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R O M A N C E
UM MAR
DE ROSAS
DIANA NEVES
SINOPSE
UM MAR DE ROSAS
Madalena Soares e Jorge Albuquerque foram
casados durante dezasseis anos e desse casamento
nasceram duas crianças maravilhosas. Sara e
Daniel.
Mas a certa altura, cansada das muitas e mal
disfarçadas traições do marido e de ter sido presa
por um crime cometido por ele, Madalena
surpreende Jorge com um pedido de divórcio.
Uma decisão que afectará toda a família,
nomeadamente Sara, que com doze anos, se
recusa a compreender os motivos que levaram a
sua mãe a expulsar o pai de casa.
A relação entre mãe e filha deteriora-se
gradualmente, e três anos após o divórcio dos
pais, os primeiros sintomas da doença de Sara
começam a manifestar-se. O desejo compulsivo
por sexo, o ódio que sente pela mãe e a
indiferença carinhosa do pai, levam-na a
mergulhar no mundo obscuro da pornografia e da
prostituição em busca de um afecto que julga
perdido.
Quando confrontados com a dura realidade de
terem uma filha ninfomaníaca que se prostitui em
troca de nada, Madalena e Jorge são intimados a
rever todos os erros que cometeram ao longo do
seu casamento. Mas aí impõe-se uma questão:
Não será tarde demais para voltar atrás e
recomeçar de novo?
Não será tarde para eles e também para Sara?
DIANA NEVES
R O M A N C E
UM MAR DE ROSAS
DIANA NEVES
Este romance é baseado em factos reais.
O conteúdo desta obra, inclusive revisão ortográfica, é de responsabilidade
exclusiva do autor.
1ª Edição/2013
2000
O sábado ensolarado deu lugar a uma noite carregada de nuvens que se adensaram
ao longe no horizonte. Parecia que o Outono tinha chegado em força, ditando o fim
de um ciclo que já se vinha arrastando há muitos anos.
De olhos postos na janela, enquanto os primeiros pingos de chuva caíam sobre o
tejadilho, Madalena susteve a respiração. Olhou o seu relógio de pulso e viu que nele
estavam marcadas vinte e quatro horas. Nessa altura, o silêncio da rua foi
interrompido pela chegada de um táxi. O veículo estacionou em frente à sua
moradia, no separador central, por debaixo da mesma fileira de plátanos que durante
anos esteve ali plantada. Dezasseis ao todo.
O tempo em que ela esteve casada com Jorge.
Madalena observou a sua saída do táxi. Jorge trazia, como sempre, o seu sobretudo
cinzento nas mãos e uma pasta castanha por debaixo do braço. De longe, era possível
perceber o seu cansaço. A viagem a Madrid naquele fim-de-semana não poderia ter
vindo numa pior altura. O timing tinha sido péssimo, mas ainda assim, Jorge sabia
que não iria conseguir fugir por muito mais. Era altura de enfrentar os problemas.
Custasse o que custasse.
O motorista ajudou-o com as malas. Ele pagou a corrida, oferecendo-lhe uma boa
gorjeta, ao que o senhor agradeceu com um aperto de mão cordial. Pouco tempo
depois, o advogado arrastou a bagagem e abriu os portões de casa sem saber que a
sua mulher o vigiava por detrás dos cortinados da sala.
Quando abriu a porta, já a noite ia alta, Jorge viu-se confrontado com uma escuridão
avassaladora. O casarão parecia adormecido, ou pelo menos foi essa a sensação que
obteve durante escassos segundos. Com certeza a mulher e os filhos já estariam a
dormir. Mas não foi isso que aconteceu. No momento em que se largou as malas a
um canto do corredor e colocou o sobretudo no bengaleiro, uma luz pálida do
candeeiro acendeu-se junto à entrada.
Jorge apanhou um susto de morte. Era Madalena. A sua mulher.
- Não precisas subir – ela disse-lhe num tom de voz imperioso.
- Pensei que já estivesses a dormir.
- Não ouviste o que eu disse?
- Lena! Nós precisamos conversar…
- Eu já não tenho mais nada para falar contigo, Jorge.
- Eu sei que deveria ter-te contado antes! Ou pelo menos antes que a polícia
descobrisse. Mas a primeira fase das transacções já estava praticamente concluída.
Faltava apenas mais uma remessa e depois íriamos transferir o dinheiro para uma
outra conta. Fecharíamos aquela que estava em teu nome e caso ficaria encerrado.
Mas a polícia descobriu tudo. Com certeza, deve ter sido alguma denúncia, alguma
vingança, sei lá… - Jorge aproximou-se lentamente dela. – Mas o importante é que
acabou tudo bem. Já falei com o Duarte esta tarde e ele garantiu-me que o caso será
abafado e o teu nome ilibado desta história toda.
Enquanto ouvia o discurso do marido, alguém a quem dedicou dezasseis anos da
sua vida, Madalena não quis acreditar no que ele se tinha transformado. Um homem
arrogante, presunçoso e cheio de si. Crente de que as suas acções não tinham
consequências e de que poderia livrar-se das suas responsabilidades sempre que
quisesse. Jorge não iria mudar. Nunca. Por mais anos que despendesse naquele
casamento fracassado, ele não iria mudar. A luta estava perdida. Para Madalena, não
existiam forças e nem vontade para salvar aquela relação doentia.
- Tens as tuas malas ali na sala – ela disse por fim.
- Que malas?! – Jorge afrouxou o nó na gravata sem acreditar no que tinha ouvido.
- As malas que te fiz esta tarde. Enfiei lá dentro todas as tuas tralhas! Só tens que
pegar nelas e sair desta casa.
- Estás louca, Lena?! De onde é que foste tirar uma idiotice dessas?
- O nosso casamento acabou, Jorge! Eu quero-te fora desta casa e quero-te também
fora da minha vida! Para sempre…
Jorge soltou uma risada seca como se não quisesse acreditar nas palavras da sua
mulher. Aliás, recusava-se a acreditar naquela encenação feita por Madalena. Já a
tinha visto inúmeras vezes sempre que ela lhe descobria uma traição ou outra
mentira mal contada. Foram dezasseis anos do mesmo. Dezasseis anos em que ela o
perdoou e o deixou voltar a um casamento que, apesar de não ser perfeito, conferia-
lhes toda a segurança de que necessitavam. Então porque é que desta vez seria
diferente? Não havia e nem nunca houve motivos para ser diferente.
- Vou tomar um banho e dormir no quarto de hóspedes! Amanhã falamos… - Jorge
tentou subir as escadas que ligavam o rés-do-chão ao primeiro piso.
- Não estás a levar a sério aquilo que te estou a dizer, não é?! – Madalena impediu-o
de subir.
- Lena! Eu estou cansado, aliás, estou exausto! O congresso em Madrid não correu
nada bem. Já disse que amanhã falamos…
- E eu já disse que não vais subir – ela gritou, raivosa. – Será que ainda não
percebeste, Jorge?! Será que vou ter que te dizer com todas as letras que o nosso
casamento acabou? ACABOU – Madalena voltou a gritar-lhe aos ouvidos. – Chegou
ao fim, aliás, a minha paciência contigo chegou ao fim. E o meu amor por ti também.
Eu já não te amo mais! Há muito tempo que não te amo mais…
Jorge fechou os olhos e balançou a cabeça sem querer acreditar que aquilo estava
realmente a acontecer. Depois de um congresso de setenta e duas horas, de ter
perdido um voo pela manhã e da notícia que obteve do seu escritório sobre as
investigações da polícia judiciária às suas contas bancárias, ainda tinha que lidar com
as crises sentimentais da sua mulher.
- Eu sei que estás irritada por causa do que aconteceu. Assumo a minha culpa! Mas
já passou, Lena! Já te disse que não vais ser acusada de nada. O Duarte e eu vamos
tratar de tudo…
Madalena sentiu uma lágrima cair-lhe no rosto. – Acabou, Jorge! Desta vez é a
sério…
- Tudo o que fiz foi para o teu bem e para o bem dos nossos filhos.
- Não! Tudo o que fizeste foi para o teu bem. Nunca pensaste em mim, na Sara ou no
Daniel! Durante todos estes anos, estiveste muito mais interessado nos teus negócios
e nas tuas conquistas profissionais. Estiveste também muito mais interessado em
arranjar várias amantes e em humilhar-me com elas… - os olhos de Madalena
encheram-se de lágrimas. – E até ontem, eu engoli tudo porque achava que era
preferível viver este casamento de fachada do que privar a Sara e o Daniel de terem
um pai. Achei que era preferível abrir mão da minha felicidade, para que todos à
minha volta fossem felizes. E eu até estava disposta a fazer isso, Jorge! Estava
realmente disposta a viver miseravelmente para o resto da minha vida apenas para
ver os meus filhos felizes. Mas ontem foi a gota de água. Acabou-se tudo! Acabou-se
o pingo de respeito que eu ainda sentia por ti, o pingo de admiração e também o
pingo de amor…
- Pois eu ainda te amo.
- Não! Não amas – Madalena disse-lhe num tom deveras calmo. – Agora sai da
minha casa! Desaparece e não voltes mais, porque desta vez, eu não te vou aceitar de
volta…
- Eu não vou sair desta casa, ouviste bem?! – Jorge gritou pela primeira vez,
acordando os filhos no piso de cima. – Sabes qual é o teu problema, Lena? Passares a
vida enfiada no teu mundo de fantasia sem realmente saber o que se passa lá fora!
Ou pensas o quê?! Pensas que teríamos metade das coisas que temos se eu
continuasse a trabalhar naquela firma de advogados em Benfica onde me enfiei a
ganhar o ordenado mínimo e a trabalhar como um condenado para que os outros
advogados mais experientes me ficassem com os louros? Achas que teríamos esta
casa? Diz lá! Achas que poderíamos pagar os colégios dos miúdos? As nossas férias?
As roupas, as jóias e tudo o que compras com os cartões de crédito que te ofereço de
mão beijada? Não! Nunca poderias ter a vida que tens se não fosse por minha causa.
Ao contrário do que possas pensar, os bens materiais compram-se com dinheiro e
não com honestidade. E hoje em dia, já não se ganha dinheiro com honestidade. Lá
fora, no mundo real, as pessoas lutam com unhas e dentes por um ordenado ao final
do mês porque sabem que o dinheiro não cai do céu. E tu devias dar graças a Deus
por não ter que lutar por nada. Devias agradecer de joelhos a vida que eu te
ofereço…
- Uma vida que eu não quero mais – Madalena cortou-lhe as palavras com um grito
agudo.
