca de experiências entre repre-
sentantes das comunidades negra,
indígena, judaica e cigana.
É importante ressaltar que os
encontros ocorreram de forma
itinerante, para que todos conhe-
cessem os espaços das instituições
participantes. Dessa forma, garan-
timos também que os funcionários
não integrantes do GT pudessem
ter acesso às discussões, multipli-
cando os debates em seus ambien-
tes de trabalho.
com a Secretaria Municipal de
Educação, Secretaria Municipal
de Cultura, Coordenadoria de Re-
lações Internacionais e Secretaria
Especial de Políticas para Mulhe-
res.
Nesse contexto, destaco a atu-
ação de Kike Rosenburt, sheliach
(emissário) da Agência Judaica,
que possibilitou ao grupo uma
aproximação com a juventude ju-
daica e um rico aprendizado sobre
sua cultura, costumes e práticas.
Ao longo do percurso,
surgiram os seguintes
projetos:
Mulheres de Raça
Lançado em 2014, o projeto desen-
volve atividades de fortalecimento
do afro-empreendedorismo e valo-
rização da autoestima das mulhe-
res negras, indígenas e ciganas.
Portal Cores do Rio
Canal institucional do GT da Igual-
dade Racial, foi lançado em agosto
de 2014 e tem mais de 1200 par-
ticipantes cadastrados. Reúne in-
formações de diferentes frentes de
atuação, divulgando demandas,
propostas e anseios dos grupos ét-
nicos.
Plano Municipal
da Igualdade Racial
Em fase de finalização, tem entre
seus objetivos a redução das de-
sigualdades sociais por meio do
desenvolvimento sustentável, dis-
Em cada encontro, foram discu-
tidas questões da pauta da Igual-
dade Racial na cidade do Rio de
Janeiro. Nas primeiras reuniões,
tivemos apresentações dos grupos
étnicos sobre seus processos histó-
ricos. Foi um momento enriquece-
dor, pois muitos tiveram o primei-
ro contato com as trajetórias de
outras etnias.
A itinerância contribuiu para
dar visibilidade à CEPPIR, favo-
recendo a formação de parcerias,
das quais destacamos as firmadas
61Cadernos Conib
tribuição de renda, educação de
qualidade, foco nos grupos sociais
discriminados e adoção de políti-
cas de ação afirmativa.
Racismo: vamos falar sobre
isso? (vídeo e debates)
O objetivo é levar a discussão so-
bre o racismo para diversos espa-
ços, com veiculação pelo canal da
CEPPIR no Youtube.
Selo Cores do Rio:
Aqui Valorizamos a
Diversidade Carioca
(em fase de elaboração)
Proposta elaborada pelo GT,
aguarda apoio da Prefeitura para
sua efetivação. Por meio do selo, a
Evento com participação de Lelette Couto e Ivanir dos Santos realizado na Prefeitura do Rio de Janeiro
Prefeitura reconhecerá as organi-
zações comprometidas com ações
de promoção da diversidade étni-
co-racial.
Balanço
Em um ano de atuação do GT,
destacamos o diálogo estabe-
lecido entre grupos que antes
não se comunicavam, e as par-
cerias firmadas com secreta-
rias e coordenadorias.
O exercício de ouvir aten-
tamente e partilhar narrativas
e experiências distintas é fun-
damental para que possamos
compreender “o outro” e en-
tender os principais desafios
do combate ao racismo.
RicardoCassiano
A proteção democrática
do ciberespaço
A proteção democrática
do ciberespaço
63Cadernos Conib
Gisela WajkopRony Vainzof
evolução da forma de exteriorização e materiali-
zação do pensamento teve um grande salto com
a criação do alfabeto grego, por volta do ano
700 antes da Era Comum, que possibilitou a consolidação
da comunicação por meio de palavras. Para Castells, “foi
o alfabeto que proporcionou no Ocidente a infraestrutura
mental para a comunicação cumulativa, baseada no co-
nhecimento”.1
Em meados de 1455, o ourives alemão Johannes
Gutenberg, com a invenção da prensa de tipos móveis,
possibilitou a impressão em massa, transformando para
sempre a cultura ocidental. Antes dela, cada cópia de li-
vro exigia um escriba – que escrevia tudo à mão, página
por página. Gutenberg conseguiu com seu invento suprir
a crescente necessidade por conhecimento da Europa
Rony Vainzof
Professor coordenador
do MBA em Direito
Eletrônico da Escola
Paulista de Direito.
Mestre em Soluções
Alternativas de
Controvérsias
Empresariais pela
Escola Paulista
de Direito. Pós-
Graduado em Direito
Penal e Direito
Processual Penal
pela Universidade
Presbiteriana
Mackenzie. Secretário
da Confederação
Israelita do Brasil.
63Cadernos Conib
REVISTA CADERNOS CONIB - 4ª EDIÇÃO
REVISTA CADERNOS CONIB - 4ª EDIÇÃO
REVISTA CADERNOS CONIB - 4ª EDIÇÃO
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REVISTA CADERNOS CONIB - 4ª EDIÇÃO

  • 4. 4 Cadernos Conib Cadernos Conib Nº 4 • Novembro de 2016 Edição: Henrique Veltman RT Assessoria Serviços Gráficos: Coordenação: Joel Rechtman JR Graphiks Diagramação: Reginaldo Coelho C&D Editora Revisão de texto: Ricardo Besen Capa: Resgate de refugiados em julho de 2014, em região próxima à ilha de Lampedusa, no Mediterrâneo. Colaboraram neste número: Bernardo Sorj Carla Bassanezi Pinsky Celso Lafer Flavio Azm Rassekh Gabriel Holzhacker Hélio Carnassale Henrique Veltman Ivanir dos Santos Jaime Pinsky Lelette Couto Nilton Bonder Peter Demant Renato Janine Ribeiro Rony Vainzof Patrícia Campos Mello Yossi Alpern Fernando Lottenberg Presidente Gilberto Meiches Vice-Presidente Paulo Maltz Vice-Presidente Eduardo Wurzmann Secretário-Geral Rony Vainzof Secretário Paulo Gartner Tesoureiro Itche Vasserman Tesoureiro Octavio Aronis Diretor de Segurança Institucional Mario Arthur Adler Diretor Boris Ber Diretor Daniel Matone Diretor Julio Serson Diretor Milton Seligman Diretor Ruth Goldberg Diretora Sérgio Malbergier Diretor de Comunicação Diretor de Relações Institucionais Sérgio Napchan Diretora-Executiva Karen Didio Sasson Gerente de Comunicação Ricardo Besen CONFEDERAÇÃO ISRAELITA DO BRASIL – CONIB – GESTÃO 2014-2017 Representante da Comunidade Judaica Brasileira www.conib.org.br
  • 5. 5Cadernos Conib Gisela WajkopFernando Lottenberg e Eduardo Wurzmann ivemos num mundo cada vez mais aberto e conectado. Grandes avanços na comunicação deram voz a tudo e a todos. E, como outras mu- danças de paradigma da humanidade, podem estimular o que há de melhor e de pior nas pessoas. Por isso, ao mesmo tempo em que vemos as novas e poderosas armas de comunicação/mobilização sendo usadas para promover o ódio e a intolerância, constata- mos que igualmente têm o poder de mobilizar as vozes da tolerância, do respeito e do bom convívio entre as di- ferenças. É assim que os Cadernos Conib apresentam, nesta nova edição, uma seleção de escritos focados na promo- ção da tolerância e no combate à intolerância. O povo judeu conhece muito bem os efeitos de ambos. Sofremos Um viva à tolerânciaUm viva à tolerância
  • 6. 6 Cadernos Conib como nenhum outro povo as con- sequências devastadoras do ódio e da intolerância e aprendemos a importância de cultivar a tolerân- cia e o entendimento, após tanto sofrimento. O judaísmo é uma religião que não busca impor seus preceitos a terceiros. Pelo contrário. Vivemos por séculos, e seguimos vivendo, em meio a outros povos e religiões e aprendemos o valor máximo da coexistência pacífica e produtiva. Boa parte das instituições judai- cas no mundo buscam promover o entendimento inter-religioso e combater a intolerância. A Conib, entre elas, está representada no Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial (CNPIR), órgão colegiado de caráter consultivo e integrante da estrutura da Secre- taria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). Nos textos a seguir, o leitor encontrará visões plurais sobre o tema que, espera- mos, contribuam para promover o assunto no Brasil, num momen- to de nosso país profundamente marcado por diferenças agudas. Aqui na Conib acreditamos que é possível promover a tolerância e o entendimento, no Brasil e no mundo. Ao lado dos conflitos e ataques que ganham as manche- tes, os blogs e as redes sociais, há muita gente se unindo para pro- mover o entendimento. É com esse espírito que apre- sentamos mais um Cadernos Conib. Boa leitura!
  • 7. 7Cadernos Conib SUMÁRIO A missão moral de Elie Wiesel Henrique Veltman Um ano letal para os refugiados Patrícia Campos Mello Refugiados, os indesejáveis Celso Lafer O que significa tolerância? Renato Janine Ribeiro Jerusalém e a tolerância Nilton Bonder O fanatismo na história Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky O islã e nós: fundamentalismo ou aproximação? Peter Demant Intolerância no regime dos aiatolás Flavio Azm Rassekh Como viramos fanáticos? Bernardo Sorj Diferentes, porém juntos Yossi Alpern A liberdade religiosa Helio Carnassale Intolerância religiosa: racismo religioso Ivanir dos Santos A lição que vem do esporte Gabriel Holzhacker Diversidades: um exercício do bem viver Lelette Couto A proteção democrática do ciberespaço Rony Vainzof 7 13 17 35 21 37 25 41 29 45 31 49 53 57 61
  • 8. Réplica de crematório em Auschwitz - Museu do Holocausto - Washington
  • 9. Afinal de contas, quem foi esse homem, sobrevivente do Holocausto, agraciado com o Nobel da Paz em 1986 e que morreu em Nova York em 2016, aos 88 anos? Henrique Veltman A missão moral de Elie Wiesel A missão moral de Elie Wiesel HENRIQUE VELTMAN Jornalista, escritor e sociólogo 9Cadernos Conib Henrique Veltman nico varão entre os quatro filhos do comerciante e ativista comunitário Shlomo e da dona de casa Sarah Feig, Wiesel nasceu na cidade de Sighet em 1928. Embora Sighet, na época, fizesse parte da Romê- nia, era húngara na sua perspectiva cultural. Voltou a ser novamente Hungria em 1940 e, assim, o destino de Wie- sel durante o Holocausto uniu-se ao dos judeus húngaros de nascimento, que foram discriminados e perseguidos, mas cuja aniquilação teve início a partir de 19 de mar- ço de 1944, com a ocupação nazista. Já um mês depois surgiam os guetos; de 15 de maio até 8 de julho, 437.402 judeus foram deportados da Hungria - em 54 dias, 147 trens partiram lotados com destino ao campo de concen- tração de Birkenau. A contabilidade nazista sempre tinha os números exatos da Solução Final.
