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Mesa, lugar de comunicação1
Michel Maffesoli (Université de Paris-Decartes)
Fala-se do comer como um modo de enfrentar a morte, mas ele passa, antes, pelo confronto
com os outros. Face à lógica do tempo e ao desamparo que a morte ocasiona, trata-se, pelo
espetáculo, de afirmar ao seu meio social, aos amigos ou aos inimigos, a continuidade da fama dessa
cerimônia, desse grande momento, e destinada a subsistir. Os ritos religiosos (pagãos ou cristãos),
locais ou folclóricos, passam sempre por disputas gastronômicas. As famílias de um mesmo vilarejo
lançam-se em verdadeiros desafios culinários, vencendo aquela que atuar com mais requinte.
Encontra-se o mesmo desafio de vilarejo em vilarejo. A festa do santo padroeiro de cada povoado da
Sicília motiva uma profusão de espetáculos parcialmente culinários, em que os habitantes dos
povoados vizinhos observam com atenção para, assim, medirem o que eles não conseguiram fazer
ou apreciar sua evidente superioridade. L. Moulin (pg. 80) relata que tais "disputas gulosas"
aconteciam no Peru entre as diversas ordens religiosas nos dias de festa. "Cada ordem tinha sua
especialidade, cujo segredo era ciosamente guardado" e que entrava em concorrência desmedida
com a especialidade da ordem vizinha. Pode-se imaginar que a influência espiritual de determinada
ordem era totalmente ligada à qualidade do seu bolinho recheado de creme ao mel ou a de outra
guloseima. É divertido pensar que a frequência ao sermão dominical de determinado convento
dependia da excelência de seus cozinheiros!
O desafio, por vezes, podia chegar a um nível absurdo, e a tradição histórica ou
romanesca estima que essas refeições-desafios prosseguiam até a morte de um dos
protagonistas. No romance de Gabriel Garcia Marquez Cem anos de solidão, um dos heróis da
família Buendía pode perseguir até a morte, dessa maneira, alguns presunçosos dos vilarejos
vizinhos, antes dele mesmo capitular. O teatral atinge seu apogeu, e a refeição não é nada mais
que um puro espetáculo, que se passa em um palco e só vale pela qualidade de seus atores. Sem
atingir sempre essa forma pura, a refeição – expressão da provocação – deve ser compreendida
como um fato social que lembra a todos que o que se chama sociedade é uma ordem fundada na
diferença.
De fato, a refeição conduz à comunicação, mas esta se consolida frequentemente no
conflito, sendo também a refeição um conflito. Aí está o sentido da provocação, lembrando o
apólogo de Juvenal, que descreve o pobre Trebus comendo na casa do rico Virion. Enquanto este
bebia um bom vinho numa rica taca de âmbar, o primeiro, todo satisfeito, recebia vinho de má
qualidade em uma xícara rachada. Claro, trata-se de um exagero, mas esse exagero reflete um
aspecto da refeição: fazer ostentação de sua riqueza. Durante a refeição, as toalhas, os talheres, o
lugar dos convidados, os ritos a mesa, as conversas e o serviço criam, ao mesmo tempo,
proximidade e distância: senta-se junto, mas de um modo que fortalece a diferença e a hierarquia
(Coincidentia oppositorum). É isso que ocorre, como adverte um comentarista afeito à arte
culinária:
...a refeição é um ato social fundamental, na medida em que oferece a seus
parceiros uma experiência impressionante das relações sociais, fixando
solidamente a coesão, fazendo momentaneamente desaparecer as imposições e os
desnivelamentos, (e) exacerbando-os (Lange, 1975:39).
Nesse sentido, os ritos da refeição são paradigmas de toda ritualização social. À sua
maneira, feita de razão e de utopia ("hiper-racionalidade"), Fourier analisa a função do desafio
na estruturação da harmonia. Os salgadinhos, as omeletes variadas e os cremes doces podem ser
armas dessa "guerra gastronômica" da qual fala N. Chatelet. Cada falansteriano esta em busca de
1
Transcrito (pgs 131~136) do livro “Hospitalidade: reflexões e perspectivas”, organizado por Célia Maria de Moraes Dias (Editora
Manole – 2002).