- Até ontem querias – Jorge enfrentou-a perto das escadas. – Por isso pensa bem! Não
faças nada do qual te possas vir a arrepender mais tarde.
- Eu não me vou arrepender, Jorge! Até porque prefiro morrer do que continuar
casada contigo.
Jorge foi o primeiro a aperceber-se da presença da filha, já que Madalena, por estar
de costas, não viu expressão assustada de Sara com as mãos suspensas sobre o
corrimão das escadas. A jovem ouviu a discussão dos pais e a frase preemptória da
mãe: Prefiro morrer do que continuar casada contigo.
E não foi preciso mais nada para que Sara percebesse que o casamento dos pais
estava irremediavelmente arruinado. Para sempre.
- Sara… - Jorge tentou antecipar-se à filha, mas foi tarde demais.
Sara desapareceu das escadas assim que os seus olhos se cruzaram com os da mãe.
Trancou-se no quarto, batendo a porta com violência. O barulho que se ouviu foi
absolutamente ensurdecedor e deixou Jorge e Madalena de olhos postos um no
outro. Como chegaram àquele ponto, perguntaram-se em silêncio. O que aconteceu
àquele casamento? Ao amor e ao respeito que um dia sentiram um pelo outro? O que
foi feito a todos aqueles sentimentos que outrora pareceram tão reais?
- Tens as tuas malas ali na sala! Quando saíres, fecha a porta e deixa a chave…
Proferidas estas últimas palavras, Madalena subiu as escadas lentamente, levada por
uma falsa sensação de liberdade. Estava livre, foi o que pensou. Finalmente livre.
Anos e anos de desespero, angústia e sofrimento tinham sido deixados para trás,
enquanto a sua figura se desvanecia perante o olhar perplêxo de Jorge.
O advogado não soube muito bem porquê, mas subitamente um grande nó
atravessou-lhe a garganta. Como se aquela fosse, de facto, a última vez que pisava
aquele corredor.
2003
As chuvas torrenciais não a deixaram dormir naquela noite. Madalena ouviu por
diversas vezes estouros violentos de trovões e relâmpagos a lacerar os estores das
janelas. O despertador tocou ruidosamente as seis horas em ponto, assinalando o
término do seu descanso. Chegara a hora de se levantar, tomar um banho, vestir-se e
preparar os filhos para a escola. Era essa a rotina que mantinha há pelo menos três
anos desde que se separou do marido. Intitulava-se agora uma mulher divorciada.
A separação foi difícil e traumática, especialmente por causa das crianças que de
uma hora para a outra viram o pai sair de casa com três malas na mão. Nunca mais
voltou, ao contrário do que todos esperavam, e ao contrário do que ele próprio
esperava. Madalena manteve-se resoluta em não aceitá-lo de volta. Passaram-se
meses e os papéis do divórcio foram assinados citando diferenças irreconciliáveis.
Um motivo muito torpe para todas as angústias e humilhações a que ela se viu
submetida durante os dezasseis anos em que esteve casada com Jorge. Agora com
quarenta anos restava-lhe recomeçar do zero.
Os três anos que se seguiram ao divórcio não foram fáceis. Os filhos reagiram mal à
separação. Sara especialmente. Desde o dia em que o pai saiu de casa, a jovem
fechou-se em sete copas e destilou todo o seu ódio e rancor contra a mãe.
Culpabilizava-a por tudo. Pelo término da família, por todos os fins-de-semana em
que se via obrigada a fazer as malas e partir para a nova casa do pai, pelas estranhas
comemorações no Natal, Ano Novo, aniversários e outras datas festivas. E por não
saber realmente a quem pertencia. Tudo era motivo para implicações e discussões. A
menina doce que vivia agarrada à saia da mãe transfornou-se numa jovem infeliz e
amargurada.
Um ano depois da assinatura do divórcio, a família sofreu um outro abalo. Leonor, a
mãe de Madalena, recebeu o diagnóstico de que sofria de um cranco nos intestinos
em estado avançado. Cancro, esse, que lhe permitiu desfrutar de apenas mais seis
meses de vida. Afonso, o marido de Leonor, foi o que mais sofreu com a sua morte.
Leonor deixou igualmente um outro problema quando faleceu. A sua floricultura.
Um negócio que mantinha há mais de vinte anos e que se tornou na grande fonte de
rendimento aquando da reforma do marido da carreira militar.
Manter o negócio ou fechar a loja, foi este o grande dilema de Madalena durante as
semanas que seguiram à morte da mãe. Ela pensava que não era capaz. Nunca
dirigira nada em toda a sua vida e não estava sequer familiarizada com aquele
negócio. Durante os anos em que esteve casada com Jorge e depois do nascimento
dos filhos, Madalena deixou de trabalhar. Dedicou-se única e exclusivamente à casa e
às crianças, passando a maior parte do tempo submersa nos afazeres domésticos.
Esqueceu-se de que também poderia ter uma vida própria e fazer algo de útil à
sociedade.
Mediante o aconselhamento do pai, de resto uma das poucas pessoas que sempre
acreditou nas suas capacidades, Madalena decidiu aceitar o desafio de reerguer a
floricultura da sua mãe. Dotou-a de um novo fôlego e de uma nova acuidade visual
graças à preciosa ajuda da sua melhor amiga, Alice Martins.
O negócio corria bem. Em pouco tempo, foi possível contratar duas novas
funcionárias e abrir uma segunda loja no centro da cidade, onde muitas vezes
Madalena se revezava com Alice. Todos os dias surgiam aniversários, casamentos e
outras datas comemorativas celebradas com a compra de flores. Não era um negócio
fútil, ao contrário do que a maioria das pessoas poderia pensar, ou melhor, ao
contrário do que o ex-marido de Madalena poderia pensar. Era um negócio sério que
provinha o sustento de várias pessoas, incluindo o dela, que desde o seu divórcio
com Jorge recusou-se a receber um cêntimo do dinheiro sujo que o ex-marido
ganhava a defender banqueiros, empresários e políticos corruptos.
Assim, o tempo foi passando e cicatrizou algumas feridas que pareciam incuráveis.
Os cabelos castanhos de Madalena, ligeiramente aclarados, cresceram, e os olhos cor
de mel voltaram a brilhar de uma forma diferente. Menos infelizes, decerto.
Conseguiu igualmente manter a sua excelente forma física tamanho trinta e seis, com
um ventre liso, braços tonificados e seios arrebitados.
Madalena possuia todas as características de uma mulher atraente, embora não se
considerasse especialmente bonita. Tinha dias. Dias em que se conseguia ver ao
espelho e descobrir alguns traços que não se perderam durante a sua juventude,
como as maçãs do rosto salientes, as sobrancelhas perfeitamente delineadas e os
lábios finos. Apesar de tudo, o tempo tinha sido generoso consigo. Nunca engordou.
Nem mesmo aquando do nascimento dos filhos. A amamentação encarregou-se de
lhe retirar os dez e os quinze quilos ganhos nas suas duas gravidezes.
Naquela manhã, tal como sempre, Madalena apressou-se a pôr a mesa do pequeno-
almoço. Preparou um café para si, bebeu-o num só gole e aproveitou os minutos
seguintes para servir os filhos, que arrastados pela lentidão matinal, sentaram-se à
mesa e aguardaram pacientemente a chegada do leite, dos cereais e das torradas.
Algum tempo depois, Madalena, Daniel e Sara saíram de casa às pressas em
direcção ao carro estacionado na garagem. O céu continuava nublado com indícios
de que provavelmente iria chover durante a manhã. As previsões metereológicas não
apontavam melhorias nos próximos dias.
Assim que Madalena tirou o carro da garagem em marcha atrás, Sara enfiou-se no
banco da frente e Daniel entrou pela porta traseira, depois de sem querer ter pisado
uma poça de água.
A viagem foi feita em silêncio ao som das primeiras notícias na rádio, e quando deu
por si, a chuva caía tão forte que já quase não era possível o limpa-pára-brisas varrer
toda a água. Madalena abrandou então a marcha e manteve-se na via de trânsito
mais à direita. Diminuiu o volume do rádio e olhou de soslaio para a filha. Sara
encontrava-se mais uma vez com aqueles malditos auscultadores nos ouvidos.
- Não era hoje que ias ter um teste? – Madalena interrompeu o silêncio
constrangedor. – Ouviste-me!?
- O que foi?! – Sara tirou os auscultadores.
- Perguntei se não era hoje que ias ter um teste.
- Sim – a jovem suspirou.
- Estudaste?
- Não sei! Acho que sim.
- Como não sabes!? Ou se estuda ou não se estuda! Ninguém acha que não sabe se
estudou.
Sara voltou a brindá-la com um longo silêncio e um suspiro entediado.
- Estudei.
- Esta semana não te vi com um único livro na mão.
- É natural! Não andamos juntas vinte e quatro horas por dia. Não te passou pela
cabeça que talvez eu possa ter estudado enquanto não estavas em casa?
- Sara! Não me respondas nesse tom! Eu não te admito.
Madalena apoiou a mão sobre a caixa de velocidades com uma expressão
contrariada, esperando que o sinal vermelho passasse a verde. Percebeu que estava a
ser cada vez mais difícil manter um diálogo decente com a sua filha. Sara dirigia-se a
si sempre com altivez, irritabilidade e com aquela expressão provocadora de quem
tudo sabia. Era preciso uma paciência de santo para a aturar.
- Mãe… – Daniel esgueirou o pescoço em direcção aos bancos da frente. – Vamos
passar este fim-de-semana à casa do pai?
- Ainda não sei – Madalena passou a mão pela nuca. – Ele ainda não ligou a dizer
nada.
- Deixei lá a minha Playstation! Preciso ir buscá-la.
- Sabes que eu até acho que foi bom teres esquecido maldito jogo na casa do teu pai!?
Assim pelo menos esta semana passaste menos tempo em frente à televisão e
estudaste mais. Devias esquecê-la outras vezes para ver se me consegues levantar as
notas a Português.
- Se o pai não nos vier buscar, eu peço-lhe para me trazer a minha Playstation! Não
passo mais uma semana sem ela, senão fujo de casa…
- És mesmo parvo - Sara empurrou o irmão contra o banco de trás. – Foges de casa e
vais para onde? Para debaixo da ponte!?
Madalena seguiu caminho no meio do trânsito infernal da segunda circular. Por
sorte, tinha tempo. Saíra de casa com antecedência prevendo que uma situação
dessas pudesse acontecer. A primeira paragem, por ser a mais próxima, foi o colégio
de Sara.
- Boa sorte – ela disse quando a filha saiu do carro com a mochila às costas.
- Para quê?
- Oras, para quê?! Para o teste.
- Não precisas desejar-me sorte.