  • 10. 10 Cadernos Conib Para Wiesel, a contabilidade re- gistrou perdas irreparáveis: sua irmã mais nova, Tsipora, e sua mãe, foram “selecionadas” logo nos pri- meiros momentos da ocupação ale- mã. O jovem Elie, aos 16 anos, pre- senciou a morte do pai em Buchen- wald, para onde haviam sido trans- feridos. Apenas Hilda e Bea, suas irmãs mais velhas, sobreviveram. No seu livro Celebração Pro- fética, de 1999, Wiesel escreve: “O que é um profeta? Um prega- dor? Um visionário que prevê o fu- turo? Que faz chegar a palavra de Deus às criaturas? Que intercede junto a Ele pelos seus filhos?”. Para judeus e não judeus, Wie- sel pode ser visto como um profeta, um herdeiro de Isaías, por exem- plo, com suas palavras de conso- lo... “O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o bode, o bezerro, o leão e o novilho gor- do pastarão juntos; e uma criança os guiará.” Isaías é o profeta mais trágico da história judaica, e seus escritos na Bíblia possuem uma be- leza sem par. Tanto Wiesel como Isaías de- nunciam as injustiças, mas man- têm a esperança no futuro. Elie Wiesel se confunde tam- bém com o profeta Ezequiel, cujos “ossos secos vieram à vida nova- mente”. Como Wiesel, Ezequiel é a mensagem de esperança dada por meio de símbolos e ações, a fim de que o povo continue a esperar o tempo de Deus. Gosto dessa última imagem. Acredito que Wiesel tenha sido o único sobrevivente do Holocaus- to com autoridade para cobrar da humanidade uma postura ativa em relação às vítimas do terror. Foi o principal responsável pela Elie Wiesel em frente a uma foto em que aparece, junto com outros prisioneiros, no campo de extermínio de Buchenwald. SvenNackstrand/afp/GettyImages
  • 11. 11Cadernos Conib mudança do status dos sobrevi- ventes; esses homens, mulheres e crianças deixaram de ser vistos apenas como vítimas e refugiados e passaram a testemunhas da His- tória. Neles está a missão moral de lembrar o passado, mas também de transformar o futuro. Para Elie Wiesel, o Holocausto foi “o mistério sagrado do nosso tempo”. E o escritor não fugiu da terrível questão de falar do papel de Deus nesse grande desastre. “Onde estava Deus quando o seu povo era aniquilado nas câmaras de gás?” . até governantes, sempre fiel à sua visão de mundo: o Holocausto para Wiesel era incompreensível e inex- plicável. A Intolerância No prefácio ao livro “A Intolerân- cia”, editado pela Academia Uni- versal das Culturas em 1997, Elie Wiesel reafirma a sua visão sobre o ódio e o racismo. “Pertenço a uma geração traumatizada, que sofreu na pele e na consciência uma glori- ficação do ódio; conseguiu vencer o nazismo e o fascismo, mas não a intolerância e o fanatismo que os caracterizam.” Para ele, a postura do homem frente ao fascismo não admite dú- vidas: “O fascismo é simples: com ele não transigimos. Nunca. Nós o denunciamos, desmascaramos, re- jeitamos, repudiamos, nós o exclu- ímos da sociedade humana.” Já a intolerância é sutil, o que torna a luta mais complexa. “Onde reconhecê-la? Como discer- ni-la? São muitas as respostas, sem dúvida; mas conheço apenas uma: de uma ideia ou de um movimento que inspirem o ódio, podemos di- zer que são intolerantes. Digamos que a intolerância está situada no início do ódio. Se não a detiver- mos, será tarde demais”, escreve. O livro reúne 35 textos dos par- ticipantes do Fórum Internacional sobre a Intolerância, realizado na Sorbonne, em março de 1997. Os autores são filósofos, escritores, historiadores, antropólogos, soció- logos, professores, juristas, jorna- listas e homens públicos de todo o mundo, entre eles, Umberto Eco, Mohammed Arkoun, Paul Ricoeur, Ao explorar o Holocausto a par- tir de uma visão religiosa, Wiesel produziu uma nova maneira de fa- lar de Deus e do homem; utilizou ferramentas da própria tradição para quebrá-la, mas com as mes- mas ferramentas tratou de recons- truí-la. Marcuse? Ele mesmo se descrevia como um hassídico, um judeu extrema- mente devoto, mas que agia como um rebe secular, líder de uma corte de discipulos e seguidores prontos a ouvir cada palavra sua nas pales- tras, conferências, cada ideia con- tida nos artigos, nos livros. Com- prou brigas memoráveis e rompeu com historiadores, autoridades e Se, na religião, o ódio esconde a face de Deus, na política, ele destrói a liberdade dos homens. No campo das ciências, está a serviço da morte; na literatura, ele deforma a verdade, desnaturaliza o sentido
  • 12. 12 Cadernos Conib Jacques Le Goff, Françoise Héri- tier, Zvi Yavetz, Jorge Semprún, Yehudi Menuhin, Per Ahlmark, An- toni Tàpies, Ariel Dorfman e Wole Soyinka. No seu texto, Elie Wiesel salien- ta que a intolerância não é apenas o instrumento fácil do inimigo; ela é o inimigo e nega toda a riqueza expressa pela linguagem. “Quando a linguagem fracas- sa, é a violência que a substitui. A violência é a linguagem daquele que não se exprime mais pela pala- vra.”, salienta. Para Wiesel, a intolerância e o fascismo desembocam ambos, inevitavelmente, na humilhação do outro, portanto, na negação do homem e de suas possibilidades de realização. O ódio é um flagelo de origens obscuras e insondáveis; “obra de humanos, nem Deus pode detê-lo. Nenhum povo pode se considerar imune a seu veneno, e nenhuma comunidade, a salvo de seus ata- ques (...) Odiar é atear o fogo da guerra em que as crianças se tor- nam órfãs, e os velhos, loucos de dor e de pena.” A face de Deus Se, na religião, o ódio esconde a face de Deus, na política, ele des- trói a liberdade dos homens. No campo das ciências, está a serviço da morte; na literatura, ele defor- ma a verdade, desnaturaliza o sen- tido da história e encobre qualquer beleza sob uma grossa camada de sangue e de feiura. Em seus muitos livros e arti- gos, Elie Wiesel afirma que deci- diu dedicar sua vida “para contar a história porque senti que, tendo sobrevivido, eu devo algo aos mor- tos; e qualquer um que não recor- dar estará traindo-os novamente.” “Isto é o que devemos fazer: não dormir bem quando as pessoas so- frem em qualquer lugar do mundo, não dormir bem quando alguém é perseguido, não dormir bem quan- do as pessoas estão com fome aqui ou ali, não dormir bem quando há pessoas doentes e ninguém está lá para ajudá-los, não dormir bem, quando alguém em algum lugar precisa de você.” “A violência é também a lin- guagem da intolerância, que gera o ódio. O ódio é irracional, im- pulsivo, implacável; suas forças sinistras impulsionam o que há de destruidor no homem. Seu ritmo é rápido, seu objetivo ameaça- dor, seu movimento inexorável.”. Prossegue Wiesel, “Existe alguma coisa de positivo, de transcenden- te, de nobre, no ódio? O ódio é capaz de produzir outra coisa que não o ódio? Outras perguntas se impõem: deve-se demonstrar tole- rância frente à intolerância? Deve- -se empregar a força bruta contra os fascistas? É preciso odiar o ódio para destruí-lo?” O ódio é um flagelo de origens obscuras e insondáveis; “obra de humanos, nem Deus pode detê-lo. Nenhum povo pode se considerar imune a seu veneno, e nenhuma comunidade, a salvo de seus ataques (...) Odiar é atear o fogo da guerra em que as crianças se tornam órfãs"
  • 13. 13Cadernos Conib Além de trabalhar incansavel- mente na defesa do povo judeu, Elie Wiesel também ergueu a voz para denunciar massacres de di- versos povos de todo o mundo, atento ao reino da injustiça. Ele escreveu mais de 50 obras de ficção e não ficção, tendo como destaque seu livro de memórias, “All rivers run to the sea”, publica- do por Alfred A. Knopf, em sucessi- vas edições a partir de 1995. Conheci-o pessoalmente em São Paulo, em 2001, numa coleti- va de imprensa. Sua presença en- tre nós foi mais uma etapa de sua missão de atuar como um crítico, de acordo com o dizer de Montei- ro Lobato, “conscientizando o in- consciente”. Voltei a encontrá-lo, em Nova York, em 2014, durante um evento social. Entre os alegres convidados encontrei-o, discreto, sentado ao lado da esposa Marion Ester Rose. Falei-lhe em iídiche, seus olhos brilharam, animou-se, trocamos algumas palavras. Foi bom e inesquecível. O Nobel da Paz em seu escritório APPhoto/BebetoMatthews
  • 15. 15Cadernos Conib Gisela WajkopPatrícia Campos Mello Um ano letal para os refugiados Patrícia Campos Mello Repórter especial da Folha de S. Paulo, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional m um único dia, 29 de agosto de 2016, cerca de 6.500 refugiados foram resgatados pela guarda costeira italiana no mar Mediterrâneo. Eram so- malis e eritreus amontoados em frágeis botes de borracha. Mais de 160 mil refugiados e migrantes econômicos já encararam essa rota perigosa neste ano. Eles pagam entre US$ 1.000 e US$ 2.000 aos traficantes para sair da Líbia e chegar ao sonho europeu via Itália. Muitos se afo- gam bem antes de atingir seu destino. A União Europeia achou que tinha resolvido o proble- ma dos refugiados que inundam suas fronteiras. Em mar- ço, fechou o acordo de «um entra, um sai» com o autocra- ta turco Recep Tayyip Erdogan: para cada sírio devolvido pela Grécia à Turquia, a UE se comprometia a receber um sírio que estivesse esperando na Turquia. Um ano letal para os refugiados
  • 16. 16 Cadernos Conib Em troca, a Europa fechou os olhos para as arbitrariedades de Erdogan e prometeu seis bilhões de euros para o governo turco. Depois do acordo, o fluxo de re- fugiados da Turquia para a Grécia praticamente secou. A média de 2.248 pessoas chegando por dia à Grécia em janeiro caiu para 60 em julho, segundo dados da Organiza- ção Internacional para Migrações (IOM, na sigla em inglês). Nesta rota, a maioria dos refugiados são sírios, iraquianos e afegãos. Mas o pacto criou outros pro- blemas. Os refugiados agora se acumulam na fronteira da Síria com a Turquia, país que já tem mais de 2 milhões de sírios, a maioria vi- vendo em campos insalubres, sem acesso a assistência médica ou ao mercado de trabalho. Outros mi- grantes estão encalhados na Gré- cia, porque não conseguem pros- seguir rumo ao norte da Europa e não têm dinheiro para voltar para a Turquia. Desde o acordo com a UE, o número de refugiados api- nhados em campos na Grécia su- biu 37%, chegando a 58. 635. Na outra rota, da Líbia para a Itália, a situação é ainda pior. A mé- dia de 176 migrantes chegando por dia em janeiro subiu para 782 em julho,umaumentodemaisde400%. Para a Itália, vão principalmente refugiados da Nigéria, que sofrem com a pobreza e o Boko Haram, milícia extremista que declarou le- aldade ao Estado Islâmico e se no- tabilizou ao sequestrar meninas e transformá-las em mulheres-bom- ba. Chegam também migrantes do Níger,Sudão,Gana,Guiné,Senegal, Costa do Marfim, Somália e Mali. O ano de 2016 se encaminha para ser o mais letal para os refu- giados que querem chegar à Euro- pa – neste ano, já morreram mais de 3.000 (85% vindos da Líbia). No ano passado, no mesmo perío- do, 2.657 haviam morrido. A Líbia se tornou o principal centro de tráfico de refugiados no mundo. E a rota mais letal para os migrantes que querem chegar à Europa. Após a derrubada do ditador Muammar Gaddafi, em 2011, o país viveu uma breve paz e mer- gulhou no caos. Hoje, tem três go- vernos, guerra civil, fronteiras sem fiscalização e impunidade para os traficantes de pessoas. Para completar, a Líbia está cercada por nações da África sub- saariana com massas de jovens su- bempregados, ávidos pela oportu- nidade de emigrar para a Europa. Segundo a IOM, há 275 mil mi- grantes na Líbia esperando para embarcar rumo à Europa. Eles juntam dinheiro para en- viar às suas famílias ou pagar a um atravessador e pegar o barco para a Itália. Estive na Líbia em julho de 2016 fazendo reportagens sobre os refugiados. Tudo isso mostra quão inútil é a tentativa dos países ocidentais de resolver a tragédia da migração em massa por meio de medidas de segurança e vigilância, em vez de abordar os problemas no país de origem
  • 17. 17Cadernos Conib É muito fácil encontrá-los: são dezenas de jovens que se aglome- ram nas rotatórias das cidades lí- bias, esperando que os contratem para um dia de trabalho. Cada um leva seu instrumento para identifi- car o serviço que oferece – demo- lidores, com martelos; pintores, com rolos. Ganham entre US$ 5 e US$ 10 por dia. Vivem em cortiços, amon- toados em até 10 pessoas no mes- mo quarto. E estes são os sortudos. Muitos migrantes acabam presos em um dos 30 campos de detenção da Líbia. No centro de detenção Abu Sle- em, havia dois banheiros para cem pessoas. O de Al Karareem, que eu visitei, estava sem receber pro- dutos de limpeza havia um mês. “Às vezes o cheiro é insuportável”, dizia um funcionário. Detentos em Karareem me con- taram que falta comida e que são espancados frequentemente. Mesmo assim, a situação ainda é melhor do que em seus países de origem, garantem os refugiados. Tudo isso mostra quão inútil é a tentativa dos países ocidentais de resolver a tragédia da migração em massa por meio de medidas de segurança e vigilância, em vez de abordar os problemas no país de origem dos refugiados. Não adianta barrar a entrada dos imigrantes ou devolvê-los para a Turquia ou Líbia se não forem resolvidos os conflitos e a pobreza na Síria, Nigéria, Sudão, Iraque e Afeganistão. Nota Uma versão condensada deste artigo foi publicada na Folha de S. Paulo Campo de refugiados no Sudão AlbertGonzálezFarran/UN