uma melhoria de cada uma dessas iguarias, e as oferecerá ao seu adversário no término da luta
(Chatelet, 1977:142). Vê-se bem como essa "guerra gastronômica" simboliza o conflito social e
se torna, por esta razão, momento de sociabilidade. Ao redor desses produtos culinários, todos os
falansteriano se confrontam, mas se encontram também. Esses produtos representam momentos
de troca. Remete-se a eterna relação de Neikos e de Philia, de quem fala Empédocle de
Agrigento, mas por meio do ritual culinário esse conflito antropológico termina em união. A
provocação teatralizada que se encontra de maneira mais ou menos nítida em todas as práticas de
vizinhança, tende a uma harmonia dinâmica. É nesse sentido que, como arma, os produtos
culinários tomam seu lugar no que se pode chamar de trajeto antropológico. Não se pode
esquecer que a gastronomia pode ser um meio de sociabilidade, pelo fato de dar lugar à
diferença. Ela nunca é uma unanimidade chata e enfadonha; ao contrario, é sempre um confronto
mais ou menos violento. Se a mesa pode ser o lugar em que se estabelecem as mais sólidas
amizades e os mais suaves laços afetivos, é igualmente o lugar onde se desencadeiam e se
manifestam as mais ferozes discórdias. Em torno dela é possível se amar ou se ultrajar. Em
suma, a mesa é o trono do ambíguo e perturbador Dionísio, e os efeitos do vinho que este oferece
aos homens são muito variados e perfeitamente imprevisíveis.
Chega-se ao âmago da contradição do prazer e do desprazer, tão bem explicado pelos
gregos. Como nota Dupont, "o banquete é um local ambíguo, fora da lei, mas não fora do mundo
da lei" (Dupont, 1977:23). De fato, encontra-se na refeição, na festa do vinho e na expressão do
bem-estar, a presença constante da sombra, da face escondida do deus, da discórdia, quer dizer,
no sentido mais preciso da morte. Toda essa encenação da refeição – sua teatralidade e sua
arrumação – lembra essa ambivalência fundamental. Ela a expõe e, ao mesmo tempo, ao
ritualizá-la, tenta estabelecer um acordo, domesticá-la, suavizá-la. É difícil viver a antinomia, a
que M. Weber chamava de "a irracionalidade ética do mundo" e os diversos ritos não têm outra
função, senão a de se aclimatar a ela. A teatralidade da refeição tem este papel por excelência:
unir os contrários. A metáfora da alquimia misteriosa, que é a culinária, está ai para lembrar isso.
É por fazer esse papel de mediadora que a mesa vai permitir o conjugar-se. A sociabilidade é
possível porque há confronto coletivo com a sombra e com a morte. Comentando as maravilhas
do triclínio2
de Trimaldon, Florence Dupont constata que "a mesa não é mais o que equilibra o
mundo, é o lugar de todas as confusões, onde se reencontram os mortos, os vivos e os deuses"
(Dupont, ibid.: 147). Esse comentário tem importância, mas é possível contestar a autora quando
ela nega que essa "confusão" tenha um lado cômico. Parece, ao contrário, que unindo assim,
ritual e teatralmente, os vivos e os mortos, os deuses e os homens, a mesa será a expressão
perfeita de uma confusão ordenada que é fato do cosmo e, igualmente, fato do social. O cosmo é
harmonia tensional. A mesa a teatraliza e serve, assim, de paradigma do ordenamento do social
no resto da vida cotidiana. Pode-se mesmo dizer que, pelo fato de a mesa exprimir, por meio dos
ritos, a harmonia cósmica, ela permite a comunicação. É nesse sentido que se pode falar de sua
eficácia simbólica. Plutarco notava que "a supressão da alimentação é a dissolução da casa";
dando toda extensão a esse comentário, deve-se completar a afirmação indicando que o que une
a mesa é a estruturação social. Sem o alimento, a casa não é nada; sem a mesa, o comércio social
é impossível; sem a mesa, que teatraliza a violência das relações, esse comércio se autodestrói e
se nega enquanto tal.