- Vou torcer por ti.
- Já disse que não é preciso.
Sara afastou-se do carro sem olhar para trás e entrou no colégio debaixo de uma
chuva miudinha. Não abriu sequer o chapéu que a mãe obrigou a levar consigo. Em
vez disso, atravessou o pátio da escola a correr, afundando propositadamente os pés
em grandes poças de água.
Ao vê-la entrar no pavilhão principal, Madalena encolheu os ombros e respirou
fundo. De facto, ninguém a podia acusar de não tentar melhorar a relação com a sua
filha. Talvez um dia Sara conseguisse reconhecer o seu esforço. De qualquer maneira,
era bom poder continuar a sonhar com isso.
Uma hora foi o tempo que Madalena precisou para deixar o filho mais novo na
escola e dirigir-se até a uma das suas floriculturas. Foi a primeira a chegar ao local e
fê-lo pontualmente quinze minutos antes das dez. Ao abrir a porta, surgiu-lhe como
sempre a visão assustadora da correspondência acumulada ao longo do fim-de-
semana. Abaixou-se e alinhou as cartas com um suspiro. Água. Seguro. Publicidade.
Publicidade. Realmente nada a que já não estivesse habituada durante os três anos
em que dirigia aquele negócio.
O espaço era amplo e iluminado. Possuía dois pisos, um armazém e vários
expositores que guardavam todo o tipo de plantas e flores, algumas medicinais e
outras simplesmente decorativas. Encontrava-se localizada na Avenida de Roma,
uma das avenidas mais nobres de Lisboa, e todos os dias recebia clientes de diversos
extratos sociais. O nome MAR DE ROSAS chamava a atenção de todos os que por ali
passavam. Madalena não se podia queixar do negócio. A sua mãe construíra uma
reputação sólida na vizinhança, o que serviu como impulso para continuar e
expandir a floricultura para outras zonas da cidade.
- Olá Madalena! Como estás? Desculpa o atraso – uma das funcionárias entrou pela
loja adentro, afogueada. Desfez-se imediatamente do impermeável que trazia consigo
e também do guarda-chuva destruído pela forte ventania.
- Não faz mal, Joana! Também cheguei há pouco – Madalena mostrou-lhe um sorriso
compreensivo enquanto abria o caixa.
- Está um temporal lá fora! Nem queiras saber como aqui cheguei. Olha para o meu
chapéu! Do jeito como está mais vale pô-lo no lixo.
- Vai-te secar lá dentro antes que apanhes uma constipação.
- Está bem! Dás-me cinco minutos?!
Joana correu ao armazém. Secou-se rapidamente com uma toalha e voltou à loja
pronta para começar mais um dia de trabalho. – A Alice não vem hoje?
- Vai ficar a manhã na outra loja no Areeiro! Só vem à tarde.
O casamento de Sofia Dias estava marcado para dali a quatro meses, e tal como se
era de esperar, foi a sua mãe, Beatriz Dias, a responsável por toda a organização do
evento. O vestido de noiva fora adquirido numa viagem que fizeram a Paris, o local
da boda reservado numa quinta em plena Vila de Sintra, e a igreja escolhida para os
cerca de duzentos e cinquenta convidados do casal era, nada mais, nada menos, que
o majestoso edifício situado em Belém. O Mosteiro dos Jerónimos.
Seria o casamento do ano, ela bradava. Beatriz havia passado anos a sonhar com o
dia em que a sua filha se iria casar. Sempre teve objectivos bem traçados
relativamente ao tipo de genro que pretendia. Um homem educado, rico e de boas
famílias. Alguém que pudesse equiparar-se ao seu nível social e oferecer uma vida
desafogada à sua filha. Para Beatriz, apenas isso importava. Tudo o resto eram
detalhes, como por exemplo, o facto de Sofia não estar apaixonada pelo noivo.
Pormenores. Dizia. O amor vem com o tempo e nem sempre podemos ter tudo
aquilo que queremos. Por vezes, somos obrigados a abrir mão de um grande amor
em prol de uma certa posição social.
Sofia compreendia a sua mãe melhor do que ninguém. Sempre esteve consciente das
privações a que foram obrigadas a passar por culpa das irresponsabilidades do seu
pai que perdeu toda a fortuna em casinos e salões de jogos. Por isso, não lhe queria
seguir as pisadas. Ainda que não amasse o noivo, ela iria casar-se com um homem
rico e ser feliz com os cartões de crédito que ele lhe oferecesse.
No final daquela semana, ao fechar as janelas da sala, Madalena observou uma cena
que já lhe era particularmente familiar. O ex-marido estacionou o carro em frente ao
jardim. Tinham-se passado duas semanas desde a última vez que ele se
comprometeu a buscar os filhos para passar o fim-de-semana. Muito trabalho, foi a
desculpa.
Naquela tarde, ele saiu do carro às pressas. Tentou abrigar-se da chuva miudinha,
utilizando para isso o sobretudo que quase sempre o acompanhava em emergências
como àquela. Depois disso, atravessou a rua e abriu os portões com o mesmo à
vontade de outros tempos. Tempos em que aquela casa ainda continuava a ser sua.
O divórcio não o tinha mudado. Jorge continuava presunçoso, arrogante e com a
estúpida sensação de que tinha o rei na barriga. Mas apesar de todos os defeitos e
dos seus quarenta e dois anos de idade, mantinha-se um homem bem-apessoado.
Possuía cabelos castanhos religiosamente pintados sempre lhe surgiam os primeiros
fios brancos em frente ao espelho, olhos escuros e estatura elevada. Para além disso,
fazia questão de manter-se em forma com visitas regulares ao ginásio.
- Chegaste cedo – Madalena abriu-lhe a porta minutos depois.
- Oito horas! Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos – Jorge alcançou o
relógio de pulso num gesto zombeteiro. – Como reclamas sempre que chego
atrasado…
- Entra!
- Estou com pressa! Os miúdos ainda vão demorar muito?
- Não sei.
Antes de fechar a porta, Madalena voltou a lançar os olhos ao carro de Jorge. Viu
que o motor ainda continuava a trabalhar.
- Tens alguém dentro do carro?
O advogado bem tentou esconder o seu constrangimento quando se viu confrontado
com a perspicácia da ex-mulher, mas na altura não teve como negar.
- Sim! Tenho.
Madalena franziu o sobre olho.
- Uma amiga – ele defendeu-se prontamente.
- Uma amiga!?
- Sim! Uma amiga.
- Escuta Jorge! Eu não quero que ponhas os meus filhos a conviver com as tuas
amigas.
- Lena, não começes com as tuas cenas outra vez! Nós já não somos casados,
lembraste? Não te devo satisfações da minha vida.
- Que seja! Simplesmente, não quero.
- Será que podes ir lá acima despachar os miúdos?
O olhar de Madalena foi peremptório e não deixou outra escolha a Jorge a não ser
sentar-se no sofá e aguardar impacientemente a chegada dos filhos à sala. Estava
cansado de ouvir sermões e acusações sempre que lá ia buscar as crianças a casa. A
ex-mulher nunca lhe facilitou a vida nesse sentido. E o pior é que as coisas não
pareciam estar a melhorar com o tempo.
- Estava a ver que nunca mais – ele disse, recebendo um beijo de Sara e de Daniel
respectivamente quando ambos desceram à sala. – Então!? Já estão prontos?
- Já – Sara colocou a mochila atrás das costas. – Podemos ir?
- Sim! Claro.
- Portem-se bem – Madalena ajudou o filho a vestir o casaco e a enfiar o gorro na
cabeça. – Não fiquem acordados até tarde! Façam os trabalhos de casa e comam todas
as refeições. Ou melhor, obriguem o vosso pai a fazer-vos todas as refeições…
Jorge soltou um novo suspiro e revirou os olhos. Até quando iria continuar a
aguentar aquela provação, foi o que se perguntou em silêncio.
- Está bem, mãe – Daniel anuiu.
- Ligo amanhã para falar com vocês.
- Não precisas ligar – Sara saiu da sala sem olhar para trás. – O pai traz-nos no
domingo à noite! São só dois dias…
- Mesmo assim! Amanhã eu ligo.
- Vamos, Daniel – Jorge desferiu um último olhar à ex-mulher. – Tchau, Lena!
- Tchau, Jorge…
Quando a porta se voltou a fechar, Madalena aproximou-se lentamente da janela da
sala. Entrelaçou os dedos por entre os cortinados brancos, observando a caminhada
do ex-marido e dos filhos em direcção ao carro. Iam animados e felizes.
Jorge levava o braço sobre os ombros de Daniel e Sara encontrava-se abraçada à sua
cintura contando-lhe entre risos e gargalhadas todas as peripécias que lhe
aconteceram nas duas semanas em que não o viu.
No interior da casa, Madalena tentou não sentir ciúmes da proximidade que os
filhos pareciam ter com o pai, especialmente Sara. Em vez disso, forçou um pouco
mais a vista para conseguir vislumbrar os traços físicos da mulher que se encontrava
sentada no banco da frente do carro do ex-marido. Mas na altura foi inútil. A
escuridão da noite impossibilitou-lhe tal tarefa e Jorge não teve cerimónias em
arrancar o carro a alta velocidade depois de ter enfiado as mochilas dos filhos na
bagageira. Nessa altura, a rua tornou a ficar deserta e Madalena deu-se por vencida.
Não seria desta vez que iria conhecer a nova namorada do ex-marido.
Passaram-se quatro meses e o Verão regressou em força. Jorge convidou os filhos
para passar duas semanas no Algarve num novo apartamento que adquiriu, fruto de
um acordo imobiliário bastante rentável. Tal como se era de esperar, Sara e de Daniel
aceitaram o convite sem hesitações. E Madalena, por não ter tido outra alternativa,
acedeu ao desejo das crianças em seguirem viagem com o pai.
As súplicas tornaram-se cada vez mais incessantes com o passar das semanas,
sobretudo por parte de Sara. Eram usuais as suas chantagens, a sua contrariedade e o
seu mau-humor sempre que um desejo seu não era atendido. Por esse motivo,
Madalena resolveu baixar as guardas. Permitiu a viagem e permitiu também, pela
primeira vez, que os filhos convivessem com a nova namorada do pai por mais do
que um fim-de-semana. Chamava-se Vanessa, era alta como uma torre, loira e com as
curvas perfeitas de uma verdadeira top model. O zénite que todos os homens
divorciados acima dos quarenta sonhavam apresentar às suas ex-mulheres.
- Olá, muito prazer - Vanessa estendeu a mão a Madalena, mostrando-lhe um largo
sorriso.
A florista aceitou o cumprimento de uma forma muito menos efusiva. – Prazer!