  • 18. Menino curdo em campo de refugiados na Turquia
  • 19. 19Cadernos Conib Gisela WajkopCelso Lafer Refugiados, os indesejáveis Refugiados, os indesejáveis CELSO LAFER Advogado, jurista, professor, membro da Academia Brasileira de Letras e ex- ministro das Relações Exteriores. século 20 foi caracterizado como uma era de extremos pelas rupturas, tanto criativas quan- to destrutivas, na vida das pessoas num mun- do que foi crescentemente se interconectando. Esses ex- tremos, para o bem e para o mal, se prolongam no século 21. No plano das relações internacionais, a permanência da violência, que a inovação tecnológica amplia e irradia, é um dos dados mais constantes da dinâmica dos extremos. Essa violência expressa as dificuldades da diplomacia em encontrar interesses comuns e compartilháveis. Revela como o sistema internacional não tem sido capaz de bem lidar com o mundo caleidoscópico que resultou dos desdo- bramentos do término da Guerra Fria. Neste mundo, a globalização das emoções, dos ressen- timentos e das paixões se conjuga e frequentemente se
  • 20. 20 Cadernos Conib sobrepõe à razoabilidade dos inte- resses dos povos e dos Estados. É o caso do resultado do plebis- cito da Grã-Bretanha, em prol da saída da União Europeia. Essa de- cisão deixa de lado a convergência da reciprocidade de interesses. Ex- plicita a corrosão dos valores que impulsionaram uma das poucas utopias bem-sucedidas da segunda metade do século 20: a lógica da construção, juridicamente acorda- da, e não imposta, de uma Europa próspera e em paz. A ressonância da candidatura presidencial de Donald Trump nos EUA insere-se nessa moldura, na qual a mobiliza- ção interna das emoções deixa em segundo plano a articulação dos interesses americanos no mundo. A vigência das emoções se vê intensificada também porque as memórias dos povos e dos seus di- rigentes nem sempre são compar- tilháveis. Daí conflitos de valores e perspectivas que dificultam o papel da convergência universali- zadora de receios e esperanças. A narrativa da memória da Europa, por exemplo, é muito distinta da do mundo muçulmano e árabe. O desagregador unilateralismo fun- damentalista do Estado Islâmico e a intensificação da ação do terro- rismo transfronteiras almejam a propagação do medo, que não se amolda aos critérios da razoabili- dade diplomática da solução pací- fica dos conflitos. Pode-se dizer que o sistema in- ternacional contemporâneo vive a instabilidade desordenada pro- veniente da interação de forças centrípetas e centrífugas e está permeado pelos desdobramentos, que têm impacto na dinâmica glo- bal da alteração das relações de poder. Na Ásia, as que resultam da primazia da China e da emergên- cia da Índia. No Oriente Médio, as provenientes de um novo e mais significativo papel que passaram a desempenhar na região o Irã e a Turquia. Nada disso põe em questão com tanta profundidade o valor e o papel de uma comunidade inter- nacional, tal como preconizada no preâmbulodaCartadaONU,quan- to o problema dos refugiados. Com efeito, as nações não estão unidas para efetivamente conterem por uma ação conjunta a emergência em larga escala de uma crescente população de excluídos do mundo. Estão se repetindo em novos termos no século 21 componentes dos extremos do século 20 que ge- raram, com o flagelo da guerra e os fanatismos das emoções do po- der cego, tantas pessoas sem lugar no mundo. Na discussão dos extremos no século 21 cabe um paralelismo com os do século 20. Lembro, assim, a análise de Hannah Arendt a respei- to daqueles que na Europa pós-Pri- meira Guerra Mundial se viram, por obra dos totalitarismos, expul- sos da trindade Estado-povo-ter- ritório, tornando-se indesejáveis não documentados em quase to- dos os lugares e tidos como descar- táveis – ponto de partida dos cam- pos de refugiados, facilitadores dos campos de concentração. Foi a reação diplomática a es- sas catástrofes que levou à “ideia a realizar”, que está na origem da ONU, de institucionalizar uma
  • 21. 21Cadernos Conib comunidade internacional atenta aos direitos fundamentais e à dig- nidade do ser humano. Partiu-se conceitualmente do pressuposto kantiano de um direito à hospita- lidade universal, lastreado na hi- pótese de que a violação do direito num ponto da Terra seria efetiva- mente sentida em todos os demais. É esta “ideia a realizar” de uma comunidade internacional tute- ladora do direito à hospitalidade universal que está hoje em questão de maneira dramática. Na perspectiva do efeito des- trutivo atual dos extremos, cabe sublinhar a trágica precariedade que assola a vida de pessoas nas regiões do que pode ser qualifica- do de o arco da crise. No Oriente Médio e em partes da África há Estados falidos (como o Iraque e a Líbia), Estados em estado pré-fa- limentar, conflitos e guerras civis que se prolongam com interven- ções extrarregionais, como a que desagrega a Síria, a precariedade e artificialidade de fronteiras in- terestatais, que instigam conflitos étnicos e religiosos. Tudo isso, em conjunto, vem catalisando a exis- tência dessa enorme população de excluídos do mundo comum, refugiados que fogem do arco da crise, sem encontrar destino e acolhida. O número de pessoas que bus- cam asilo, estão internamente deslocadas nos seus países ou são refugiadas por obra de guerras e perseguições se elevou de 59.6 mi- lhões em 2014 para 65.3 milhões de pessoas no final de 2015. Isso significa que uma em cada 113 pessoas da população mundial está fora do mundo comum e não tem acesso ao direito à hospitali- dade universal. Cerca de 51% de refugiados do mundo são crianças, muitas separadas dos pais e viajan- do sozinhas à procura de destino. A situação da Síria, a do Sudão do Sul, a do Iêmen, do Burundi, da República Centro-Africana são for- ças alimentadoras desse fluxo de pessoas de países de baixa renda que enfrentam essa dura realida- de. O limbo em que se encontram os excluídos do mundo comum, mais tenebroso que os círculos do inferno de Dante, é, na perspec- tiva de uma razão abrangente da humanidade, a mais grave tensão difusa que permeia a vida interna- cional. Nota Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S.Paulo
  • 22. São Domingos e os Albigenses - Pedro Berruguete - Museu do Prado - Madri
  • 23. 23Cadernos Conib Gisela WajkopRenato Janine Ribeiro O que significa tolerância? O que significa tolerância? Renato Janine Ribeiro Professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Foi ministro da Educação do Brasil, entre abril e setembro de 2015. tolerância se torna um grande tema no pensa- mento ocidental durante o século 17. Isso depois de mais cem anos de guerras de religião. Com a Reforma Protestante, o Ocidente rachou entre católicos e protestantes. Quando vemos a intolerância de católicos com protestantes e vice-versa nas produções de cinema, como por exemplo, em “Elizabeth”, dos anos 1990, o que eles fazem é colocar todo o conflito como se fosse apenas uma questão de ignorância, de preconceito, de uma coi- sa errada, que pessoas mais abertas, mais normais - em suma: nós-, não fariam. Tudo passa como um grande erro, uma grande falha. Mas na verdade o conflito que havia nas guerras de reli- gião tinha razões muito mais básicas. Os protestantes, por exemplo, negavam que o padre católico fosse capaz, du-
  • 24. 24 Cadernos Conib nem protestantes nem judeus, que tinham muitas vezes capacitações econômicas que lhes fizeram fal- ta. Já em outros lugares, como Inglaterra e Holanda, a tolerância surgiu, em boa parte, justamente para manter essa mão de obra qua- lificada, inteligente, que permite o desenvolvimento econômico. O que então significa tolerân- cia? Nada mais, nada menos do que isso: tolerar. Não é admirar nem gostar, não é concordar nem prezar. É como quando digo que tolero determinada conduta. Não gosto, sou contra, mas tolero por- que acho que não vale a pena ficar brigando por causa disso e arru- mar problemas grandes por uma questão pequena. O equivalente disso hoje seria liberar o consumo da maconha, porque fica muito mais complicado ir atrás do usu- ário e mesmo do traficante: você tem que gastar muita força poli- cial, muito dinheiro para investi- gar, muito dinheiro para prender, para depois colocá-los na escola do crime, que é a cadeia. Chega uma hora em que você diz: “Não con- cordo, não acho que seja uma coi- sa boa, mas perseguir é mais caro, pior, mais oneroso”. Mais ou menos foi isso que fez, inicialmente na Inglaterra e na Holanda, a tolerância entrar na ordem do dia. Não era uma admi- ração. Apenas uma admissão, nem sempre dando todos os direitos à pessoa tolerada, que não poderia assumir certos cargos, etc... Isso é o que hoje chamamos de tolerância em um sentido fraco. Nos últimos tempos, surgiu a ideia de que existiria uma tolerância em rante a missa, de consagrar o pão e o vinho, transformando-os em cor- po e sangue de Jesus Cristo. Quan- do o fiel recebe a hóstia ou quando o padre ingere o vinho, o fiel está ingerindo o corpo; e o padre, o cor- po e o sangue de Jesus. Esse é um dogma da Igreja Católica. Para os protestantes, isso sig- nificava algo inaceitável, porque o padre se comportava como um mágico e não como um homem de fé. Cada missa católica, para os protestantes, era um ato de magia, uma coisa que negava completa- mente os princípios do cristianis- mo. E para os católicos, os protes- tantes, como não obedeciam ao papa, como não davam à missa a mesma importância que os ca- tólicos lhe davam, eram hereges, pessoas que tinham fugido do bom caminho. Daí o fato de as guerras de reli- gião terem sido tão cruéis: porque havia concepções diferentes e re- sultados diferentes. Se um rei se tornava protestante, ele eliminava o poder do papa sobre o seu terri- tório. Foi o que aconteceu na Ingla- terra, com Henrique VIII, nos vários principados alemães que se torna- ram luteranos. Então, o conflito era muito mais forte do que apenas di- vergências de ideias. A questão da tolerância surge na segunda meta- de do século 17. Por quê? Porque um lado e outro perce- beram que era muito difícil manter esse conflito. O custo dele às vezes era muito alto. Há lugares que con- tinuaram intolerantes: Portugal e Espanha, por exemplo. E paga- ram um preço alto por isso, porque não tiveram mais em seu território
  • 25. 25Cadernos Conib sentido forte, que usa o mesmo termo, porque é um termo consa- grado, mas muda completamente o sentido dele, pois considera que se pode aprender com a diferença, com o outro. Em vez de simples- mente deixar que uma pessoa es- teja lá, porque é pior e mais one- roso persegui-la, percebe-se que será interessante o contato com o outro. Essa é uma grande mudança que houve no mundo. Do lado da Igreja Católica, ela se deve muito ao papa João 23, que convocou o Concílio Vaticano II e deu vários passos importantes, como por exemplo abolir as maledicências, que até durante a missa eram ditas sobre os judeus, dialogar intensa- mente com os líderes religiosos protestantes, ortodoxos, judeus e abrir espaço para diálogo constan- te com os muçulmanos. Tudo isso mudou inteiramente o perfil que hoje temos da tolerân- cia. Há uma ideia cada vez mais forte: não importa quais sejam suas liturgias, seus ritos, até mes- mo seus dogmas e artigos de fé. Importa é que você creia em Deus ou em deuses até, se quiser, como no caso de alguns politeísmos brandos como os cultos afro-brasi- leiros. Importa é que você creia em alguma divindade e que você pra- tique o bem. Então, passa a haver a ideia que as diferentes religiões são quase nomes diferentes para designar a ideia de uma transcendência, de uma dimensão espiritual, que esta- rá cada vez mais ligada ao bem, o que também é uma novidade. Dis- solve-se muito da importância ri- tualística extrema que havia quan- do, por exemplo, Deus fulminava um homem, simplesmente porque ele, sem querer, tinha esbarrado na Arca da Aliança. Passa a haver a ideia de que a fé, a religião são algo mais profun- do, o que acaba permitindo um di- álogo, em pé de igualdade, entre fés muito diferentes. Esse é um dos pontos muito bons dos tempos atu- ais e que vai bastante além da tole- rância do século 17, porque agora a ideia é de que realmente se possa aprender com o outro. Tribunal da Inquisição - Francisco Goya - Real Academia de Belas Artes - Madri
  • 27. 27Cadernos Conib Gisela WajkopNilton Bonder Jerusalém e a tolerância Nilton Bonder Rabino e escritor, líder espiritual da Congregação Judaica do Brasil. Dirige o Centro de Cultura Midrash no Rio de Janeiro. om certeza não existe ícone maior da dificuldade de convivência humana do que a cidade de Jeru- salém. Fundada há três mil anos pelo rei Davi, possivelmente já então sobre um sítio sagrado arcaico da região, Jerusalém era um projeto. Seu nome o revelava: Ierushalem, a cidade da plenitude ou a cidade da paz. E o projeto deu certo. Não exatamente por ter trazido paz em sua história, muito pelo contrário, mas por ter sintetizado a dificuldade humana de obtê-la. Jerusalém se transfor- mou em símbolo de triunfo, e se há algo que a paz não é... é ser fruto do triunfo. Em junho de 1967, poucos dias após a Guerra dos Seis Dias e a conquista da cidade velha de Jerusalém pelo exército israelense, a figura política e a liderança mais proeminente do novo Estado de Israel, David Ben Gurion, BS’D Jerusalém e a tolerância