Aqui, trata-se exatamente do que resulta da refeição e de sua teatralização. O rito, a
preparação, o confronto com a morte e o conflito, tudo isto culmina e se esgota na arte do
conjugar-se. "A função do banquete é de se tornar agradável aos outros e a si mesmo" – diz ainda
Dupont (ibid: 81). É interessante compreender por completo a lógica de tal observação. Aí se
vêm ligados os dois aspectos que se tentou esclarecer a propósito da culinária: ela gratifica o
corpo permite a troca; à maneira do que é consumido, essas duas funções se esgotam no próprio
2
Refeitório Romano com três ou mais leitos em redor de uma mesa.
ato. Nesse sentido, a aparência da refeição é um modelo indispensável do fato social. A
comunhão final fica factual, não é jamais conquistada para sempre. É essa precariedade que faz
sua força, pois é condição de intensidade. É nessa perspectiva que convém compreender a
importância do teatro e a função do ritual dos modos à mesa. Lembrando que o ser humano
funciona sobre o efêmero, ele dá início à palavra, ao amor e à comunicação. De fato, nada disso
é natural; o mais louco amor passa por um ritual mais ou menos complicado, a sedução é sua
expressão mais imediata. E a refeição é uma propedêutica dessa troca simbólica, porque ela se
centra na aparência.
Na Antiguidade, a tradição platônico-plotiniana, ou ainda aquela oriunda da gnose ou dos
diversos mistérios religiosos, mostrou a importância do ritual culinário. Este será reencontrado
no declínio do Império Romano, na sociabilidade medieval (leiga ou religiosa) e nas festas da
Renascença. No século XIX, o banquete passou a ocupar até mesmo o terreno político. Na
atualidade, a refeição, a "comida" e a festa parecem indicar uma imperiosa necessidade de
reencontrar uma sociabilidade básica; são indícios de uma troca simbólica que tenta escapar da
dominação do poder ou dos diversos "dever-ser". Mas essas diversas buscas iniciais de
sociabilidade por meio da refeição exprimem-se sempre em uma aparência, em uma encenação
que aponta a fenomenalidade, a estrutura da existência societária.
Em um estudo sobre a alimentação contemporânea, R. Barthes observa que os elementos
da aparência do alimento, os ritos de hospitalidade, todos os menus da vida cotidiana, a saber, as
rodadas de aperitivos, a refeição festiva, os diferentes costumes ligados aos grupos sociais etc.,
não são somente objetos de consume ou práticas sem importância, mas também constituem o
que ele chama um verdadeiro signo, "quer dizer, a unidade funcional de uma estrutura de
comunicação". De um ponto de vista antropológico, continua ele, o alimento é a primeira das
necessidades, mas por certo essa "necessidade" está fortemente estruturada com o excesso da
colheita (Barthes, 1970: 309). É essa estruturação que estabelece a comunicação alimentar, a
qual se tentou esclarecer no que se chamou teatralidade. Nesse sentido, a comunicação, o
convívio ou a comunhão não são situações anódinas dependentes de um "diálogo" asséptico,
ainda mais enaltecido quando e efetivamente impossível. A comunicação, não importa o nome
que lhe seja dado, é uma estrutura, quer dizer, ée uma entidade composta de elementos
interdependentes e que ultrapassa a consciência dos atores presentes. A comunicação em
questão – que se pode revelar no fim desse percurso - não é unicamente verbal, ainda que a
palavra a ocupe um bom lugar. É um sistema total, um misto de palavras, de objetos e de gestos
que se refere a uma "poética" globalizante.
Os modos à mesa, os ritos e as regras que presidem o desenrolar do fato culinário
remetem à magia, à religião e ao cosmo. É nesse sentido que se pode falar, a seu propósito, de elo
de comunicação específica. É nesse sentido também que o comer foi frequentemente designado
como um investimento privilegiado do sexo. A orgia e as bacanais estão aí para indicá-lo, assim
como, aliás, as ceias cristãs, de um modo eufêmico. A forte carga erótica do comer e do beber faz
deles a mediação ritual por excelência para que se enfrente coletivamente a angústia do tempo
que passa.
REFERÊNCIAS
BARTHES, R., "Pour une psycho-sociologie de l’alimentation contemporaine". In: Cahiers des
Annales n. 28, Pour une histoire de l'alimentation. A. Colin, 1970.
CHATELET, N. Le corps à corps culinaire. Seuil, 1977.
DUPONT, F. Le plaisir et la loi. Maspéro, 1977.