- Finalmente! Confesso que estava curiosa para a conhecer.
- O sentimento era recíproco – Madalena mentiu.
- O Jorge falou-me muito sobre si.
- Bem, espero…
- Claro que sim – Vanessa riu-se alegremente. – Sabe que eu até estive a dizer ao
Jorge para a levar connosco nestas férias?!
- Eu?!
- Sim! Iria ser divertido passarmos as férias todos juntos.
- A Madalena tem um negócio para gerir, Vanessa – Jorge adiantou-se, temendo que
a sua namorada pronunciasse mais alguma loucura. – Eu disse-te que ela era dona de
uma floricultura, lembraste!?
- Hã, claro…
- Não vou ter férias este ano! Já tinha dito isso ao Jorge – Madalena concluiu a
resposta do ex-marido.
- Não acredito! Bem, deve estar arrasada, não?! Um ano sem férias! Tenho a certeza
absoluta que não aguentava. Iria bater com a cabeça nas paredes.
- Imagino que sim – Madalena não conteve a observação sarcástica.
Era a quinta vez que Madalena observava a entrada dos filhos, da namorada e do ex-
marido no carro, mas era sem sombra de dúvidas a primeira em que não se sentia
minimamente enciumada por ver aquela cena. Vanessa, a tal loira mais alta que uma
torre e com as medidas perfeitas de uma top model, não passava de um corpo
desprovido de cérebro ou qualquer outro sinónimo que pudesse fazer jus à
inteligência humana. E sim. Ela fazia realmente o estilo de Jorge.
- Estás a gozar?! Ela é assim tão burra? – Alice, a sócia e a melhor amiga de Madalena
não resistiu a fazer a pergunta quando ambas jantaram juntas naquela noite.
- Define-me burra.
As duas amigas riram-se animadamente, deliciadas com uma maravilhosa refeição
cozinhada por Madalena. Salmão grelhado e salada de ervas aromáticas a
acompanhar. Em cima da mesa, encontrava-se também uma garrafa de vinho branco
aberta especialmente para a ocasião. A televisão debitava as últimas notícias do dia,
mas isso não foi suficiente para prender a atenção de Madalena e Alice. A conversa
sobre a nova namorada de Jorge era muito mais interessante. Fazia-lhes bem ao ego
gozar com ele, com as suas conquistas furadas e rirem-se às gargalhadas com alguns
comentários menos agradáveis sobre o seu carácter. Não era de todo o melhor
passatempo do mundo, mas pelo menos exigia a Madalena que se relembrasse de
todos os motivos que a fizeram assinar os papéis do divórcio com Jorge.
- Coitado! Será que ele está assim tão desesperado? – Alice perguntou.
- Provavelmente! Mas lá diz o ditado que cada um tem aquilo que merece, não é!?
Pois então! Ele só está a ter aquilo que merece.
- E tu estás a adorar.
- É assim tão evidente? – Madalena arrancou uma nova gargalhada à sua melhor
amiga.
- Mas tens razão! Aliás, tens toda a razão em ficar contente com a desgraça do teu ex-
marido! Especialmente depois de tudo o que ele te fez.
- Nem me digas.
- Podias pelo menos ter ficado com algum dinheiro daquela conta no Chipre – Alice
riu-se, animada.
- Olha, nem com isso fiquei! Só fiquei com os chifres, com os filhos e com esta casa a
cair aos bocados enquanto ele se pavoneia no Algarve com a Vanessa loira burra.
Aliás, se queres realmente que te diga, eu é que sou burra… – Madalena largou a taça
de vinho sobre a mesa. – Burra por ter aguentado tantas traições e ainda acabar com
uma mão à frente e a outra atrás.
- Eu bem te avisei que devias ter feito um negócio mais vantajoso quando assinaste
os papéis do divórcio. Mas tu só quiseste ficar com esta casa! Não foste muito
inteligente nesse aspecto.
Infelizmente, Madalena foi obrigada a concordar com as palavras da sua amiga e
também com a certeza de que tudo continuava igual naquela cozinha. Exactamente
ao que sempre fora.
- Estou sozinha – ela chegou a essa conclusão.
- E eu?! Sou um fantasma?
- Tu sabes bem o que eu quis dizer, Alice! Ele está lá no Algarve, até pode estar com a
mulher mais burra do mundo, mas pelo menos está lá a divertir-se, a viver uma vida
que eu também queria viver e a ser feliz… - Madalena bem tentou controlar as
lágrimas que lhe teimaram em cair dos olhos, mas na altura foi impossível.
- Não penses nisso – Alice tentou animá-la.
- Nunca pensei que um divórcio fosse tão difícil.
- A quem o dizes! Eles avançam com a vida e nós não…
- Mas quando se tem filhos é mil vezes pior! Cheguei à conclusão que nunca me vou
conseguir ver livre do Jorge. Nunca! Por mais que eu não queira, ele vai continuar a
aparecer-me cá em casa todos os fins-de-semana para buscar a Sara e o Daniel. Vai
continuar a fazer parte das nossas vidas. Vão existir sempre situações em que me vou
ter que cruzar com ele por causa das crianças. E eu não pensei nisso quando resolvi
pedir o divórcio. Acreditas que na noite que nos separámos eu cheguei a cometer a
loucura de dizer que o queria fora da minha vida para sempre? Que nunca mais o
queria voltar a ver?
- Isso era um sonho, de facto.
- E o pior de tudo nem é isso – Madalena levou um pedaço de salmão à boca. Estava
frio e ela há muito que já havia perdido o apetite no jantar.
- Ainda há coisa pior do que seres obrigada a conviver com o Jorge para o resto da
tua vida?
- Há! A Sara.
- O que é que tem a Sara?
- Desde que me divorciei do pai, sinto que ela guarda rancores de mim. Pensa que fui
eu que o expulsei cá de casa.
- Isso é porque não sabe o verdadeiro sacana que o pai dela é! Já lhe devias ter
contado a verdade há muito tempo.
- Não posso fazer uma coisa dessas.
- Porque não?!
- Porque não tenho o direito de destruir a boa imagem que ela ainda tem do pai. Não
quero que ela acabe desiludida como eu.
- Podes ficar descansada porque ela não se vai casar com um homem igual ao pai.
Não existem dois Jorges no planeta terra.
- Deus te oiça – Madalena e Alice riram-se alegremente.
- Tu é que devias começar a pensar em refazer a tua vida.
- Eu?! Estás louca, Alice!
- Porque não?! Continuas uma mulher bonita, interessante, inteligente…
- Queres acrescentar mais algum elogio?
- Só não arranjaste ninguém porque ainda não quiseste! Eu bem vejo como o Srº
António olha para ti.
- Que Srº António?!
- O nosso fornecedor do Porto Salvo.
- Estás louca?! O homem tem quase idade para ser meu pai.
- Se calhar é mesmo disso que estás a precisar! De um homem maduro, experiente…
- Não, Alice – Madalena voltou a servir-se de um novo copo de vinho. – O que eu
estou a precisar é de sexo tórrido e o Srº António nunca me vai poder dar um sexo
tórrido. Aliás, como é que eu posso sequer pensar na possibilidade de ter sexo
tórrido com um homem que usa suspensórios e meias brancas!?
Alice não conteve a gargalhada ruidosa.
- Pelo menos aquele idiota do Jorge era bom de cama – Madalena odiou-se por ter
feito aquela confissão. – Raios! Porque é que todos os homens traidores, sem
escrúpulos e miseráveis são bons de cama?!
- Está-lhes no sangue – a resposta de Alice trouxe novas risadas à mesa.
1982
Madalena tinha acabado de sair do ginásio quando entrou numa pequena mercearia
para comprar uma garrafa de água. Esteve duas horas nos treinos de ginástica
acrobática. Uma modalidade que praticava desde os doze anos, em dias alternados,
conjugando-as com aulas de Ballet e também com o curso de Contabilidade.
Os seus dias eram agitados. Não tinha tempo para nada, nem sequer para sair com
as suas amigas e tomar um copo numa esplanada. Mas ainda assim ela gostava de se
manter activa. Com dezanove anos, um corpo escultural e bem definido, Madalena
chamava a atenção de qualquer homem que passasse por si na rua, ainda que sempre
saísse do ginásio com os cabelos desalinhados presos por um rabo-de-cavalo, umas
leggins pretas e um velho pullover cinzento que habitualmente a acompanhava nos
dias mais frios.
Sempre que entrava na mercearia, o dono cumprimentava-a com um sorriso
malicioso. Mexia no bigode e passava as mãos pelos poucos cabelos que ainda lhe
restavam na careca oleosa. Madalena já havia coagitado deixar de lá ir. Incomodava-
a os olhares lascivos daquele homem que tinha quase idade para ser seu pai.
Normalmente conseguia vê-lo através do espelho do expositor de bebidas. Ficava de
olhos fixos, a olhar para o seu rabo e a admirá-la de cima a baixo. Sempre que isso
acontecia, ela puxava o pullover para baixo e abria o expositor às pressas, retirando
uma garrafa de água de um litro e meio. Depois, enchia-se de coragem e dirigia-se
até ao caixa. Ali, escolhia algumas pastilhas de menta para mastigar durante
caminho.
Mas naquela tarde de Verão, um outro cliente passou-lhe à frente. Fê-lo sem
qualquer cuidado, evidenciando alguma pressa. Pagou um maço de cigarros e uma
bebida energética. Era alto, corpulento e bastante atraente. Um rapaz vistoso não
fosse o maldito vício do tabaco. Madalena observou-o de costas sem que ele se
apercebesse da sua existência. Depois de pagar, ele saiu e ela foi então obrigada a
encarar o rosto devasso do dono da mercearia.
- Está toda suada, menina…
- É só a água e as pastilhas, por favor – Madalena ignorou-lhe o comentário menos
próprio.
O eléctrico estava prestes a sair da paragem quando Madalena abandonou a
mercearia, carregada com o seu saco de treinos e com a garrafa de água que
comprara momentos antes. Desesperada, ela correu pela rua como uma louca,
esbarrando-se numa senhora de idade que furiosamente bradou bem alto que os
jovens já não tinham respeito por ninguém.
Madalena desculpou-se sem olhar para trás, mas o eléctrico iniciou a marcha.
Parecia uma causa perdida, até uma mão forte puxá-la para o interior do veículo em
andamento. Ao vê-la pela primeira vez, o desconhecido sorriu e Madalena
reconheceu-o de imediato. Era o rapaz da mercearia.
- Estás bem? – ele perguntou.
- Estou – ela respondeu algo afogueada pela corrida. – Obrigada.
- Foi por pouco.
- Obrigada.