  • 28. 28 Cadernos Conib recebia uma carta. Era de um re- metente relativamente desconhe- cido, um rabino de nome Zalman Schachter. Em sua carta, o rabino alertava para a grandeza histórica daquele momento. Após 18 sécu- los sem soberania sobre seu maior monumento, o Monte do Templo, plantado no coração da cidade ve- lha, os judeus não só tinham aces- so, mas também controle do local. Enquanto os judeus se emocio- navam com as fotos de soldados rezando junto ao Muro das La- mentações, enquanto a experiên- cia do maior exílio e dispersão da história humana parecia chegar ao fim com conotações messiânicas mesmo para a imprensa mundial, aquela carta trazia um conteúdo chocante. O rabino Zalman exor- tava a Ben Gurion que declarasse imediatamente Jerusalém como um monumento internacional e que permitisse à cidade, justa- mente em sua reconquista pelos judeus, a realização de seu proje- to histórico – não o triunfo, mas a paz. O argumento do rabino era no mínimo interessante. Ele dizia que o triunfo representava a mais efê- mera das seguranças e usava da própria história dos judeus para mostrar que o triunfo dos assírios, gregos, romanos, bizantinos, cru- zados e otomanos era uma metáfo- ra recorrente de que o vencedor de hoje é o derrotado de amanhã. Não pela força, mas pelo espírito – para colocar nas palavras milenares dos profetas de Israel. Quem vence produz um vencido e se coloca na cadeia sucessiva e interminável da violência. Talvez no furor e euforia de um povo que duas décadas antes estava sendo aniquilado em câma- ras de gás, ficasse difícil não dar a essa carta o fim que provavelmen- te teve – o de ser ignorada. Mas ela continha algo merecedor de refle- xão, particularmente hoje quando israelenses e palestinos são irre- dutíveis em postular um acordo de paz que lhes garanta, para ambos, ter Jerusalém como capital metá- fora do triunfo. Quem visitasse Jerusalém antes da “intifada” encontraria a cidade velha sob evidentes “controles” que se organizaram na prática. Os muçulmanos controlavam a região das mesquitas, os judeus, a região do Muro, os católicos, as igrejas e seus monumentos santos. Algo que, se não era perfeito, não esta- va na prática longe dos corações. Essa prática havia sido um interes- sante resultado de convívio e, ob- viamente, de um relativo estado de liberdade e democracia, que bem ou mal, o Estado de Israel trouxe como novidade àquele canto do mundo. A solução com certeza passa por estes três ingredientes: o convívio, o estado de liberdade e o fim do triunfalismo. Algo muito diferente do que as lideranças de ambos os lados estão fazendo. Jerusalém “minha ou sua”, vo- tação pela internet para ver quem “ganha” e atitudes afins não apro- ximam ninguém de uma possível capital-metáfora da paz. Há uma profunda irresponsabilidade em colocar quem quer que seja na po- sição de “perder” Jerusalém. Há profundos trabalhos de amadurecimento para o Ocidente
  • 29. 29Cadernos Conib e o Oriente Médio a serem realiza- dos em torno de Jerusalém. Para os judeus há uma difícil autoanáli- se, que não é apenas política, mas teológica. Compreender o monoteísmo não apenas como a religião de um D’us único, mas de apenas um povo, é um ato de triunfalismo no século 21. Para muçulmanos e cris- tãos o trabalho não é menos pro- fundo e complexo. Passa pela mes- ma questão, acrescida da reflexão de querer ser a legítima Israel (ou Ismael para os muçulmanos) ou a Nova-Israel (na visão cristã). Foi este desejo de triunfo teológico que marcou as guerras entre cris- tãos e muçulmanos nos últimos dois milênios pela conquista de Jerusalém. Não apenas um triunfo político, mas teológico. E quando o triunfo é teológico e simbólico, en- tão não se trata de saber com quem fica Jerusalém, mas quem fica com D’us. E aí as negociações passam a ser de ordem psicológica, tendo como questão básica: de qual dos filhos Você gosta mais? Não haverá paz enquanto am- bos, ou melhor, todos os lados in- teressados não forem derrotados. Uma derrota na expectativa de triunfo de todos é a única esperan- ça da paz. Sempre foi. A praga do convencimento Entramos neste século com o papa tocando numa antiga ferida do- mundo ocidental. Pediu perdão pelos crimes cometidos em “nome de D’us”. Nunca ficou tão politica- mente claro o significado do ter- ceiro mandamento“não tomarás o nome de teu D’us em vão”. Em par- ticular foram lembrados os crimes cometidos a serviço da “verdade”: a intolerância e violência contra dissidentes, guerras religiosas; violência e abusos dos cruzados e os métodos cruéis utilizados pela Inquisição. Uma das lutas funda- mentais dos “direitos humanos” é contra o desejo de “convencer” e “converter”. A ideia que norteia nossa civilização ocidental é que para um lado ter razão o outro tem que, necessariamente, estar erra- do. Conta-se que um rabino foi cer- ta vez consultado sobre um litígio. Uma das partes envolvidas apre- sentou seu caso, e o rabino aquies- ceu: “Você tem razão”. A outra parte também apresentou sua ar- gumentação, e o rabino reconhe- ceu: “Você também tem razão”. Seu assistente que o acompanha- va, atônito, questionou o mestre: “isso é um litígio, como pode ser que este tenha razão e aquele te- nha razão?”. O rabino concordou: “Você também tem razão”. À primeira vista, o rabino nos parece uma figura patética que concorda com qualquer argumen- tação. Num segundo olhar perce- Jerusalém "minha ou sua", votos pela internet para ver quem “ganha” e atitudes afins não aproximam ninguém de uma possível capital-metáfora da paz. Há uma profunda irresponsabilidade em colocar quem quer que seja na posição de “perder” Jerusalém
  • 30. 30 Cadernos Conib bemos seu ensinamento acerca de uma “razão” que não é indivisível ou única. Para nossa dificuldade, a realidade é sempre composta de vários “certos”. A democratização do “certo” talvez seja o mais im- portante ato de cidadania e de es- piritualidade de nossos tempos. Mais importante talvez do que a memória e o julgamento do pas- sado seja a capacidade de identi- ficar em nosso tempo as atitudes que ainda representam as forças do convencimento. Elas estão por todas as partes travestidas de into- lerância. Os que “precisam convencer” são aqueles que acreditam que a vida é uma caminhada que deve chegar a algum lugar onde suas vivências e seus valores serão com- parados às vivências e aos valores dos outros. Os que “não precisam convencer” não percebem a vida como um “megavestibular”. Não há primeiros colocados, nem sequer aprovados e repro- vados por parâmetros externos e excludentes. Não há salvos e per- didos. É possível que todos vivam suas vidas com reverência, integri- dade e intensidade. Há neste mundo os que “vivem e deixam viver” e há no mundo os que precisam afirmar suas certezas provando e apontando o “outro” como errado. Um dia concordaremos que só existe um parâmetro externo para definir o “certo” e o “errado”: cer- to é qualquer coisa que não queira convencer ou impor a vontade de um sobre o outro; “errado” é a pos- tura do convencimento. Tanto o convencido quanto o que convence são perdedores. O julgamento da vida se baseia em duas listas de acusação: as ocasi- ões em que fomos convencidos e as ocasiões em que convencemos. Nossa identidade e nosso senso de presença são experimentados quando não estamos nem na con- dição de convencidos nem na de convencer. A própria alegria de- pende do quanto somos convenci- dos pelos outros e do quanto con- vencemos os outros. Quanto mais somos convencidos e convence- mos, mais tristes e insatisfeitos nos tornamos; maior nosso senso de inadequação; maiores nossa inse- gurança e nosso medo. O convencimento nos rouba a vitalidade fundamental e nos faz dependentes do outro para definir a nós mesmos. O convencimento é uma inveja dissimulada. Hos- pedeiro do mal, ele se instala em todas as áreas estagnadas e alie- nadas de nossa vida e lá deposita suas larvas. Podemos erradicar o “convencimento” do mundo com uma ação “sanitária” cuidadosa e organizada. Podemos nos educar a ponto de termos “tolerância zero” para com a intolerância. O reco- nhecimento dos erros do passado é um importante passo, mas apenas aumenta a responsabilidade. Isso porque a história julgará a todos não por sua consciência do erro, mas por sua capacidade de evitar repeti-lo.
  • 31. 31Cadernos Conib Gisela WajkopJaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky O fanatismo na história O fanatismo na história Jaime Pinsky historiador e editor. Doutor e livre-docente pela USP, professor titular aposentado da Unicamp, diretor editorial da Editora Contexto. Carla Bassanezi Pinsky, historiadora, mestre pela USP e doutora pela Unicamp. anático é um termo cunhado no século 18 para denominar pessoas que seriam partidárias ex- tremistas, exaltadas e acríticas de uma causa. O grande perigo do fanático consiste na certeza absoluta e incontestável que ele tem a respeito de suas verdades. De- tentor de uma verdade supostamente revelada especial- mente para ele pelo seu deus, o fanático não tem como aceitar discussões ou questionamentos racionais com relação àquilo que apresenta como sendo seu conheci- mento: a origem divina de suas certezas não permite que argumentos apresentados por simples mortais se contra- ponham a elas. Pode-se argumentar que as palavras de Hitler ou as de Mao mobilizaram fanáticos tão convictos como os religio- sos e não tinham origem divina. Ora, de certa forma, eles eram cultuados como deuses, e suas palavras não podiam ser objeto de contestação, do mesmo modo que ocor- re com qualquer conhecimento de origem dogmática. É, portanto, condição do fanático a irracionalidade. É possível estudar as manifestações de fanatismo na história, inclusive em períodos anteriores à Era Moderna, sem incorrer em anacronismos, se procuramos compre- ender o fenômeno, lançando mão de uma cuidadosa in-
  • 32. 32 Cadernos Conib vestigação histórica. Como se sabe, o olhar que despejamos sobre o acontecido é, necessariamente, o de alguém que vive numa determi- nada época, em um determinado lugar, e é fruto das contingências decorrentes dessas determinações. Nesse sentido, podemos olhar a história e as sociedades a partir da perspectiva do século 21, ao iden- tificar, em vários contextos, sinais de fanatismo como uma forma de atentado ao que reconhecemos hoje como direitos humanos, uma conquista incorporada ao patrimô- nio cultural da humanidade, um avanço que, embora localizado na sua origem, adquiriu caráter uni- versal, ou seja, o reconhecimento do direito à vida. Com essa postura, podemos apontar manifestações de fanatis- mo baseadas em quatro grandes tipos de justificativas ideológicas adotadas pelos fanáticos: as reli- giosas, as racistas, as políticas e as “esportivas”. A religião serviu e serve como explicação/pretexto para perse- guições, torturas e assassinatos em diversos momentos da história, dos cruzados medievais aos funda- mentalistas do século 21. O racismo (contra negros, se- mitas, orientais, etnias minoritá- rias) provocou e provoca muitas humilhações e derramamento de sangue, tendo chegado ao ponto máximo, em pleno século 20, ao confinar pessoas em campos de ex- termínio, onde seriam escraviza- das, torturadas e mortas, por sua suposta inferioridade racial. As manifestações mais conhecidas de fanatismo racista são as atividades da Ku Klux Klan, do nazismo e do famigerado e atuante neonazismo. A política foi e é desculpa para inúmeras violências contra opo- sitores, manifestações agressivas de chauvinismo, opressão e ter- rorismo – a partir de “verdades definitivas” tão diversas como a comunista, a imperial, a libertária, a do “mundo livre”, a nacionalista. O fanatismo político é facilmente identificável nos expurgos stalinis- tas, na ação kamikase, no macar- tismo, na Revolução Cultural na China e no terror com finalidades políticas. Torcer no futebol surge como o mais novo fundamento para ati- tudes antissociais e violentas, não só contra simpatizantes dos times “inimigos” mas também contra determinados grupos étnicos, mu- lheres, homossexuais e migrantes. Os hooligans e os membros das torcidas organizadas no Brasil são evidentemente sujeitos fanáticos. O machismo (misoginia, ho- mofobia) – motivação para violên- cias específicas contra mulheres e homossexuais – aparece de várias formas que assumem as justificati- vas acima mencionadas. Num tempo de perplexidade, em que olhamos para as conquistas da humanidade, por um lado, mas vemos, por outro, os homens exi- bindo sua face mais cruel, é mui- to importante analisar as diversas faces que o fanatismo adquiriu ao longo do tempo e em contextos distintos. Numa época de homens- -bomba, atentados terroristas, ma- nifestações racistas, ações extre- mistas, pensar o fanatismo é atual, relevante e urgente.