LANGE, F. Manger ou les jeux et les creux du plat, Seuil, 1975.
MOULIN, L. L’Europe à table. Bruxelas, Elsevier.

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Mesa, lugar de Comunicação (Michel Maffesoli)

  • 1. Mesa, lugar de comunicação1 Michel Maffesoli (Université de Paris-Decartes) Fala-se do comer como um modo de enfrentar a morte, mas ele passa, antes, pelo confronto com os outros. Face à lógica do tempo e ao desamparo que a morte ocasiona, trata-se, pelo espetáculo, de afirmar ao seu meio social, aos amigos ou aos inimigos, a continuidade da fama dessa cerimônia, desse grande momento, e destinada a subsistir. Os ritos religiosos (pagãos ou cristãos), locais ou folclóricos, passam sempre por disputas gastronômicas. As famílias de um mesmo vilarejo lançam-se em verdadeiros desafios culinários, vencendo aquela que atuar com mais requinte. Encontra-se o mesmo desafio de vilarejo em vilarejo. A festa do santo padroeiro de cada povoado da Sicília motiva uma profusão de espetáculos parcialmente culinários, em que os habitantes dos povoados vizinhos observam com atenção para, assim, medirem o que eles não conseguiram fazer ou apreciar sua evidente superioridade. L. Moulin (pg. 80) relata que tais "disputas gulosas" aconteciam no Peru entre as diversas ordens religiosas nos dias de festa. "Cada ordem tinha sua especialidade, cujo segredo era ciosamente guardado" e que entrava em concorrência desmedida com a especialidade da ordem vizinha. Pode-se imaginar que a influência espiritual de determinada ordem era totalmente ligada à qualidade do seu bolinho recheado de creme ao mel ou a de outra guloseima. É divertido pensar que a frequência ao sermão dominical de determinado convento dependia da excelência de seus cozinheiros! O desafio, por vezes, podia chegar a um nível absurdo, e a tradição histórica ou romanesca estima que essas refeições-desafios prosseguiam até a morte de um dos protagonistas. No romance de Gabriel Garcia Marquez Cem anos de solidão, um dos heróis da família Buendía pode perseguir até a morte, dessa maneira, alguns presunçosos dos vilarejos vizinhos, antes dele mesmo capitular. O teatral atinge seu apogeu, e a refeição não é nada mais que um puro espetáculo, que se passa em um palco e só vale pela qualidade de seus atores. Sem atingir sempre essa forma pura, a refeição – expressão da provocação – deve ser compreendida como um fato social que lembra a todos que o que se chama sociedade é uma ordem fundada na diferença. De fato, a refeição conduz à comunicação, mas esta se consolida frequentemente no conflito, sendo também a refeição um conflito. Aí está o sentido da provocação, lembrando o apólogo de Juvenal, que descreve o pobre Trebus comendo na casa do rico Virion. Enquanto este bebia um bom vinho numa rica taca de âmbar, o primeiro, todo satisfeito, recebia vinho de má qualidade em uma xícara rachada. Claro, trata-se de um exagero, mas esse exagero reflete um aspecto da refeição: fazer ostentação de sua riqueza. Durante a refeição, as toalhas, os talheres, o lugar dos convidados, os ritos a mesa, as conversas e o serviço criam, ao mesmo tempo, proximidade e distância: senta-se junto, mas de um modo que fortalece a diferença e a hierarquia (Coincidentia oppositorum). É isso que ocorre, como adverte um comentarista afeito à arte culinária: ...a refeição é um ato social fundamental, na medida em que oferece a seus parceiros uma experiência impressionante das relações sociais, fixando solidamente a coesão, fazendo momentaneamente desaparecer as imposições e os desnivelamentos, (e) exacerbando-os (Lange, 1975:39). Nesse sentido, os ritos da refeição são paradigmas de toda ritualização social. À sua maneira, feita de razão e de utopia ("hiper-racionalidade"), Fourier analisa a função do desafio na estruturação da harmonia. Os salgadinhos, as omeletes variadas e os cremes doces podem ser armas dessa "guerra gastronômica" da qual fala N. Chatelet. Cada falansteriano esta em busca de 1 Transcrito (pgs 131~136) do livro “Hospitalidade: reflexões e perspectivas”, organizado por Célia Maria de Moraes Dias (Editora Manole – 2002).