Madalena despediu-se do rapaz e procurou um lugar para se sentar. Caiu na cadeira
com o saco de treinos sobre o colo, depois de ter limpado o suor do rosto e ajeitado os
cabelos desalinhados. Minutos mais tarde, foi-lhe possível recuperar o fôlego e
permitir a saída da senhora que se encontrava sentada ao seu lado.
O lugar voltou a ser rapidamente ocupado pelo mesmo rapaz que a ajudara a
apanhar o eléctrico. O rapaz da mercearia. Assim passou a ser conhecido.
Em poucos instantes, enquanto observava aquela bela jovem de estatura média, o
seu rosto angelical e os longos cabelos que lhe caíam nas costas presos por um rabo-
de-cavalo volumoso, ele sorriu extasiado. Enredou-se nos seus próprios
pensamentos, tentando adivinhar-lhe o nome, os motivos que a levaram a apanhar
aquele eléctrico e o que ela escondia no interior daquele saco de treinos. Admirou
igualmente a perfeição das suas unhas, muito bem arranjadas, pintadas de rosa
clarinho. Não tinha brincos nas orelhas ou qualquer outro acessório no pescoço ou
nas mãos. Apenas a limpidez de um sorriso que sem querer deixou escapar quando
percebeu que ele não parava de olhar para si.
- Sou o Jorge! E tu?
- Madalena – ela respondeu timidamente com um esgar nos lábios.
- Moras aqui perto?
- Mais ou menos.
- Costumas vir muitas vezes para estes lados?
- Mais ou menos.
Jorge esboçou um sorriso malandro perante a pouca vontade de Madalena em
revelar mais detalhes acerca da sua vida pessoal.
- Pois eu estudo aqui perto – ele disse. – Mais ou menos.
Ela não resistiu a esboçar um sorriso encantador.
- Estudas?! Trabalhas? – Jorge voltou a perguntar.
- Estudo.
- O quê?!
- O primeiro ano de contabilidade.
- Então quer dizer que és boa a matemática?
A pergunta de Jorge obrigou-a a esboçar um novo sorriso e a desviar o rosto em
direcção à janela. Madalena não sabia muito bem o porquê, mas a presença daquele
rapaz atraente deixava-a nervosa. Como se ao olhar para ele, ela deixasse
transparecer todos os seus segredos. Como se ao olhar para ele, tudo à sua volta
deixasse de ter importância.
- Pois eu estudo Direito… – Jorge mostrou-lhe o livro que tinha por debaixo do
braço. – Estou quase a terminar o curso.
- Muito bem.
- E tu? Gostas de Contabilidade?
- Sou boa a matemática.
Jorge riu-se alegremente e observou pela primeira vez com atenção o rosto
resplandecente de Madalena. Tinha olhos cor-de-mel, reparou. A pele era clarinha,
sem qualquer borbulha ou ponto negro a apontar. Branca como a de uma boneca de
porcelana. Além disso, os lábios encontravam-se ligeiramente pintados com um
batom clarinho. Eram belos. Os lábios mais belos e perfeitamente delineados que ele
alguma vez vira ao longo dos seus tenros vinte e dois anos de idade.
Apesar de ter ficado bem longe do seu destino, Jorge resolveu descer na mesma
paragem que Madalena. Acompanhou-a ao longo da rua numa conversa animada
onde foi o principal interlocutor. Ele percebeu que Madalena era uma mulher de
poucas palavras. Era tímida, reservada e pensava mil vezes antes de se atrever a abrir
a boca para dizer qualquer coisa. Mas era isso que mais o agradava. O mistério e a
curiosidade que ela despertava em si.
- Não posso dar-me ao luxo de nunca mais te ver – ele afirmou quando cruzaram o
Marquês de Pombal e ela disse que iria cortar caminho em direcção à Rua Gomes
Freire, local onde morava com os pais.
- Foi um prazer conhecer-te, Jorge!
- Espera! Vais-te embora assim? – ele interceptou-a de braços abertos.
- Assim como!?
- Sem me dares um número de contacto.
- Não te posso dar o número da casa dos meus pais.
- Então diz-me onde estudas, ou então, onde é que te posso encontrar outra vez…
Jorge não parecia disposto a deixar escapar a sua presa. Tinha demorado tanto
tempo a esbarrar-se com uma mulher como Madalena, que seria uma loucura deixá-
la fugir sem a certeza de que a tornaria a ver. Ela devia-lhe isso. O prazer de um novo
encontro.
- Faço aulas de ginástica todas as terças, quintas e sextas a uma paragem do local
onde apanhámos hoje o eléctrico.
- Tens a certeza que não me estás a mentir? – Jorge cerrou os olhos e isso provocou
uma gargalhada jovial a Madalena.
- Não! Não estou a mentir.
- Juras?!
- Juro.
- Então vou lá aparecer na próxima terça-feira.
- Está bem.
- A que horas sais das aulas?
- Às seis.
No terceiro encontro que tiveram, Jorge levou Madalena a comer um gelado de
manga e baunilha numa nova gelataria que abrira na Baixa da Cidade. Era um local
frequentado por gente jovem, bem ao estilo anos oitenta, com música rock aos altos
berros. O espaço amplo encontrava-se repleto de clientes, espalhados por dezenas de
mesas decoradas com toalhas vermelhas. Havia uma juke box ligada e empregados
movimentavam-se magistralmente em cima de patins de quatro rodas.
Naquela magnífica tarde de Verão, Madalena trazia um lindo vestido às flores de
alças grossas e calçava umas sandálias rasas. Foi também a primeira vez que Jorge a
viu com os cabelos soltos. Longos, castanhos e volumosos que lhe caíam até o final
das costas. Era Verão. O sol mostrava-se radioso lá fora, mas não havia nenhum
outro lugar no mundo onde ele quisesse estar.
- Conta-me mais coisas sobre ti – Jorge pediu.
- Não tenho nada para contar – ela encolheu os ombros, levando a colher do gelado à
boca.
- Como não?! Toda a gente tem alguma coisa para contar.
- O que é que queres saber?
- O que gostas de fazer nos teus tempos livres?
- Comer gelados – a resposta de Madalena fê-lo rir-se alegremente.
- Só isso?!
- Também gosto de dançar, ler, ir ao cinema…
- Da próxima vez convido-te para irmos ao cinema. Pode ser?
- Pode – ela ofereceu-lhe um doce sorriso.
- Vamos ao São Jorge! E os teus pais?! O que fazem?
- A minha mãe é dona de uma floricultura e o meu pai é militar na marinha.
- O teu pai é militar?! Bem! Então tenho que me pôr a pau, não?! – Jorge fez uma
careta engraçada e Madalena riu-se com ela.
- Só se fizeres alguma coisa de mal.
- Eu não pretendo fazer nada de mal – Jorge encontrou-lhe a mão sobre a mesa.
Mexeu-lhe nos dedos, carinhosamente, e mais tarde brincou com eles. – Ou pelo
menos nada que tu não queiras.
- És tão parvo – Madalena corou de vergonha.
- E tu és a miúda mais gira que já vi até hoje.
Ela voltou a corar e os dois continuaram a comer o gelado, indiferentes aos ponteiros
do relógio. No final, Jorge fez questão de acompanhar Madalena a casa. Subiram a
avenida, envolvidos numa conversa animada. Ele fazia-a rir a gargalhadas com as
suas piadas sem sentido e com o seu jeito brincalhão. Ela derretia-o com o seu sorriso
radiante, com a delicadeza dos seus gestos e com a expressão de menina inocente que
parecia nunca lhe sair do rosto. Eram o par perfeito, conjugavam-se na perfeição e
isso ficou provado quando Jorge se atreveu a segurar-lhe a mão no meio da rua.
Tinha os dedos suados e estava nervoso, mas isso não o impediu de cometer tal
loucura. Queria-a, isso era um facto assente. Mas não de uma forma leviana, como
desejava as outras mulheres com quem se tinha envolvido até então. Madalena era
especial. Diferente de todas as outras raparigas. Não usava roupas malucas, pinturas
berrantes ou unhas postiças, tal como a moda dos anos oitenta ditava. Também não
gostava de sair à noite, fumar ou beber. Era doce. Inocente. Honesta.
- Obrigada por me teres trazido – Madalena abriu a portaria do seu prédio
sorrateiramente, não fosse a sua mãe estar à janela a estender a roupa.
- Não precisas agradecer! Foi um prazer.
- Agora tenho que subir! O meu pai já deve estar quase a chegar! Tchau…
- Espera – Jorge impediu-a de fechar a porta.
- O que foi?!
Jorge ficou pela primeira vez sem fala. Nem se reconheceu. E logo ele que sempre
era despachado com as mulheres. Se as queria, fazia de tudo para as ter. Se não, dava
uma desculpa e ia-se embora. Contudo, com Madalena era diferente. Queria-a tanto,
mas tanto, que as palavras teimavam em sair-lhe da boca. Quando as tentava dizer,
atrapalhava-se todo.
- Estou mesmo a gostar de ti – saiu-lhe essa frase estúpida.
Madalena sorriu e baixou o rosto. A deixa perfeita para que Jorge lhe segurasse o
queixo e o levantasse delicadamente. Observou-a durante vários segundos. Sentiu
por ela um imenso carinho, e por fim, fez o inevitável. O que já deveria ter feito há
muito tempo, nomeadamente desde a primeira vez que a viu naquele électrico.
Beijou-a. Um longo beijo em frente à portaria do prédio, a ouvir os latidos irritantes
da cadela da vizinha do rés-do-chão e a rezar para que o pai de Madalena não
aparecesse ali naquela altura. No final, quando saciou o seu desejo e a abraçou com
força, sentiu-lhe o calor do corpo. Foi então que ela lhe disse baixinho:
- Também gosto de ti.
Tornaram-se namorados oficiais ainda naquela tarde, e desde então nunca mais se
largaram. Com o passar dos meses, Madalena foi descobrindo novas coisas sobre
Jorge. Por ser brincalhão, quase nunca assumia os problemas que o atormentavam. A
falta de dinheiro para pagar os estudos obrigava-o a trabalhar à noite a tempo
parcial. Os pais não o podiam ajudar. Moravam em Braga, no norte do país, e eram
raras as vezes que surgiam possibilidades de lhe enviar quantias monetárias.
Jorge também não pedia. O seu orgulho falava sempre mais alto. Preferia passar
fome a ter que depender de alguém. Aos poucos, Madalena passou a admirá-lo. Os
seus pais também.