  • 33. 33Cadernos Conib Gisela WajkopPeter Demant O islã e nós: fundamentalismo ou aproximação? O islã e nós: fundamentalismo ou aproximação? Peter Demant Historiador e professor de Relações Internacionais da USP, especialista em questões do Oriente Médio, o mundo muçulmano e as relações islã-ocidente. ouco após o 11 de setembro, o famoso especialis- ta em Oriente Médio Bernard Lewis observou que a maioria dos muçulmanos não é fundamentalis- ta, e que a maioria dos fundamentalistas não é terroris- ta, mas... a maioria dos terroristas é composta por fun- damentalistas muçulmanos. Essas palavras desde então têm se verificado amplamente. Paris, Bruxelas, Orlando, Nice, Ansbach… o terrorismo islamista parece estar em cada lugar. A ameaça ao Ocidente é universal? Por quê? O que podemos fazer? A primeira tarefa é entender. O terror jihadista é an- tiocidental mas não menos anti-islâmico. De Istambul e Bagdá até Karachi, Kabul ou nas florestas de Nigéria, a grande maioria das vítimas do terror jihadista são outros muçulmanos. Nem é o terrorismo um monopólio mu- çulmano, como uma breve analise da história do cristia- nismo mostraria. Na Noruega um adepto da supremacia
  • 34. 34 Cadernos Conib ocidental massacrou jovens sus- peitos de simpatizar com o multi- culturalismo. Em Myanmar mon- ges budistas aterrorizam a minoria muçulmana. Nenhuma religião ou ideologia é imune à tentação fundamentalista, pois o funda- mentalismo é uma reação contra a modernidade – particularmente eficaz por mobilizar seus próprios meios contra os valores da moder- nidade –– e as insatisfações com a vida moderna são tão universais quanto a própria modernização. Lembremos rapidamente. Des- de o iluminismo e as revoluções francesa e industrial, o projeto da modernidade inclui três facetas. A democracia e os direitos humanos substituem os ditames do absolu- tismo real com uma pletora de es- colhas individuais; a tradição e os dogmasdareligiãoreveladacedem à ciência baseada na razão e obser- vação, o que por sua vez impele a tecnologia e a indústria; as socie- dades (ocidentais em primeiro lu- gar) que conseguem essa transição do velho para o novo se fortalecem tanto que logo se impõem ao mun- do inteiro: a colonização deixa um rastro de globalização não apenas militar e econômica mas também demográfica e cultural. Exemplo: o mundo muçulmano não só teve que se curvar a nações “infiéis” com armas e ideias mais poderosas e eficazes, mas hoje também migra e entra fisicamente no Ocidente. Uma parte dos imigrantes muçul- manos se torna ocidental. Porém, se o resultado é rela- tivamente benigno: um mundo dominado por Estados industria- lizados mas pautado por um ideal da democracia liberal universal, é também verdade que o processo para alcançar tal progresso veio a altíssimo preço. Da superexplora- ção dos trabalhadores às guerras mundiais e genocídios, a transição para a modernidade tem sido ex- tremamente dolorosa. E o resulta- do ainda está longe de paradisíaco. A liberdade individual se compra com anomia, isolamento e perda de certezas quanto ao sentido de nossa vida. A ciência proporciona tanto prosperidade quanto guer- ras mais destruidoras e formas de controle mais invasivas. Nosso confronto com o diferente pro- duz choque de civilizações. Nosso modo de viver destrói o planeta. Não surpreende que muitos sin- tam nostalgia do mundo pré-mo- derno perdido e buscam refúgio em tradições e fé que ali têm suas raízes. Quando o impulso de “vol- tar às raízes” da religião se une à rejeição da modernidade, mas com o uso de sua tecnologia (de telecomunicação a ADMs), fala-se de fundamentalismo. O termo ori- ginalmente descrevia protestantes norte-americanos conservadores e/ou evangélicos, mas agora tam- bém se aplica a fenômenos parale- los em outras religiões: judaísmo, hinduísmo, etc. No islã, o termo is- lamismo é o mais correto. Quando o fundamentalista (ou islamista) começa a privilegiar (o que é sem- pre uma escolha!) leituras de suas fontes sagradas que parecem justi- ficar ou até impor o uso da violên- cia, estamos a caminho da guerra, guerra civil, ou terrorismo. Até aqui nosso relato é genéri- co. As nações muçulmanas foram
  • 35. 35Cadernos Conib as vítimas da expansão de poder de outras nações que as antecede- ram ou ultrapassaram na rota para a modernidade: cristãs, europeias, ocidentais. Portanto, as reações islâmicas têm geralmente sido an- ticoloniais e antiocidentais. Mas, o mesmo valeria para os ameríndios, hindus e chineses. A explosão de raiva e violência no bojo do islã se- ria então apenas uma ilusão ótica? A segunda parte da máxima de Lewis avisa que não. A virulência do terror jihadista está em outra categoria.. Parece que temos um problema especial com o islã. A menos que saibamos decifrá-lo, o problema não desaparecerá. Parte da resposta é que o mundo muçulmano está geogra- ficamente mais próximo à cris- tandade. Contudo a causa mais determinante do excepcionalismo islâmico é provavelmente o fato de ele ter demais em comum com os judeus e cristãos, seus concorren- tes monoteístas que hoje compõem “o Ocidente”, para conseguir acei- tar facilmente a perda de sua hege- monia e glória de outrora. O islã inclui múltiplas tendên- cias – não todas radicais ou mesmo antimodernas – que propõem solu- ções para remediar uma situação desfavorável em relação ao Oci- dente, e na qual os muçulmanos se sentem presos. Dentro deste leque, o jihadismo é a corrente islamista mais extremista antimoderna e antiocidental, atacando o suposto inimigo com os meios que possui. Apesar da brutal disparidade de recursos, não acredita que a luta seja invencível. E, na verdade, po- deria mesmo não ser. As democra- cias ocidentais “ímpias” e “islamo- fóbicas” estão mergulhadas num profundo mal-estar ideológico e politico. Os jihadistas combinam a estratégia clássica de provocar o aumento da miséria (ou imise- ração, de Verelendung, termo da teoria marxista) como alavanca da conscientização das massas mu- çulmanas discriminadas e aliena- das, com a tática da guerra assimé- trica e da manipulação midiática. Usam a força da sociedade aberta, moderna e democrática, contra ela mesma. A reação dos governos e pú- blicos ocidentais é tão previsível quanto contraproducente. Quanto mais os países europeus ou os EUA reagem aos ataques terroristas com medidas “defensivas”, sejam elas militares como no Iraque ou na Síria, ou xenófobas em casa, mais os públicos muçulmanos as interpretarão como agressão con- tra o islã. O que torna mais plau- sível para eles a narrativa jihadista do “ataque dos inimigos de Deus”. O Estado Islâmico funciona como atrativo utópico, um Sião islamista. Grupelhos jihadistas prometem o que falta: respeito e autoestima, amizade, heroísmo e o sacrifício que outorga sentido aqui e salvação no além. São estes valores de significado, comunidade e transcendência que nossa sociedade democrática deve reconstruir e oferecer àqueles que nela moram.
  • 36. 36 Cadernos Conib Medidas antiterror violentas ob- viamente nem sempre podem ser evitadas mas – a menos que sejam tão maciças e prolongadas quan- to as ocupações alemã e japonesa pós-1945 – sempre arriscarão ser ineficazes. Além do mais, dificil- mente uma invasão militar acaba- rá com terroristas espalhados e/ou solitários. Por outro lado, se por medo de rótulos do “politicamente incorre- to” ou da islamofobia ou por outras vulnerabilidades, as sociedades democráticas não reagem, elas le- gitimam outra narrativa jihadista, a de que o Ocidente é um tigre de papel. Em ambos os cenários, o Oci- dente perde e os jihadistas ga- nham. O que fazer? As democracias li- berais, baluartes do moderno, de- veriam adotar contra os terroristas islamistas o mesmo princípio das artes marciais orientais que estes usam – com êxito - contra nós: usar a força do oponente contra ele mesmo. De fato, a tarefa em- bora dificílima, não é impossível. As democracias já superaram este desafio duas vezes contra adversá- rios totalitários, sempre aplicando o mesmo princípio. O fascismo se justificou ao olhar das populações que tentava mobilizar pela glori- ficação da força brutal da nação, rejeitando qualquer diversidade interna e concentrando o poder nas mãos de um líder. Foi derro- tado pela aplicação de uma contra força maior. A própria derrota mi- litar derrubou definitivamente a atração ideológica do militarismo da direita. Os regimes comunistas, por outro lado, se justificavam por sua suposta produtividade econô- mica maior, riqueza que (na teo- ria) se distribuía de maneira mais equitativa do que nos países capita- listas. Foram derrotados sem der- ramamento de sangue pelo exem- plo mais atraente das economias ocidentais, social-democráticas em particular, que combinavam maior produtividade com uma mais jus- ta distribuição dos recursos e das oportunidades. Em outras pala- vras, a ideologia comunista foi derrotada no plano de sua própria promessa da emancipação huma- na. Desde o fim da Guerra Fria, não recuperou sua antiga atração. Não poderíamos adequar o mesmo princípio contra o islamis- mo radical, hoje o maior desafio remanescente à modernidade? Os jovens muçulmanos urbanos, semiocidentalizados e muitas ve- zes educados nas metrópoles do Ocidente (incluindo ali grupos de convertidos) e no Oriente Médio, constituem as camadas mais “em risco” de radicalização islamista. O Estado Islâmico funciona como atrativo utópico, um Sião islamis- ta. Grupelhos jihadistas prome- tem o que lhes falta: respeito e autoestima, amizade, heroísmo e o sacrifício que outorga sentido aqui, e salvação no além. São es- tes valores de significado, comu- nidade e transcendência que nos- sa sociedade democrática deve reconstruir e oferecer àqueles que nela moram. O preço da seguran- ça é a integração do outro que mora entre nós – e num mundo globalizado o “entre nós” equivale ao mundo inteiro!
  • 37. 37Cadernos Conib Gisela WajkopFlavio Azm Rassekh Intolerância no regime dos aiatolás Intolerância no regime dos aiatolás Flavio Azm Rassekh Formado em Arquitetura, pela FAU-USP, e em Direção de Cinema e TV, pela UCLA. É representante da ONG United4Iran no Brasil. Desde 2011 é consultor para os projetos da Bill & Melinda Gates Foundation. uatro anos após passar meses na mais infame das prisões iranianas, o jornalista da revista ameri- cana Newsweek Maziar Bahari teve uma ideia. Na prisão, ele se deu conta da quantidade de ativistas de direitos humanos, jornalistas, advogados, cineastas e membros da religião Bahá’í, que eram encarcerados, so- frendo regularmente todo tipo de maus-tratos e tortura. O que lhe chamou mais a atenção foi o fato de a perse- guição religiosa contra os membros da Fé Bahá’í passar totalmente desapercebida da mídia. A partir dessa constatação, criou em 2014 a campanha “Education is not a Crime”, cujo foco é fazer a comuni- dade internacional conhecer as políticas discriminatórias adotadas pelas lideranças religiosas do Irã e tentar pres- sionar os aiatolás a respeitar os diretos fundamentais de educação, trabalho e liberdade religiosa dos membros da comunidade Bahá’í. A campanha criada por Maziar consiste em expor em grandes cidades obras de grafiteiros que fomentem a reflexão e sejam um testemunho da solidariedade da comunidade internacional para com as minorias do Irã.
  • 38. 38 Cadernos Conib As obras, espalhadas pelo mundo, retratam de forma sutil e, às vezes, poética um dos aspectos mais em- blemáticos da sistemática discri- minação sofrida por jovens bahá’ís no Irã, proibidos de ter acesso à educação superior por conta de sua crença. Os primeiros muros foram pin- tados em Nova York e, aos poucos, a campanha se espalhou para cida- des como Londres, Sidney, Cidade do Cabo, Johanesburgo, Nova Dé- lhi, Rio de Janeiro, Atlanta, Salva- dor e, agora também chega a São Paulo, na praça Roosevelt, locali- zada no centro da cidade. Artistas de fama internacio- nal, como Mark Rufallo, Andy Grammer, Justin Baldoni e Rainn Wilson, endossaram a campanha, ao lado de dois laureados com o Prêmio Nobel da Paz: o arcebispo Desmond Tutu e a iraniana Shirin Ebadi. A partir do momento em que os muros receberam os grafites, a comunidade internacional come- çou a se perguntar quem são os Bahá’ís e por que o governo do Irã se sente tão ameaçado por uma re- ligião que rechaça todas as formas de violência, prega o fim dos pre- conceitos, defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres, promove a harmonia entre ciência e religião e conclama a humanida- de a aceitar o conceito da unidade na diversidade como evolução na- tural da consciência humana. Apesar dos paradoxais acenos do presidente Rouhani ao Ociden- te, o governo iraniano continua não apenas negando os direitos dos Bahá’ís, como também execu- tando prisioneiros sem julgamento devido ou sem direito a recurso, enforcando jovens gays em praça pública e negando às cidadãs do país o acesso a diversos cursos uni- versitários. Os opositores estão na cadeia ou no exílio. Nenhuma voz dissonante pode ser levantada den- tro das fronteiras do país persa. Que ninguém tenha dúvida: o Irã é o país que mais executa pri- sioneiros (per capita) no mundo. É uma teocracia militar que pro- move eleições, mas só permite a participação de candidatos alinha- dos aos conservadores de Teerã. Não existe liberdade de expressão, liberdade política ou religiosa. Precisamos revisitar as tragé- dias do século 20 para combater nossa paralisia. Será que o Holo- causto não nos ensinou nada? E os genocídios do Camboja, Bósnia e Ruanda? A discriminação e o preconcei- to não precisam de uma razão con- creta e lógica: surgem da crença da superioridade de uma ideologia, religião, povo, ou nação sobre os demais, do fanatismo religioso, da cultura da violência e da igno- rância da verdadeira natureza do homem. Edmund Burke nos faz um lembrete que foi importante no passado e é novamente fundamen- tal nos dias de hoje: “Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem nada façam”. Tudo que os aiatolás do Irã es- peram de nós é que continuemos em silêncio, enquanto seu governo promove um genocídio silencioso contra uma parcela importante da sua população.