  • 2. uma melhoria de cada uma dessas iguarias, e as oferecerá ao seu adversário no término da luta (Chatelet, 1977:142). Vê-se bem como essa "guerra gastronômica" simboliza o conflito social e se torna, por esta razão, momento de sociabilidade. Ao redor desses produtos culinários, todos os falansteriano se confrontam, mas se encontram também. Esses produtos representam momentos de troca. Remete-se a eterna relação de Neikos e de Philia, de quem fala Empédocle de Agrigento, mas por meio do ritual culinário esse conflito antropológico termina em união. A provocação teatralizada que se encontra de maneira mais ou menos nítida em todas as práticas de vizinhança, tende a uma harmonia dinâmica. É nesse sentido que, como arma, os produtos culinários tomam seu lugar no que se pode chamar de trajeto antropológico. Não se pode esquecer que a gastronomia pode ser um meio de sociabilidade, pelo fato de dar lugar à diferença. Ela nunca é uma unanimidade chata e enfadonha; ao contrario, é sempre um confronto mais ou menos violento. Se a mesa pode ser o lugar em que se estabelecem as mais sólidas amizades e os mais suaves laços afetivos, é igualmente o lugar onde se desencadeiam e se manifestam as mais ferozes discórdias. Em torno dela é possível se amar ou se ultrajar. Em suma, a mesa é o trono do ambíguo e perturbador Dionísio, e os efeitos do vinho que este oferece aos homens são muito variados e perfeitamente imprevisíveis. Chega-se ao âmago da contradição do prazer e do desprazer, tão bem explicado pelos gregos. Como nota Dupont, "o banquete é um local ambíguo, fora da lei, mas não fora do mundo da lei" (Dupont, 1977:23). De fato, encontra-se na refeição, na festa do vinho e na expressão do bem-estar, a presença constante da sombra, da face escondida do deus, da discórdia, quer dizer, no sentido mais preciso da morte. Toda essa encenação da refeição – sua teatralidade e sua arrumação – lembra essa ambivalência fundamental. Ela a expõe e, ao mesmo tempo, ao ritualizá-la, tenta estabelecer um acordo, domesticá-la, suavizá-la. É difícil viver a antinomia, a que M. Weber chamava de "a irracionalidade ética do mundo" e os diversos ritos não têm outra função, senão a de se aclimatar a ela. A teatralidade da refeição tem este papel por excelência: unir os contrários. A metáfora da alquimia misteriosa, que é a culinária, está ai para lembrar isso. É por fazer esse papel de mediadora que a mesa vai permitir o conjugar-se. A sociabilidade é possível porque há confronto coletivo com a sombra e com a morte. Comentando as maravilhas do triclínio2 de Trimaldon, Florence Dupont constata que "a mesa não é mais o que equilibra o mundo, é o lugar de todas as confusões, onde se reencontram os mortos, os vivos e os deuses" (Dupont, ibid.: 147). Esse comentário tem importância, mas é possível contestar a autora quando ela nega que essa "confusão" tenha um lado cômico. Parece, ao contrário, que unindo assim, ritual e teatralmente, os vivos e os mortos, os deuses e os homens, a mesa será a expressão perfeita de uma confusão ordenada que é fato do cosmo e, igualmente, fato do social. O cosmo é harmonia tensional. A mesa a teatraliza e serve, assim, de paradigma do ordenamento do social no resto da vida cotidiana. Pode-se mesmo dizer que, pelo fato de a mesa exprimir, por meio dos ritos, a harmonia cósmica, ela permite a comunicação. É nesse sentido que se pode falar de sua eficácia simbólica. Plutarco notava que "a supressão da alimentação é a dissolução da casa"; dando toda extensão a esse comentário, deve-se completar a afirmação indicando que o que une a mesa é a estruturação social. Sem o alimento, a casa não é nada; sem a mesa, o comércio social é impossível; sem a mesa, que teatraliza a violência das relações, esse comércio se autodestrói e se nega enquanto tal. Aqui, trata-se exatamente do que resulta da refeição e de sua teatralização. O rito, a preparação, o confronto com a morte e o conflito, tudo isto culmina e se esgota na arte do conjugar-se. "A função do banquete é de se tornar agradável aos outros e a si mesmo" – diz ainda Dupont (ibid: 81). É interessante compreender por completo a lógica de tal observação. Aí se vêm ligados os dois aspectos que se tentou esclarecer a propósito da culinária: ela gratifica o corpo permite a troca; à maneira do que é consumido, essas duas funções se esgotam no próprio 2 Refeitório Romano com três ou mais leitos em redor de uma mesa.