Leonor foi a primeira a receber Jorge de braços abertos. Gostou da sua frontalidade e
do seu jeito despachado. Pareceu-lhe um bom homem que nutria um sentimento
sincero pela filha. Já Afonso, o pai de Madalena, mostrou-se reticente com a ideia da
sua única filha ter arranjado um namorado. Para ele, Madalena continuava a ser a
sua menina. Jamais homem algum seria suficientemente bom para ela. Mas a
verdade é que com o tempo, Jorge conseguiu conquistar a confiança do temível
militar. Eram constantes as suas visitas lá a casa. Quando trazia Madalena de algum
passeio, fazia questão de subir e cumprimentar os seus futuros sogros. Chegou
inclusive a brincar com esse facto da última vez que lá foi. Um facto que surpreendeu
todos os presentes e deixou Afonso mais descansado relativamente às intenções
daquele rapaz para com a sua filha.
Quando fizeram um ano de namoro, Madalena recebeu a autorização dos pais para
passar o primeiro fim-de-semana fora de casa. Jorge prometeu levá-la a Braga. A sua
cidade natal. Queria que ela conhecesse os seus pais e queria também oficializar um
compromisso que parecia duradouro. O encontro não poderia ter corrido melhor.
Isabel e Henrique, os pais de Jorge, adoraram Madalena no minuto em que a viram.
Mostraram-se aliviados por ela não ser uma típica rapariga da cidade dotada de
modernismos. Madalena era simpática, simples, honesta e tinha sobretudo objectivos
de vida. O filho soube escolher bem.
Dois meses se passaram. Fazia um belo final de tarde. Algumas pessoas passeavam
pela praia, aproveitando o final do dia para se exercitarem e colocarem a leitura em
dia. Deambulavam também os cães, presos pelas coleiras. Ouviam-se os risos das
crianças e o som maravilhoso das ondas a bater nas rochas da praia.
O Verão estava quase a terminar. As férias também. E em pouco tempo o sol pôs-se
ao longe no horizonte. Na escuridão da noite, já não restava vivalma. A praia
encontrava-se deserta. Apenas Madalena e Jorge permaneciam deitados na areia,
abraçados um ao outro, indiferentes ao adiantado das horas.
- Queres-te casar comigo? – Jorge perguntou com os olhos postos na lua.
- Estás louco – ela riu-se alegremente, retirando-lhe a cabeça do peito.
- Nunca falei tão sério em toda a minha vida – ele sentou-se na areia e encarou a sua
expressão surpresa. – Amo-te! Quero-me casar contigo! Quero que sejas a minha
mulher!
E foi então que Jorge retirou uma pequena caixinha aveludada do bolso. Nesse
instante, os olhos de Madalena brilharam no meio da escuridão, tal como o lindo anel
de noivado que Jorge fez questão de lhe colocar no dedo.
- Aceitas casar-te comigo?
- Sim – Madalena saltou-lhe para o pescoço. – Sim! Sim!
- Amo-te!
- Eu também te amo.
Não havia nenhum outro homem no mundo que a pudesse fazer mais feliz,
Madalena chegou a essa conclusão quando Jorge a tomou nos braços e a deitou na
areia. Era certo. Era real. E parecia não ter fim. Ela viu-se espelhada no rosto dele dali
a vinte anos e Jorge teve a mesma visão.
- Prometo que hoje não vou fugir – Madalena disse-lhe em voz baixa, quase num tom
de murmuro.
- Não vais mesmo? – Jorge entrelaçou-lhe os dedos nos cabelos compridos.
- Não.
Corriam o risco de serem apanhados, ambos sabiam-no bem, mas o desejo falou
mais alto que o bom senso. Sem esperar mais, Jorge desabotoou os primeiros botões
da blusa branca de Madalena e viu-lhe o soutien de rendas. Percebeu que ela se
encontrava nervosa. Tremia por todos os lados e não sabia muito bem o que fazer
com as mãos. Por isso, ele conduziu-a. Do príncipio ao fim, sendo que não foi preciso
muito tempo para que os seus corpos se conjugassem na perfeição.
A partir dessa altura, tudo deixou de ter importância. A timidez de Madalena
dissipou-se e veio ao de cima toda a sensualidade que ela havia escondido a sete
chaves. Uma sensualidade a que apenas Jorge teve acesso naquela noite e que o
deixou à beira da explosão por saber que tinha sido o primeiro homem da sua vida. E
enquanto a manteve sentada sobre o seu colo, agarrado aos longos cabelos castanhos,
sugando-lhe o pescoço como um louco, ele perdeu-se no tempo e no espaço. Pensou
que se morresse ali, provavelmente, morria feliz.
2003
Madalena e Alice abandonaram o veículo da floricultura a menos de vinte e quatro
horas do tão aguardado casamento da filha de Beatriz Dias. A viagem foi
particularmente atribulada. Perderam-se pelo caminho, encontraram uma rua em
obras, demoraram uma eternidade a livrar-se do trânsito, e para piorar a situação,
naquela tarde viram-se mergulhadas num calor de quase quarenta graus.
Alice foi a primeira a abrir as portas da carrinha, trajando uns corsários brancos,
uma t-shirt branca às riscas vermelhas e umas sapatilhas confortáveis para a árdua
tarefa que se adivinhava. Madalena seguiu-lhe os passos. Para aquele dia insólito,
renunciou a arranjar-se. Nem sequer se maquilhou. Levou umas sabrinas rasas,
calças de ganga azuís estreitas e uma blusa às flores algo amassada pela viagem. Os
cabelos encontravam-se soltos e desordenados, com os óculos escuros colocados
estrategicamente sobre a cabeça para os controlar.
Ao saírem da carrinha, as duas floristas depararam-se com uma vista magnífica
sobre o Mosteiro dos Jerónimos. Um dos edifícios mais emblemáticos da cidade de
Lisboa que já contava com inúmeros anos de história. O vento mantinha-se
praticamente inexistente, e o sol, magnífico, queimava os corpos dos turistas que por
ali passavam em grupos extensos, ansiosos por saborear os tradicionais pastéis de
Belém.
- Era aqui onde gostaria de me ter casado – Alice guardou as chaves da carrinha no
bolso das calças.
- Sabes que este mosteiro nunca me disse nada?
- Estás a gozar, não!?
- Verdade – Madalena poisou o primeiro arranjo floral no chão. – Sempre o achei um
pouco sombrio e cinzento.
- E eu que me tive que contentar com uma capelinha em Alvalade.
- Já não é mau – Madalena riu-se alegremente perante o infortunio da melhor amiga.
- Sim! É óptimo! Tão bom que acho que foi por isso que o meu casamento não
demorou muito – Alice limpou o suor na testa. – Bem! Vou lá dentro ver se encontro
alguém minimamente prestável para nos ajudar a tirar estas flores da carrinha.
- O.k.
- Não saias daí!
A demora de Alice levou Madalena a alcançar o seu relógio de pulso para ver as
horas. Viu que nele estavam marcadas treze horas e quarenta e cinco minutos e que o
sol continuava mais abrasador do que nunca. A florista não viu outro remédio a não
ser sentar-se na parte traseira da carrinha, encontrando uma sombra mínima com a
qual se abrigou. Diante da paisagem, embalada pelos Jardins de Belém e pela Torre
imponente, Madalena cruzou os braços e pensou em tudo o que não deveria pensar.
Pensou nos filhos, em como eles se deveriam estar a divertir no Algarve e nas
saudades que sentia deles apesar de apenas se terem passado vinte e quatro horas
desde a última vez que os vira. Era uma mãe galinha, não havia dúvidas. Uma mãe
que não sabia quando dar espaço e privacidade aos filhos, que lhes vasculhava todas
as gavetas numa tentativa desesperada de encontrar algo escabroso e que passava
praticamente todas as horas do dia a pensar neles, isto para não falar da facilidade
quase sobre humana em incluir os seus nomes em quase todas as conversas, até
mesmo com o entregador do gás.
- Trouxe ajuda – ouviu-se finalmente a voz de Alice.
Os olhos de Madalena não conseguiram desviar-se da figura daquele homem. Era
belo, extremamente belo, e trazia consigo um sorriso radiante que a encantou de
imediato. Por instantes, quando o viu pela primeira vez diante de si, Madalena não
acreditou que ele fosse real. Foi preciso algum esforço para se recompor e para fingir
uma estúpida descontracção de quem há muito não sentia o coração disparar na
presença de um ser do sexo masculino. Só Alice a trouxe de volta à realidade.
- Encontrei este senhor simpático lá dentro! Foi o primeiro a oferecer-se para nos
ajudar.
O rapaz forçou-lhes um sorriso cordial.
- Olá!
- Olá – Madalena saltou da babageira e compôs os cabelos desalinhados.
- Já vi que precisam mesmo de ajuda.
- Nem sabe – Alice mostrou-lhe os inúmeros arranjos no interior da carrinha. – Acha
que nos consegue ajudar a levar isto tudo lá para dentro?
- Claro! Mas não me peçam para ajudar na decoração, porque não percebo nada do
assunto! Só sou um dos fotógrafos contratados para a cerimónia.
- Não se preocupe, porque nós também não percebemos nada de decoração.
- Só viemos trazer as flores – Madalena concluiu a resposta de Alice, recuando dois
passos quando o fotógrafo se aproximou da carrinha e levantou o primeiro arranjo
do chão.
- São bonitas – ele disse.
- Obrigada – ela sorriu.
Beatriz Dias recebeu prontamente as duas floristas à entrada da igreja. Vinham
ambas carregadas com arranjos vários florais e suportes, mas não houve tempo para
grandes conversas. Madalena e Alice estavam bastante atrasadas e as flores eram a
parte fundamental da decoração. Sem elas, tudo estaria irremediavelmente perdido.
No interior da igreja encontrava-se a equipa de decoração, em movimentos
frenéticos e apressados, tentando ultimar desesperadamente todos os detalhes do
casamento. Colocavam fitas, velas perfumadas em cantos estratégicos da capela,
pedaços de tule a ligar os bancos do corredor e uma passadeira vermelha enorme até
ao altar. Enquanto isso, na sacristia, a noiva e a mãe do noivo trocavam as últimas
palavras com o padre que iria presidir à cerimónia. Faltavam menos de vinte e
quatro horas para o grande evento. Nada poderia dar errado.
- Trouxemos as flores tal como o combinado – Alice forçou um sorriso a Beatriz.
- Ainda bem! Podem colocá-las junto ao altar que depois os responsáveis da
decoração tratam do resto.