  • 39. 39Cadernos Conib Gisela WajkopBernardo Sorj Como viramos fanáticos? Bernardo Sorj Professor titular de Sociologia da UFRJ e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. ara entender o fanatismo devemos entender o fa- nático - atual ou potencial -, que habita em cada um de nós. Portanto, a pergunta que devemos fazer é: como cada um de nós pode virar fanático? Isto acontece quando transformamos o ódio numa narrativa. Todos temos momentos de ódio, mas eles passam. Quan- do, no lugar de tratar os sentimentos de ódio como algo passageiro, passamos a construir sobre eles uma explica- ção que justifica a desumanização do outro, estamos no caminho de transformar-nos em fanáticos. O fanatismo é uma construção narcisista, centrada sobre si mesma e dominada pelas emoções, que nos leva a abrir mão de nossa capacidade de reflexão, questiona- mento e dúvida, abandonando assim qualquer esforço de compreensão e empatia sobre a complexidade, circuns- Como viramos fanáticos?
  • 40. 40 Cadernos Conib conseguem catalisar e cristalizar ódios, sempre existentes na so- ciedade em forma difusa, num discurso político que desqualifica, destrói o respeito e desumaniza os grupos aos quais atribui caraterís- ticas negativas. Estas característi- cas que o fanático atribui ao odia- do são sempre inerentes, inscritas na natureza das pessoas e do gru- po, portanto imutáveis. Para ele, não existe lugar para o diálogo ou a expectativa de que o sujeito odiado possa mudar. Assim, este só merece o escárnio, e, no limi- te justifica-se, inclusive, que seja aniquilado. Como se proteger e educar contra o fanatismo? Em primeiro lugar tendo sempre em mente a teoria de psicologia social conheci- da como “erro de atribuição”. Ela afirma que explicamos os erros de conduta, nossos e de pessoas ou instituições com as quais nos iden- tificamos, como sendo produto de circunstâncias particulares, e por tanto excepcionais. Por sua vez, os erros cometidos por aqueles com os quais não simpatizamos seriam inerentes ao caráter deles. Em segundo lugar lembrando que todos nós temos o potencial de virar fanáticos, especialmen- te quando nosso ambiente social se torna propicio, ele nos permite xingar, ofender, culpar o outro em forma aparentemente legítima. Quem só denuncia o fanatismo alheio, e não está atento ao pró- prio, facilmente escorrega em no- vas formas de intolerância. Em terceiro lugar, valorizando a capacidade de dissonância cogniti- va, em particular em situações em tâncias e singularidades do sujeito de nosso ódio. Como toda constru- ção narcisista, ser fanático é uma forma de se relacionar com o en- torno social, na qual nossa indivi- dualidade se constrói pela negação da humanidade do outro, levando ao fechamento cognitivo e emocio- nal. Por trás de todo fanático, exis- te alguém profundamente insegu- ro sobre seu lugar no mundo, que se empodera e autovaloriza pela demonização do objeto odiado. O fanático que tratarei aqui é o fanático social, aquele que trans- forma seu ódio numa narrativa sobre grupos sociais. Ele muitas vezes se constrói em torno de um outro puramente imaginário, e não no conhecimento produzido pela convivência; ou pela generali- zação para todo um grupo a partir de episódios individuais. A vítima do fanatismo é o depositário dos ódios e frustrações do fanático. A vida democrática exige sempre a capacidade de equilibrar e contrabalançar diferentes valores, pois cada um deles tem uma contribuição própria, insubstituível, que se enriquece na interação com os outros. Não que inexistam tensões e contradições entre os diversos valores O problema do fanatismo para a sociedade se coloca quando ele é articulado por discursos e práti- cas políticas. Ou seja, quando os fanáticos que elaboram ideologias
  • 41. 41Cadernos Conib que é cômodo pensar como a maio- ria. Devemos educar e nos educar para não perder a autonomia de pensar e sentir de acordo com nos- sos valores, inclusive quando isso significa suportar o isolamento e a incompreensão por parte da maio- ria de nosso entorno. Em quarto lugar, ensinando e praticando o politeísmo de valores. Não existe convivência democráti- ca possível se um único valor - seja ele, por exemplo, pátria, comuni- dade, liberdade ou igualdade - se sobrepõe e subordina o resto. A vida democrática exige sempre a capacidade de equilibrar e contra- balançar diferentes valores, pois cada um deles tem uma contribui- ção própria, insubstituível, que se enriquece na interação com os outros. Não que inexistam tensões e contradições entre os diversos va- lores, mas a arte da vida democrá- tica e o fundamento da autonomia dos indivíduos é dosar e combinar, em forma reflexiva, suas diferentes afiliações e crenças do que é certo e errado. O fanatismo político, em suas diversas cores e tendências, quer sacrificar a riqueza e diversi- dade da vida social no altar de um único valor superior. Para finalizar, gostaria de lem- brar que o fanatismo quando se propaga, muitas vezes sutilmente, acorda o fanático que carregamos dentro de nós. Mesmo que nosso fanatismo se expresse como revol- ta contra os aspectos negativos que o outro lado possa representar, fa- cilmente pode adquirir caraterísti- cas de fechamento e intolerância, levando a que nos expressemos em forma irresponsável, e nossas ações se orientem pelo ódio. O fanatismo é o principal perigo para as sociedades democráticas, e exige um esforço constante de au- tocritica e abertura sincera ao de- bate de ideias e o respeito mútuo. Não existe tikun olam (reparar o mundo) sem um constante tikun atzmi (repararmos a nós mesmos). Ascensão do nazismo: fanatismo
  • 43. 43Cadernos Conib Gisela WajkopYossi Alpern Diferentes, porém juntos Diferentes, porém juntos Yossi Alpern Rabino do Beit Chabad Central, São Paulo. im, a intolerância existe em 2016 e está bem pre- sente entre nós, seres humanos. Não estou me referindo à intolerância que re- sulta de alguma ameaça ou perigo, nem à intolerância que surge da experiência negativa. Mas sim à intolerân- cia de alguém que ousa existir, que ousa diminuir meu espaço no universo. Intolerância sem causa. Rabi Shalom Dov Ber de Lubavitch (1860-1920) de- fine este comportamento como a kelipá de Midyan, ódio infundado, um ódio que não tem motivo específico. Não é ativado por algum ponto em especial, mas sim pela inca- pacidade de alguém tolerar outra pessoa, mesmo se não a conhece e jamais esteve com ela. Esse tipo de pessoa acha impossível se unir com outra, pois a odeia sem nenhum motivo. BS’D
  • 44. 44 Cadernos Conib A causa disso é egoísmo. A auto- preocupação é dominante em to- dos os aspectos da vida do egoísta, que vê a existência do outro como um menosprezo à sua e, portanto, intolerável. O Talmud (Tratado Shabat 30b- 31a) declara: “Deve-se sempre procurar ser tolerante como Hilel”. Para explicar, o Talmud ofere- ce uma história engraçada sobre um homem que apostou 400 zuz dizendo que poderia fazer Hilel perder a calma e ter um ataque de fúria. Numa tarde de sexta-feira, quando Hilel, o presidente da Su- prema Corte (San’hedrin), estava ocupado se lavando para o Shabat, o homem caminhou em frente à sua casa, gritando: “Há um Hilel aí? Há um Hilel aí?” Hilel colocou um casaco, saiu para cumprimen- tar a pessoa e perguntou: “O que você precisa, meu filho?” “Tenho uma pergunta a fazer,” respondeu o homem. “Por que as cabeças dos babilônicos são redon- das?” Hilel respondeu reconhecendo que essa era uma dúvida profunda e explicou que as parteiras babi- lônicas não eram exímias em seu trabalho. O homem saiu e então retor- nou, incomodando Hilel com mais perguntas irrelevantes: “Por que os pés dos africanos são mais largos?” “Por que os olhos dos tarmodianos são redondos?” A cada vez que o homem retorna- va, Hilel interrompia suas prepara- ções para o Shabat, vestia seu man- to, saía e respondia ao homem com grande respeito. A certa altura Hilel diz a ele: “Fique à vontade para fa- zer qualquer pergunta que deseje.” Finalmente, quando o homem percebeu que não havia como fa- zer Hilel perder a paciência, decla- rou: “Que não haja muitos como você em Israel.” “Por quê?” perguntou Hilel. “Por sua causa eu perdi 400 zuz!” respondeu o homem. Hilel disse: “É muito melhor você perder 400 zuz, do que Hilel perder a pa- ciência.” Qual era o segredo por trás da paciência e tolerância de Hilel? Ele estava mentindo quando disse ao homem que suas perguntas eram profundas? Hilel não era ingênuo, nem um rabino fraco com medo de confron- tação. Ele foi um dos maiores líde- res e eruditos da sua época. Enten- dia algo sobre a condição humana que muitos de nós não conseguem compreender. Algumas pessoas passam por grande dificuldade, lidando com opiniões e atitudes que diferem das suas. Quando são confronta- das com uma perspectiva drasti- camente oposta à sua, podem se desintegrar emocionalmente. Elas sucumbem à raiva e se sentem for- çadas a deslegitimar seu oponente por completo. Outros, porém, são muito me- lhores para lidar com ideias, estra- tégias e caminhos muito diferen- tes, ou até opostos, dos seus. Isso não porque sejam relativistas mo- rais e acreditem que não haja ver- dades absolutas pelas quais vale a pena buscar e lutar. Não! Eles po- dem professar convicções profun- das e ideais com os quais estão to- talmente comprometidos. Porém,
  • 45. 45Cadernos Conib apesar disso, podem ouvir e refle- tir sobre ideias opostas às suas sem sucumbir à ira ou ressentimento. Qual a razão para essas reações contrastantes à oposição? Rabi Shneur Zalman de Liadi, o funda- dor da escola Chabad de Psicologia e Misticismo (1745-1812), sugere que é uma questão de espaçamen- to. Alguns cérebros simplesmente carecem de “espaço” para permi- tir que perspectivas diferentes re- sidam ali dentro juntas. Quando uma opinião oposta lhes chega ao cérebro, eles temem que vá subs- tituir e superar sua própria iden- tidade. O cérebro deles não pode conter duas noções contrastante simultaneamente. Para eles, real- mente ouvir e refletir sobre uma opinião contrastante seria uma forma de morte mental. Consequentemente, elas devem instintivamente deslegitimar toda a base de seu oponente ideológico a fim de manterem a sua. Outros cérebros, diz Rabi Shneur Zalman, possuem mais es- paço dentro deles e assim podem conter dentro de si ideias e pers- pectivas contrastantes. Essa pessoa pode ser fortemente e de maneira justificável convencida de que sua posição é verdadeira enquanto a posição de seu oponente é errada e talvez até destrutiva, porém ele ainda pode “ver” e entender de onde a outra pessoa está vindo. Ele pode defender sua opinião fe- rozmente, mas não tem problema em ouvir, revisar, examinar e se sintonizar com uma opinião muito diferente da sua, sem assassinar o caráter de seu adversário. Ele va- loriza o fato de que diversidade de opinião e perspectiva é indispen- sável à condição humana; que um D’us indefinido criou possibilida- des intermináveis de pensamento e experiência. Ele jamais fica preso à noção de que sua maneira de ver as coisas é a única realidade. D’us, essa pessoa entende, trans- cende não apenas as propriedades físicas do homem, mas também o modo de pensar mental e intelec- tual de qualquer indivíduo. Às ve- zes isso significa que eu devo estar preparado para descobrir que po- dem haver duas respostas para a mesma pergunta, ambas legítimas e válidas. Às vezes, quando a opi- nião diferente mina as verdades morais transmitidas no documen- to de D’us, a Torá, não devo acei- tar a outra opinião como legítima, mas valorizar e entender a jornada da outra pessoa, e lembrar-me de não demonizá-la apenas por cau- sa da sua posição diferente. Devo procurar entender o que levou a essas conclusões. O neto de Rabi Shneur Zalmam, Rabi Menachem Mendel de Luba- vitch (1789-1866), num comen- tário sobre as declarações de seu avô, sugere que Hilel incorporava perfeitamente esse perfil. Ele não estava sendo politicamente cor- reto quando disse ao homem que suas perguntas eram profundas. Hilel, devido à amplidão de sua consciência, criava genuinamente espaço em sua alma para a autên- tica diversidade e possuía a capa- cidade de “ver” as coisas a partir da perspectiva de outra pessoa. Tolerância significa que embo- ra você veja as falhas do outro em toda a sua feiura diante de você,
  • 46. 46 Cadernos Conib isso de maneira alguma diminui seu respeito por ele como ser hu- mano, e por tudo de bom que ele tem dentro de si. Em 3 de outubro de 2016, a comunidade judaica recebeu o Ano Novo Judaico de 5777, com a celebração de Rosh Hashaná, o aniversário da criação do primeiro homem, Adão. Os Sábios do Tal- mud explicam por que a criação do homem diferiu da criação de ou- tras espécies vivas e por que, entre outras coisas, o homem foi criado como um indivíduo único, ao con- trário das outras criaturas criadas aos pares. Um dos motivos é que é o desígnio de D’us que a raça hu- mana, todos os seres humanos em toda parte e em todos os tempos, devem saber que todo e cada um descende de um único progenitor, um ser humano plenamente desen- volvido criado à imagem de D’us. Portanto, ninguém pode alegar origem ancestral superior; assim é mais fácil cultivar uma verdadeira sensação de afinidade em todos os relacionamentos inter-humanos. Embora Rosh Hashaná seja uma festa judaica, nossas preces para um Feliz Ano Novo incluem tam- bém todas as nações e os morado- res da terra. E a verdadeira felicida- de inclui paz e prosperidade, tanto material quanto espiritualmente. Fontes Ensinamentos dos mestres de Chabad e rabinos Yossi Jacobson e Tzvi Freeman. O toque do Shofar celebra o aniversário da criação do primeiro homem
  • 47. 47Cadernos Conib Gisela WajkopHelio Carnassale A Liberdade ReligiosaA Liberdade Religiosa quem foi esse homem, sobrevivente graciado com o Nobel da Paz em 1986 m Nova York em 2016, aos 88 anos? Helio Carnassale Mestre em Ciências da Religião, diretor de liberdade religiosa da Igreja Adventista do Sétimo Dia para oito países da América do Sul. nico varão entre os quatro filhos do comerciante e ativista comunitário Shlomo e da dona de casa Sarah Feig, Wie- sel nasceu na cidade de Sighet em 1928. Embora Sighet, na época, fizesse parte da Romênia, era húngara na sua perspectiva cultural. Voltou a ser novamente Hungria em 1940 e, assim, o destino de Wiesel durante o Holocausto uniu-se ao dos judeus húngaros de nascimento, que fo- ram discriminados e perseguidos, mas cuja aniquilação teve início a partir de 19 de março de 1944, com a ocu- pação nazista. Já um mês depois surgiam os guetos; de 15 de maio até 8 de julho, 437.402 judeus foram deporta- dos da Hungria - em 54 dias, 147 trens partiram lotados com destino ao campo de concentração de Birkenau. A contabilidade nazista sempre tinha os números exatos da Solução Final. quem foi esse homem, sobrevivente graciado com o Nobel da Paz em 1986 m Nova York em 2016, aos 88 anos? om uma visão holística, os adventistas têm um enfoque voltado para o ser humano como um todo, trabalhando para o desenvolvimento har- mônico das faculdades físicas, intelectuais, emocionais, sociais e espirituais das pessoas. No cumprimento de sua missão, além de pregar uma mensagem bíblica, muitas de suas atividades têm fins humanitários, com o objetivo de diminuir o sofrimento humano e levar paz e esperan- ça. O compromisso da Igreja Adventista também inclui a causa da liberdade religiosa. No final do século 19, os adventistas já estavam envolvidos com esse tema, por conta de propostas surgidas nos Estados Unidos para im- posição do domingo como dia santificado de repouso, as chamadas leis dominicais. Nesse contexto, foi fundada arnas- ciências , diretor de eligiosa da entista do a, para oito América A Igreja Adventista do Sétimo Dia é uma organização cris- tã fundada nos Estados Unidos em 1863 e presente em 205 países. Com pouco mais de 19 milhões de membros, suas atividades envolvem uma forte atuação na área edu- cacional, com escolas, colégios e universidades, e uma rede mundial de hospitais, clínicas, fábricas de alimentos saudáveis e casas publicadoras.