  • 3. ato. Nesse sentido, a aparência da refeição é um modelo indispensável do fato social. A comunhão final fica factual, não é jamais conquistada para sempre. É essa precariedade que faz sua força, pois é condição de intensidade. É nessa perspectiva que convém compreender a importância do teatro e a função do ritual dos modos à mesa. Lembrando que o ser humano funciona sobre o efêmero, ele dá início à palavra, ao amor e à comunicação. De fato, nada disso é natural; o mais louco amor passa por um ritual mais ou menos complicado, a sedução é sua expressão mais imediata. E a refeição é uma propedêutica dessa troca simbólica, porque ela se centra na aparência. Na Antiguidade, a tradição platônico-plotiniana, ou ainda aquela oriunda da gnose ou dos diversos mistérios religiosos, mostrou a importância do ritual culinário. Este será reencontrado no declínio do Império Romano, na sociabilidade medieval (leiga ou religiosa) e nas festas da Renascença. No século XIX, o banquete passou a ocupar até mesmo o terreno político. Na atualidade, a refeição, a "comida" e a festa parecem indicar uma imperiosa necessidade de reencontrar uma sociabilidade básica; são indícios de uma troca simbólica que tenta escapar da dominação do poder ou dos diversos "dever-ser". Mas essas diversas buscas iniciais de sociabilidade por meio da refeição exprimem-se sempre em uma aparência, em uma encenação que aponta a fenomenalidade, a estrutura da existência societária. Em um estudo sobre a alimentação contemporânea, R. Barthes observa que os elementos da aparência do alimento, os ritos de hospitalidade, todos os menus da vida cotidiana, a saber, as rodadas de aperitivos, a refeição festiva, os diferentes costumes ligados aos grupos sociais etc., não são somente objetos de consume ou práticas sem importância, mas também constituem o que ele chama um verdadeiro signo, "quer dizer, a unidade funcional de uma estrutura de comunicação". De um ponto de vista antropológico, continua ele, o alimento é a primeira das necessidades, mas por certo essa "necessidade" está fortemente estruturada com o excesso da colheita (Barthes, 1970: 309). É essa estruturação que estabelece a comunicação alimentar, a qual se tentou esclarecer no que se chamou teatralidade. Nesse sentido, a comunicação, o convívio ou a comunhão não são situações anódinas dependentes de um "diálogo" asséptico, ainda mais enaltecido quando e efetivamente impossível. A comunicação, não importa o nome que lhe seja dado, é uma estrutura, quer dizer, ée uma entidade composta de elementos interdependentes e que ultrapassa a consciência dos atores presentes. A comunicação em questão – que se pode revelar no fim desse percurso - não é unicamente verbal, ainda que a palavra a ocupe um bom lugar. É um sistema total, um misto de palavras, de objetos e de gestos que se refere a uma "poética" globalizante. Os modos à mesa, os ritos e as regras que presidem o desenrolar do fato culinário remetem à magia, à religião e ao cosmo. É nesse sentido que se pode falar, a seu propósito, de elo de comunicação específica. É nesse sentido também que o comer foi frequentemente designado como um investimento privilegiado do sexo. A orgia e as bacanais estão aí para indicá-lo, assim como, aliás, as ceias cristãs, de um modo eufêmico. A forte carga erótica do comer e do beber faz deles a mediação ritual por excelência para que se enfrente coletivamente a angústia do tempo que passa. REFERÊNCIAS BARTHES, R., "Pour une psycho-sociologie de l’alimentation contemporaine". In: Cahiers des Annales n. 28, Pour une histoire de l'alimentation. A. Colin, 1970. CHATELET, N. Le corps à corps culinaire. Seuil, 1977. DUPONT, F. Le plaisir et la loi. Maspéro, 1977. LANGE, F. Manger ou les jeux et les creux du plat, Seuil, 1975. MOULIN, L. L’Europe à table. Bruxelas, Elsevier.