As ordens de Beatriz foram imediatamente obedecidas, não só por Madalena e por
Alice, mas também pelo fotógrafo que teve a amabilidade de as ajudar a tirar todos
os arranjos da carrinha. Fê-lo sem pestanejar ou oferecer qualquer comentário menos
agradável, apesar de aquela tarefa não fazer parte das suas funções. Enquanto
caminhava em direcção à capela com dois grandes arranjos florais nas mãos, um
pouco atrás, Madalena observou-lhe as costas formadas, os ombros largos e as pernas
ligeiramente arqueadas. Chegou à conclusão de que ele não aparentava também ter
mais do que trinta e cinco anos ou tão pouco muitas experiências para contar. O seu
olhar era límpido, genuíno e sincero.
A certa altura, quando o trabalho já ia a meio, uma voz louca e descontrolada entrou
pela igreja adentro. Beatriz foi a primeira a reconhecê-la. Tratava-se da voz do seu
futuro genro.
- Rafael!? O que é que aconteceu contigo, querido? Estás todo desgrenhado, todo
transpirado…
- Aonde é que está a sua filha, Beatriz!? Quero falar com ela agora – ele gritou sem se
importar com a presença das inúmeras pessoas que continuavam a ultimar os
preparativos do seu casamento.
- Tem calma! A Sofia está na sacristia com a tua mãe. As duas estão a falar com o
padre.
- Então vá chamá-la!
- Para quê?!
- Chame a sua filha agora antes que eu perca a minha paciência, Beatriz – ele gritou.
Beatriz nunca vira aquela expressão nos olhos do genro e também nunca pensou que
ele tivesse a coragem de lhe levantar a voz perante a presença de dezenas de pessoas.
Mas para controlar o escândalo, ela resolveu acatar a ordem de Rafael e chamar a sua
filha na sacristia.
O noivo não arredou pé do local. Com as mãos nos bolsos das calças, um olhar
raivoso e uma das pernas a tremer, aguardou impacientemente a chegada da sua
noiva. Ninguém deixou de reparar nele. A sua expressão era assombrosa. Minutos
depois, Sofia chegou ao altar.
- O que é que se passa, amor!?
- Não me chames de amor – o berro de Rafael ecoou por toda a capela, assustando
todos os presentes. – Nunca mais te atrevas a chamar-me de amor, sua ordinária!
- O que é que estás para aí a falar?
- Que eu já descobri tudo.
- Tudo, o quê? – Beatriz, a mãe da noiva, foi a primeira a manifestar-se.
- Não sabia, D. Beatriz?! Por acaso não sabia que a sua filha andava a ter um caso
com um dos nossos amigos? Com certeza que sabia! Até porque o seu único objectivo
sempre foi casar a Joana com um homem rico. Com o primeiro otário que lhe
aparecesse à frente e que tivesse uma conta bancária choruda. Não era esse o vosso
plano? Diga lá! Só que o otário aqui abriu os olhos a tempo – Rafael não se deixou
amolecer pelos olhos chorosos da sua noiva. – E podem crer que não me vão arrancar
nem mais um tostão! Nem a mim e nem à minha família…
- Rafael, tu só podes estar a brincar – Sofia barafustou. – Aliás, não podes estar a falar
a sério! Não podes estar-me a fazer isso a vinte e quatro horas do nosso casamento.
- Será que ainda não percebeste, Sofia!? Será que ainda não percebeste que a tua
máscara caiu diante desta gente toda? Eu já descobri a verdade! Já sei de tudo e nem
adianta sequer inventares mais uma das tuas milagrosas desculpas porque o
Eduardo confessou o vosso caso quando eu o encostei à parede hoje à tarde.
- A culpa foi dele!
- A culpa foi tua – Rafael calou-lhe os argumentos com um berro. – A culpa foi toda
tua! Foste tu que estragaste tudo e agora não adianta fazeres esse ar de arrependida
porque eu já não acredito em mais nenhuma palavra que venha de ti.
- Rafael…
- Estás a ver tudo isto? – Rafael começou por arrancar todas as fitas decorativas
presas nos bancos da capela. – É lixo! Isto tudo é lixo e não vai servir para mais nada.
- Pára – Sofia tentou controlar-lhe os braços furiosos. – Pára com isso!
- Acabou! Já não vai haver porcaria de casamento nenhum! Acabou!
Rafael destruiu tudo o que lhe passou pelas mãos e destruiu também todo o esforço
das pessoas que durante meses trabalharam para o seu casamento. Destruiu velas,
fitas, suportes, arranjos, cartões e até mesmo as flores trazidas por Madalena e Alice.
Possuído por uma fúria descomunal, tudo o que ele queria era extravasar a
vergonha sentida quando descobriu que por cinco anos havia sido constantemente
traído pela sua noiva.
- Rafael, por favor – Sofia chorava desesperada. – Pára com isso!
- Sabes qual era a minha vontade!? Queres realmente saber qual é a minha única
vontade neste momento?
Perante a sua própria incredulidade, Rafael retirou detrás das costas um objecto que
cortou a respiração da sua noiva e a respiração de todas as pessoas que se
encontravam presentes naquela igreja. Uma arma de fogo. Um revolver que foi
apontado em direcção a Sofia e a deixou completamente petrificada.
- A minha vontade é de te matar.
- Rafael! Não…
Tarde demais. Sem pensar nas consequências dos seus actos, Rafael apertou o
gatilho com as mãos a tremer e disparou atabalhoadamente. Um tiro muito pouco
certeiro que permitiu que Sofia se desviasse a tempo e se livrasse de um dos maiores
azares da sua vida. Um azar que consequentemente acertou em cheio no braço de
Alice, fazendo-a cair inanimada junto ao altar.
- Meu Deus, Alice! Alice! Estás bem? – Madalena correu ao encontro da sua melhor
amiga. – Alice!
Nessa altura, um aglomerado de pessoas juntou-se à volta das duas floristas.
- Alguém chame uma ambulância, por favor – Madalena voltou a gritar,
desesperada.
O fotógrafo contratado para a cerimónia foi o primeiro a fazer a chamada, enquanto
Madalena, desesperada e com o rosto lavado em lágrimas, segurou a cabeça da sua
melhor amiga numa tentativa aflita de a manter acordada.
Rafael estava em estado de choque. Tentou aproximar-se da vítima e pediu
desculpas. Nunca fora sua intenção magoar ninguém.
- Você é louco, é o que é – Madalena gritou, insurgindo-se contra ele. – Saia! Saia
daqui!
Apesar dos inúmeros pedidos de desculpa que recebeu por parte dos noivos e das
suas respectivas famílias, enquanto a sua melhor amiga era levada pela equipa de
socorro, Madalena manteve-se resoluta em não aceitar nenhum. Acompanhou Alice
até à entrada do mosteiro e desesperou-se por não poder ajudá-la a suplantar as
terríveis dores que estava a sentir.
- Para onde é que a vão levar? – Madalena perguntou aos socorristas de serviço
quando estes colocaram Alice no interior da ambulância.
- Para o hospital CUF – um deles respondeu, antes de fechar as portas da
ambulância. – Se quiser pode seguir-nos até lá!
Madalena apressou-se em direcção ao carro, apesar de estar mais nervosa do que
nunca. Nem sequer pensou se teria condições de conduzir um automóvel, tamanho o
desejo de estar ao lado de Alice. Por sorte, o fotógrafo que a ajudou a transportar as
flores naquela fatídiga tarde de Julho, disponibilizou-se para digirir a carrinha no seu
lugar. Vinte minutos depois, pararam à frente das portas das Urgências. Ele
imobilizou o veículo e ela saiu esbaforida ao encontro da ambulância.
Alice foi transportada numa maca até à sala de triagens e Madalena barrada pelo
segurança. Era necessário preencher uma ficha de entrada nos serviços da recepção,
ele disse-lhe, e assim, ela não teve outro remédio a não ser acatar as ordens do
segurança. Preencheu os dados de Alice, pelo menos os que sabia, e aguardou que
lhe fossem fornecidas quaisquer informações relativamente ao estado de saúde da
sua amiga. Mas nada lhe foi dito. A única pessoa a aproximar-se de si na sala de
espera foi o fotógrafo quando este conseguiu estacionar a carrinha da floricultura no
parque do hospital.
- E então? Ela já foi atendida? – ele perguntou.
- Levaram-na há pouco lá para dentro – Madalena permitiu que ele se sentasse ao seu
lado. – Mas ainda não sei de nada! Estou à espera que me digam alguma coisa.
- Vai correr tudo bem! Vai ver! Tome as chaves da carrinha.
- Obrigada.
Madalena manteve-se nervosa, sentada numa cadeira perto da janela, de braços
cruzados e com um olhar pensativo. Aguardou impacientemente notícias da sua
melhor amiga. Temia pelo que lhe pudesse acontecer e responsabilizava-se em
silêncio por ter aceitado fornecer as flores para aquele maldito casamento. Nunca o
deveria ter feito. Se soubesse, jamais faria aquele negócio. O dinheiro ganho não
compensava todo o susto e todo o transtorno.
- Ainda não sei o seu nome – o fotógrafo proclamou após um longo silêncio.
- Madalena Soares – ela respondeu. – E você?
- Sérgio Almeida.
- Prazer – apertaram cordialmente as mãos. – Foi muito amável da sua parte ter-me
trazido até cá! Desculpe se ainda não tinha tido a oportunidade de lhe agradecer.
- Não se preocupe com isso.
- Mas se precisar ir embora, por favor…
- Não a vou deixar aqui sozinha – a resposta de Sérgio fê-la esboçar um ligeiro
sorriso.
- Obrigada.
- A sua amiga vai ficar boa, tenho a certeza.
- É o que eu também espero. Raios! Lembrei-me agora! Tenho que fazer uma
chamada.
Madalena encontrou o telemóvel no bolso do casaco e digitou o número da loja.
Precisava avisar à sua funcionária que não iria chegar a tempo do fecho. Durante o
telefonema, também não adiantou muitos detalhes sobre o sucedido. Não quis
assustar Joana ou dar informações erradas, visto os médicos ainda não se terem
pronunciado sobre o estado clínico de Alice. A única coisa que fez foi pedir à sua
funcionária que tratasse de tudo e que levasse a chave de loja, entregando-a na
segunda-feira ao início da manhã.
Quando Madalena desligou a chamada, um médico de serviço entrou na sala.
Trouxe um pequeno bloco de notas nas mãos, e no peito, pendurado na bata, uma
placa identificativa. Pedro Fonseca era o seu nome.
- São os acompanhantes da Srª Alice Martins? – ele perguntou apressadamente.
- Sim, somos – Madalena saltou da cadeira. Sérgio seguiu-lhe os passos. – Como é
que ela está, Drº? É grave?
- Não! Podem ficar descansados! Está tudo bem com a Srª Alice! Por sorte, a bala
atravessou o braço direito de raspão, mas não ficou sequer alojada. Foi mais o susto e
o choque.