  • 48. 48 Cadernos Conib a IRLA – International Religious Liberty Association, a mais antiga entidade do mundo na luta pela liberdade religiosa e que ainda mantém uma destacada atuação mundial de âmbito interdenomi- nacional e inter-religioso. Na visão adventista, a princi- pal justificativa para se trabalhar em favor da promoção dos direitos humanos e em defesa da liberdade religiosa, bem como ser a voz dos que não têm voz, defender os inde- fesos e empreender outros esforços legítimos em favor da humanida- de, é a percepção da solidariedade divina para com os seres humanos. Há uma direta relação entre a ma- neira como as pessoas são tratadas e como isso repercute no seu re- lacionamento com a divindade. A visão cristã adventista compartilha plenamente da compreensão que qualquer coisa que seja feita a um ser humano, está sendo feita dire- tamente a Deus. ventistas defendem uma ampla, total, inclusiva e irrestrita liberda- de religiosa para todos, indepen- dentemente das diferenças ide- ológicas e filosóficas que muitas vezes separam as pessoas. John Graz, que por 20 anos foi o líder mundial de liberdade religio- sa da Igreja Adventista, afirmou: “Enquanto a religião e os líderes religiosos estão representando um papel crescente hoje, precisa- mos ser cautelosos, pois a maioria das religiões se sente ameaçada de uma maneira ou de outra. A despeito do aumento de diálogo e de reuniões interconfessionais, em muitos lugares há uma tensão crescente entre as religiões”2 . O adventismo mantém uma ponte relacional com a maioria das religiões do mundo, pois possui pontosemcomumcomojudaísmo, islamismo, budismo, hinduísmo, e claro, com outras denominações cristãs. Um aspecto fundamental na visão adventista é a convicção em uma liberdade inclusiva e não exclusiva, isto é, pensar e traba- lhar para todo ser humano, ainda que não se possa compartilhar as mesmas crenças e nem as mesmas práticas religiosas. Os adventistas trabalham em conjunto com outras entidades e organizações de ideologia diferen- te, quando as causas são comuns. Um vivo exemplo disso é a parce- ria que a Igreja Adventista no Bra- sil mantém com a Conib na luta pelo não confinamento dos estu- dantes aos sábados, por ocasião do ENEM. Muitas vitórias têm sido alcançadas, mas ainda há muito por se alcançar. Baseados na regra áurea do cristianismo - “todas as coisas que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós também a eles”1 , os ad- Os adventistas trabalham em conjunto com outras entidades e organizações de ideologia diferente, quando as causas são comuns. Um vivo exemplo disso é a parceria que a Igreja Adventista no Brasil mantém com a Conib na luta pelo não confinamento dos estudantes aos sábados, por ocasião do ENEM.
  • 49. 49Cadernos Conib Ao encerrar este artigo, repro- duzo aqui as sábias palavras de John Graz, escritas em seu livro Fé e Liberdade: “O que podemos fazer? Muitas tendências globais hoje não estão a favor da liber- dade religiosa contínua. Há uma grande batalha por vir e deve- mos estar prontos para defender a liberdade religiosa para todos. Devemos defender o princípio da separação igreja-estado. Devemos trabalhar para criar respeito entre as religiões. Temos que explicar aos governos que a discriminação religiosa não é boa política. No artigo A Política das Minorias Reli- giosas Perseguidas, Philipe Jenkins escreveu: ‘Quanto mais as mino- rias forem excluídas, mais devo- tarão lealdade e esforços à subcul- tura religiosa, e mais serão vistas como exclusivistas, separatistas e subversivas’. Não desista. Seja a voz dos sem voz. Seja a voz dos milhões de perseguidos por sua fé. Precisamos promover, defender e proteger a liberdade religiosa para todas as pessoas em todos os lugares. A liberdade religiosa é um dom do Criador para a huma- nidade”3 . Notas 1 Evangelho de Mateus 7:12. 2 Graz, John, Fé e Liberdade, p. 8. 3 Graz, John, Fé e Liberdade, p. 10. Fé na liberdade religiosa
  • 50.
  • 51. 51Cadernos Conib Gisela WajkopIvanir dos Santos Intolerância Religiosa: Racismo Religioso Ivanir dos Santos Babalawô, doutorando em História Comparada (UFRJ), coordenador da Coordenadoria de Experiências Religiosas Tradicionais Africanas, Afrobrasileiras, Racismo e Intolerância Religiosa (UFRJ). intolerância religiosa, assim como o racismo, não é um fenômeno social que acontece exclusi- vamente no Brasil. Ele aconteceu e ainda acon- tece em diferentes partes do planeta. Um breve panorama histórico nos mostra que a intolerância religiosa foi, du- rante a Idade Média, um dos motivos da caças às bruxas e, nas eras Moderna e Contemporânea, de perseguições aos judeus, muçulmanos, cristãos ortodoxos, ciganos, grupos religiosos afro-brasileiros etc. Focando o contexto histórico americano e especifica- mente brasileiro, chamamos a atenção para o fato de que entre os grupos mais perseguidos estão os praticantes das religiões de matriz africana. Segundo dados do Relatório do Caso de Intolerância Religiosa no Brasil 2015, escrito em parceria entre a Co- Intolerância Religiosa: Racismo Religioso
  • 52. 52 Cadernos Conib missão de Combate à Intolerân- cia Religiosa (CCIR), o Centro de População Marginalizada (CEAP) e o Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER), dos 1.014 casos de intolerância registadas entre os anos de 2012 a 2015 pelo Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos (CEPLIR), 73% são atos de violência contra os praticantes das religiões de matriz africana. O caso da menina Kaylane Campos é apenas um deles. Em 14 de junho de 2015, no Rio de Janeiro, a ima- gem da menina de apenas de 11 anos de idade com suas vestes reli- giosas brancas manchadas de san- gue, após ter levado uma pedrada, estampou as manchetes e comoveu a sociedade brasileira. Uma dúvida paira. Afinal, se- gundo o velho mito, o Brasil é o país da igualdade racial, cultural, social, econômica e quiçá religio- sa. Qual seria o motivo de tanta in- tolerância, a ponto de gerar agres- sões físicas, destruição de templos religiosos e injúrias? Não é possí- vel analisar tais atos de violência sem olhar de forma apurada para as questões relacionadas aos pro- cessos das diásporas africanas no mundo e os olhares racistas sobre as culturas, religiosidades e socie- dades africanas. Ao compreendermos que em África o indivíduo existe em sua totalidade religiosa, ou seja, não é possível separa o ser social do ser religioso, entendemos tam- bém que, durante o período das diásporas forçadas, os indivíduos africanos aportaram na América trajando sua religiosidade, pois o mundo em que viviam não era/é construído com base em uma visão cartesiana, na qual seria possível separar o indivíduo religioso e o indivíduo social. Sobre essa questão, Emamauel Obiechina (1978: 28), salienta que em África, “não existe qualquer di- mensão importante da experiência humana que não esteja ligada ao sobrenatural, ao sentimento popu- lar religioso e à piedade [...]. Tudo isso constitui parte integrante da estrutura ideológica da sociedade tradicional e é essencial para uma interpretação exata da experiência no contexto social tradicional”. A intolerância religiosa contra os praticantes das religiões de matriz africana no Brasil pode ser diretamente conectada ao racismo baseado na cor da pele... negra, pois todas as ressignificações religiosas afro-brasileiras estão intimamente ligadas à religiosidade dos grupos étnicos africanos Em África, o religioso e o so- cial integram a totalidade do ser. A instauração do domínio colonial europeu na África não compreen- deu apenas a imposição forçada do poder político, econômico e social. Foi também uma grande impo- sição cultural, valendo-se da mes- ma para dar apoio às superestrutu- ras políticas, econômicas e sociais representadas pelo colonialismo (OPOKU, 2010). Assim, a religião tradicional em África estava (e ain-
  • 53. 53Cadernos Conib da está) inseparavelmente ligada à cultura africana. Um olhar atento, alicerçado pelas análises de Frantz Fanon (2008), sobre a formação religio- sa brasileira em suas múltiplas tramas sincréticas – religiões ame- ríndias, africanas e luso-católicas – nos mostra que a ideologia da igualdade das raças, construída e presente na América Latina e prin- cipalmente no Brasil, favorece a criação de um suporte sólido para que o racismo se mostre de forma mais “velada”. Ser insensível à existência do racismo no Brasil, onde as rela- ções são marcadas principalmente pela assimetria entre os díspares grupos étnicos, significa fortalecer aqueles que detêm a hegemonia política e econômica. A intolerância religiosa contra os praticantes das religiões de ma- triz africana no Brasil pode ser dire- tamente conectada ao racismo ba- seado na cor da pele... negra, pois todas as ressignificações religiosas afro-brasileiras estão intimamente ligadas à religiosidade dos grupos étnicos africanos que aqui aporta- ram, escravizados. Estes grupos fo- ram duramente repreendidos como irracionais, iletrados, sem cultura, sem história e interpretados como manifestação do mal. Da mesma forma, as ideologias de inferiorida- de das raças negras e das sociedades africanas contribuíram, de maneira ampla, para a construção do racis- mo religioso, o crescimento da into- lerância religiosa e a construção de estereótipos, tais como: ‘todo negro é praticante ou adepto das religiões de matriz africana’ ou ‘negro vesti- do de branco é praticante ou adepto das religiões de matriz africana’. Breve Reflexão final:   Podemos interpretar o caso Kayla- ne, de modo contundente, como mais um caso de racismo religioso, que é um dos tentáculos da into- lerância. Juntos com a pedrada, também vieram os insultos “vai queimar no inferno” e “macumbei- ra”. O caso, registrado no 38ª DP, em Irajá, até o momento não foi solucionado pelos órgãos gover- namentais competentes. Daqui a algum tempo, Kaylane será esque- cida pela História. Referências FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas; tradução de Renato da Sil- veira - Salvador : EDUFBA, 2008. OBIECHINA, E. 1978. Culture, Tradition and Society In the West African Novel. Cambridge, CUP. OPOKU, Kofi Asare. A religião na África durante a época colonial. In: História geral da África, VII: África sob domi- nação colonial, 1880-1935 / editado por Albert Adu Boahen. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. ORO, Ari Pedro; BEM Daniel F. de. A dis- criminação contra as religiões afro- -brasileiras: ontem e hoje. In: Ciênc. Let, Porto Alegre, n. 44, p. 301-318, jul./dez. 2008. Relatório de Intolerância Religiosa no Brasil 2015.
  • 54. 54 Cadernos Conib Crianças palestinas e israelenses confraternizam em São Paulo
  • 55. 55Cadernos Conib Gisela WajkopGabriel Holzhacker A lição que vem do esporte A lição que vem do esporte Gabriel Holzhacker Brasileiro, vive em Israel desde 1999, atua como vice- diretor da ONG Gol da Igualdade. Formado em Direito na Universidade Hebraica de Jerusalém uma região marcada por conflitos, guerras, violência e constante tensão, uma ONG reúne crianças de diferentes religiões, nacionalidades e culturas em torno da paixão pelo futebol, compartilha- da por todos. O projeto Gol da Igualdade participa da construção de uma sociedade melhor em Israel, baseada em valores de respeito, tolerância e convivência. O objetivo é propor- cionar a crianças da periferia social do país um quadro esportivo e educacional nos horários da tarde (pós-esco- la). O formato é simples: cada equipe com 15 jogadores se reúne quatro vezes por semana durante o ano letivo: dois dias são dedicados aos deveres escolares e atividades sociais, e os outros dois dias aos treinos de futebol com treinadores profissionais. As equipes são montadas em
  • 56. 56 Cadernos Conib escolas de todo o país e divididas em 12 regiões. Em cada uma des- tas acontecem torneios regionais mensais. O projeto foi criado em 2009 por um grupo de estudantes da Universidade Hebraica de Jerusa- lém, liderados por Liran Gerassi (atual diretor da ONG), que cur- sava economia e administração de empresas. No seu primeiro ano o projeto contava com sete times, to- dos de Jerusalém. Em 2016 partici- param das atividades quase 2.500 crianças de 152 escolas de todo o país. Entre os participantes, meni- nos, meninas, judeus, árabes, mu- çulmanos, cristãos, seculares, re- ligiosos, drusos, beduínos, sabras, olim hadashim (novos imigrantes) e mais. Um verdadeiro mosaico hu- mano criado em torno dos valores do esporte e da tolerância. O encontro entre crianças de diferentes origens e crenças reli- giosas é um grande desafio. A pai- xão pelo futebol funciona como uma ponte e ajuda a desenvolver nas crianças a capacidade de se comunicar, brincar e mesmo fazer amizade com aqueles que até en- tão eram estranhos ou até mesmo inimigos. Ao lado da equipe de diretores da ONG e de treinadores de fute- bol, mais de 400 voluntários par- ticipam do Gol da Igualdade em funções administrativas ou de mo- nitoria. Todos trabalham com um sentido de missão, crença no que fazem e na capacidade de influen- ciar as próximas gerações. O grande desafio ao longo dos próximos anos será cultivar as sementes da viagem até transformá-las em raízes tão firmes que já não possam mais ser arrancadas. Que essas crianças guardem para sempre na memória os dez dias vividos no Brasil e que possam, em breve, construir um mundo de paz A participação das crianças de- pende unicamente de seu compor- tamento, esforço e participação Zé Roberto, jogador do Palmeiras, recepciona as crianças
  • 57. 57Cadernos Conib na escola e em encontros educa- cionais, – e não do desempenho esportivo em campo. Nos casos de racismo ou violência, a criança é punida e pode eventualmente ser suspensa. Nos seus primeiros anos, a ONG trabalhou somente com crianças do ensino fundamental, da quarta a sexta série. Em 2016, o projeto foi expandido a adolescentes do sétimo e oitavo ano escolar. Quan- do atingirem o segundo grau, os participantes se integrarão como treinadores e instrutores nos times das crianças menores, num forma- to semelhante ao de um movimen- to juvenil. Gol da Igualdade no Brasil Em agosto de 2016, 22 crianças judias e árabes de Jerusalém que participam das atividades da ONG foram convidadas pela CBF para vir ao Brasil conhecer a história do futebol brasileiro e de seus ído- los. A visita incluiu passagens pelo Museu do Futebol, no Pacaembu, Museu da CBF, no Rio de Janeiro, Centro de Treinamentos do São Paulo Futebol Clube em Cotia e a sede do Santos Futebol Clube. As crianças foram acompanhadas por treinadores, professores e direto- res do Gol da Igualdade. O grande evento, o Gol da Paz, aconteceu em 7 de agosto de 2016, no Allianz Parque. Antes de par- tida pelo Campeonato Brasileiro, crianças árabes e judias de Jerusa- lém entraram em campo para dar o exemplo de coexistência, ao lado de crianças dos clubes das comu- nidades árabes e judaicas de São Crianças no Allianz Parque: exemplo de tolerância
  • 58. 58 Cadernos Conib Paulo: Hebraica, Macabi, Sírio- -Libanês e Monte Líbano, além do Pinheiros. A iniciativa foi da CBF, Federação Paulista de Futebol e organização Caminho de Abraão, apoiada pela Sociedade Esportiva Palmeiras e pelos clubes supracita- dos. Quando as crianças chegaram ao Brasil, elas se conheciam pou- co, por meio dos torneios mensais da ONG. No período em que estiveram aqui, porém, além de jogar fute- bol, elas compartilharam histórias, dividiram angústias, expuseram anseios e desenvolveram laços de amizade. Após dez dias de intensa convivência, as línguas hebraico e árabe já não causavam estra- nhamento. Elas saíram do Brasil conhecendo os nomes uns dos outros, cantando, jogando bola e brincando juntas, e entendendo que a diversidade enriquecia suas vidas. Todas essas eram atitudes inimagináveis antes da viagem. Ao retornar a Jerusalém, leva- ram na bagagem as sementes do respeito ao próximo e da coexis- tência. Algumas dessas sementes já foram espalhadas em solo bra- sileiro, durante essa convivência intensa. As outras serão semeadas no solo de Jerusalém com muito esforço e trabalho. O grande de- safio ao longo dos próximos anos será cultivá-las até transformá-las em raízes tão firmes que já não possam mais ser arrancadas. Que essas crianças guardem para sem- pre na memória os dez dias vividos no Brasil e que possam, em breve, construir um mundo de paz. O Gol da Igualdade fará sua parte e conta com a ajuda de todos. Amém. Inshallah. Tolerância no esporte: exemplo para a vida
  • 59. 59Cadernos Conib Gisela WajkopLelette Couto Diversidades: um exercício do bem viver Lelette Couto Arte-educadora, diretora de teatro, cineasta e professora de música. Trabalhou em produções cinematográficas com Nelson Pereira do Santos, Ruy Guerra e Valter Lima Jr. Em 2007, implementou a Superintendência de Promoção da Igualdade Racial no Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é a coordenadora especial de Promoção das Políticas de Igualdade Racial da cidade do Rio. convívio respeitoso entre as diversidades reli- giosas, étnicas, econômicas, intelectuais e de gênero é um grande desafio. Com o avanço das discussões sobre a promoção da igualdade racial e a ne- cessidade de criar elos entre as diversas expressões hu- manas, o Brasil criou políticas de ação afirmativa capazes de impulsionar a construção do alicerce para a equidade. Há sete anos, foi criada a Coordenadoria Especial de Promoção das Políticas de Igualdade Racial – CEPPIR- -Rio, um órgão público vinculado à Secretaria Munici- pal da Casa Civil da cidade do Rio de Janeiro. Ela visa promover, nos moldes da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR-PR, políticas voltadas para grupos historicamente discriminados. Diversidades: um exercício do bem viver
  • 60. 60 Cadernos Conib A CEPPIR-Rio, com o objetivo de se aproximar dos diversos gru- pos étnicos discriminados que vi- vem na cidade, criou o Grupo de Trabalho de Promoção da Igual- dade Racial – GTPIR, que durante um ano se reuniu quinzenalmente promovendo debates, discussões e troca de experiências entre repre- sentantes das comunidades negra, indígena, judaica e cigana. É importante ressaltar que os encontros ocorreram de forma itinerante, para que todos conhe- cessem os espaços das instituições participantes. Dessa forma, garan- timos também que os funcionários não integrantes do GT pudessem ter acesso às discussões, multipli- cando os debates em seus ambien- tes de trabalho. com a Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Cultura, Coordenadoria de Re- lações Internacionais e Secretaria Especial de Políticas para Mulhe- res. Nesse contexto, destaco a atu- ação de Kike Rosenburt, sheliach (emissário) da Agência Judaica, que possibilitou ao grupo uma aproximação com a juventude ju- daica e um rico aprendizado sobre sua cultura, costumes e práticas. Ao longo do percurso, surgiram os seguintes projetos: Mulheres de Raça Lançado em 2014, o projeto desen- volve atividades de fortalecimento do afro-empreendedorismo e valo- rização da autoestima das mulhe- res negras, indígenas e ciganas. Portal Cores do Rio Canal institucional do GT da Igual- dade Racial, foi lançado em agosto de 2014 e tem mais de 1200 par- ticipantes cadastrados. Reúne in- formações de diferentes frentes de atuação, divulgando demandas, propostas e anseios dos grupos ét- nicos. Plano Municipal da Igualdade Racial Em fase de finalização, tem entre seus objetivos a redução das de- sigualdades sociais por meio do desenvolvimento sustentável, dis- Em cada encontro, foram discu- tidas questões da pauta da Igual- dade Racial na cidade do Rio de Janeiro. Nas primeiras reuniões, tivemos apresentações dos grupos étnicos sobre seus processos histó- ricos. Foi um momento enriquece- dor, pois muitos tiveram o primei- ro contato com as trajetórias de outras etnias. A itinerância contribuiu para dar visibilidade à CEPPIR, favo- recendo a formação de parcerias, das quais destacamos as firmadas
  • 61. 61Cadernos Conib tribuição de renda, educação de qualidade, foco nos grupos sociais discriminados e adoção de políti- cas de ação afirmativa. Racismo: vamos falar sobre isso? (vídeo e debates) O objetivo é levar a discussão so- bre o racismo para diversos espa- ços, com veiculação pelo canal da CEPPIR no Youtube. Selo Cores do Rio: Aqui Valorizamos a Diversidade Carioca (em fase de elaboração) Proposta elaborada pelo GT, aguarda apoio da Prefeitura para sua efetivação. Por meio do selo, a Evento com participação de Lelette Couto e Ivanir dos Santos realizado na Prefeitura do Rio de Janeiro Prefeitura reconhecerá as organi- zações comprometidas com ações de promoção da diversidade étni- co-racial. Balanço Em um ano de atuação do GT, destacamos o diálogo estabe- lecido entre grupos que antes não se comunicavam, e as par- cerias firmadas com secreta- rias e coordenadorias. O exercício de ouvir aten- tamente e partilhar narrativas e experiências distintas é fun- damental para que possamos compreender “o outro” e en- tender os principais desafios do combate ao racismo. RicardoCassiano
  • 62.
  • 63. A proteção democrática do ciberespaço A proteção democrática do ciberespaço 63Cadernos Conib Gisela WajkopRony Vainzof evolução da forma de exteriorização e materiali- zação do pensamento teve um grande salto com a criação do alfabeto grego, por volta do ano 700 antes da Era Comum, que possibilitou a consolidação da comunicação por meio de palavras. Para Castells, “foi o alfabeto que proporcionou no Ocidente a infraestrutura mental para a comunicação cumulativa, baseada no co- nhecimento”.1 Em meados de 1455, o ourives alemão Johannes Gutenberg, com a invenção da prensa de tipos móveis, possibilitou a impressão em massa, transformando para sempre a cultura ocidental. Antes dela, cada cópia de li- vro exigia um escriba – que escrevia tudo à mão, página por página. Gutenberg conseguiu com seu invento suprir a crescente necessidade por conhecimento da Europa Rony Vainzof Professor coordenador do MBA em Direito Eletrônico da Escola Paulista de Direito. Mestre em Soluções Alternativas de Controvérsias Empresariais pela Escola Paulista de Direito. Pós- Graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Secretário da Confederação Israelita do Brasil. 63Cadernos Conib