- Graças a Deus – Madalena respirou de alívio.
- Já realizámos os primeiros exames e procedemos aos curativos com o devido
enfaixamento do braço! A Srª Alice encontra-se bem agora. Está a descansar e deverá
ter alta amanhã…
O médico saiu da sala logo em seguida, levando consigo o mesmo bloco que trouxe
nas mãos. Não parecia preocupado com o estado de saúde da sua paciente, o que de
certa forma deixou Madalena bem mais aliviada. Era sinal de que estava tudo bem.
De que tudo não tinha passado de um susto, tal como o próprio fizera questão de
frisar.
- Acho que agora podemos ir tomar um café, não?! – Sérgio interrompeu-lhe os
pensamentos. – O pior já passou.
Ela sorriu.
- Sim! Já passou.
Madalena e Sérgio entraram no bar do hospital em silêncio. Na altura, o recinto
encontrava-se praticamente às moscas, com apenas três mesas ocupadas e o olhar
distraído de uma empregada que assistia a um programa na televisão. Minutos
depois, dois cafés e duas garrafas de água foram levados à mesa escolhida por Sérgio
e Madalena.
- Está mais calma? – ele perguntou.
- Agora estou um pouco melhor.
- Eu disse que a sua amiga iria ficar boa.
Madalena sorriu ao ouvir a resposta de Sérgio e encontrou a mesma amabilidade de
volta. Era a primeira vez que se encaravam de frente, menos tensos e com a certeza
de que o final daquela história poderia ter sido muito pior. Sérgio abriu a garrafa de
água num só gesto e Madalena fez o mesmo. Beberam um longo gole e em seguida
degustaram o café.
- Disse-me que era fotógrafo – Madalena poisou a chávena sobre a mesa.
- Sim! Tenho um estúdio de fotografia.
- Deve ser uma profissão interessante.
- Eu acho que é! Ou pelo menos hoje tornou-se…
A resposta de Sérgio arrancou uma leve risada a Madalena. A primeira desde que
chegaram ao hospital. Foi só nesse instante que ele reparou o quanto o seu sorriso era
belo e sincero.
- Concordo.
- E você? Para além de aparecer em casamentos recheada de flores, o que é que faz?
- Digamos que a minha vida é recheada de flores.
- Como assim?!
- Sou proprietária de uma floricultura! Ou melhor, de duas…
- Outra profissão interessante.
- O quê? Vender flores? Nem tanto – Madalena riu-se, encabulada, voltando a beber
um novo gole de café. – Não tem nada de interessante, garanto-lhe!
- Tem a certeza? Se fosse assim tão desinteressante não estaríamos aqui neste
hospital, não acha?!
Madalena sorriu e manteve os braços apoiados sobre a mesa, enquanto as mãos
brincavam com a chávena de café numa tentativa frustrada de fugir aos olhares
insidiosos de Sérgio sobre si. Ele era um homem realmente muito bonito.
- Tem razão – ela concordou após um minuto de silêncio. – A minha profissão é
muito interessante, tal como a sua…
Alice ainda se encontrava um pouco narcotizada pelos analgésicos, mas ciente de
que tinha conseguido escapar de boa. Após uma breve conversa no quarto do
hospital, Madalena despediu-se dela e prometeu uma nova visita assim que o dia
amanhecesse. Já era tarde, Alice disse-lhe. Era melhor ir para casa e descansar pois o
dia havia sido repleto de emoções.
Minutos depois, as portas automáticas voltaram a abrir-se, e por elas, saíram
Madalena e Sérgio no mais completo silêncio. Já passava das vinte e uma horas e a
temperatura começava a baixar. Com o casaco de malha nos braços, Madalena
caminhou lentamente em direcção ao carro. Estava exausta. Cheia de dores nas
pernas e nos braços, para além da enxaqueca irritante que a tinha acompanhado
desde o início da tarde. A única coisa que lhe apetecia na altura era chegar a casa e
cair na cama, tal como Alice lhe aconselhara momentos antes.
- Não precisa de nada? – foi a pergunta de Sérgio quando se aproximaram da
carrinha.
- Acredite que já fez muito por mim – Madalena abriu as portas do automóvel sem
esconder o seu cansaço extremo. – Deixou aqui dentro o seu equipamento
fotográfico.
- Obrigado – ele recebeu a mochila, colocando-a atrás das costas.
- Ai, desculpe! Que parva! Trouxe-me até aqui e eu nem sequer perguntei se queria
uma boleia. Entre! Eu deixo-o em…
- Não, não é preciso! Daqui sigo directamente para casa! Não moro muito longe.
- Tem a certeza? Não me custa nada.
- Está tudo bem! Não se preocupe.
- Bem! Então assim sendo, agradeço-lhe mais uma vez! Fico-lhe a dever uma…
- Quem sabe um dia não lhe venho a cobrar esse favor?
- Sinta-se à vontade para o fazer.
Foi um momento estranho e perturbador quando se despediram com dois beijos
atabalhoados na face. Depois disso, Madalena enfiou-se no interior da carrinha e
colocou o cinto de segurança perante o olhar atento de Sérgio. Sorriram pela última
vez numa despedida não muito desejada. Ele afastou-se do veículo e Madalena
retirou a carrinha do lugar de estacionamento ciente de que nunca mais o voltaria a
ver.
Podia pedir-lhe o número de telefone, de facto. Mas e daí? O que tinham eles em
comum para além de terem assistido a um tiroteio em pleno Mosteiro dos Jerónimos?
Nada. E nem valia a pena criar ilusões ou fazer conjecturas. Se ele não teve o desejo
de lhe pedir o telefone era porque também pensava o mesmo.
Alice abandonou o hospital na manhã seguinte acompanhada por Madalena e pela
sua irmã mais nova. Ficou combinado que a florista ficaria em casa da irmã até se
recuperar dos ferimentos e se sentir pronta para voltar ao trabalho. Madalena exigiu
que a amiga não tivesse qualquer pressa. O importante era que ficasse boa. O
trabalho na floricultura era o menos importante.
Uma semana depois, quando regressou a casa ao final da tarde, Madalena atirou-se
para debaixo do chuveiro sentindo-se exausta, tal como sempre. Os dias na
floricultura tomavam-lhe todo o tempo e também todas as forças. Nunca lhe passou
pela cabeça ser tão difícil gerir um negócio sozinha, e sem a ajuda preciosa de Alice, a
tarefa tornava-se mil vezes mais penosa.
Depois do banho e de vestir uma roupa confortável, Madalena desceu à cozinha.
Confiscou o seu frigorífico, mas a sopa do dia anterior não lhe encheu as vistas.
Também não tinha fome. Preferiu aproveitar aquela noite quente de Verão, descalça
em frente à bancada da cozinha, para se deliciar com um saboroso chá de frutos
silvestres e duas torradas de pão integral. Acompanhou-as com um paté e com uma
revista de decoração de interiores. Um fetiche que a relaxava sempre que se sentia
cansada. Contudo, o seu imaginário decorativo foi interrompido minutos depois
quando o telefone tocou ao fim de três dias de um silêncio ensurdecedor. Ao
reconhecer o remetente, Madalena largou a chávena sobre a bancada e sentiu o seu
coração encher-se de alegria. Eram os seus filhos. Sara e Daniel.
Daniel era o mais animado e também o único que falou sobre os banhos de piscina,
os passeios pela vila e os presentes que a cada duas horas recebia do pai e de Vanessa
Loira Burra – um apelido carinhoso que Madalena encontrou para caracterizar a
nova namorada do ex-marido. Mas quando deixou escapar que os planos da viagem
se tinham alterado graças aos bilhetes que o pai conseguira comprar para Marrocos,
Madalena sentiu os seus olhos esbugalharem de estupefacção.
- Mas não tinha ficado combinado que as férias iriam ser até ao Algarve?
- O pai disse que havia uma promoção espectacular na agência de viagens e que
podíamos prolongar as férias por mais alguns dias.
Madalena passeou pela cozinha, esbaforida, tentando assimilar todas aquelas
informações. – Vocês só podem estar a gozar comigo, não? Daniel! Passa-me o
telefone ao teu pai! Ele está aí ao pé?
- Está.
- Então passa-lhe o telefone agora!
Foram os cinco segundos mais longos da sua vida, mas ainda assim, enquanto
esperava por eles, Madalena não desistiu dos seus intentos em falar com o ex-
marido.
- Sim… – a voz de Jorge veio acompanhada de um longo suspiro.
- Será que eu ouvi bem o que o Daniel disse? Ou será que bati com a cabeça em
algum móvel aqui da cozinha?!
- Lena! Não queiras ser irónica porque isso não faz minimamente o teu estilo.
- Por que raios queres tu levar os meus filhos para Marrocos?
- Nossos filhos! A Sara e o Daniel também são os meus filhos, lembraste?! – Jorge
corrigiu-a.
- Ai agora é que te lembras disso?
- Sinceramente, não percebo qual é o problema de irmos todos a Marrocos. É mesmo
aqui ao lado! Vamos até Espanha e de lá apanhamos o barco…
- Tinhas tudo planeado! Desde o primeiro minuto.
- Não tinha nada planeado – Jorge mentiu. – Mas mesmo que tivesse, agora já não há
como voltar atrás! Já comprei as passagens e não dá para devolver.
- Quer dizer, isto já é um assunto tão resolvido, que nem sequer te passou pela
cabeça pedir a minha autorização? Nem sequer te passou pela cabeça que eu pudesse
estar contra a ideia de levares os meus filhos para um outro país? Por acaso foi a tua
querida namorada quem deu essa ideia?
Jorge riu-se com algum sarcasmo. – Hã, já percebi…
- Percebeste o quê?
- Estás a morrer de ciúmes.
- Eu?!
- Sim! Tu…
- Não sejas ridículo, Jorge.
- Pois eu falei com os nossos filhos e eles mostraram-se muito contentes com a ideia
de conhecer Marrocos.
- Só por cima do meu cadáver.
- Cuidado! Olha que milagres acontecem – Jorge não resistiu a espicaçar a ex-mulher
com uma gargalhada que não foi de todo correspondida. Nessa altura, ele percebeu
que aquele não era o melhor caminho por onde deveria enveredar. – Lena! Eu só te
estou a pedir para que sejas razoável. São só mais duas semanas para além do
estipulado. Voltamos no final de Agosto. Além disso, se as crianças regressassem a
Lisboa, o que é que iriam fazer para além de ficarem em casa sentadas em frente à
televisão enquanto tu vais cuidar das tuas flores!?
- Impressionante como não perdes uma única oportunidade para menosprezar o meu
trabalho.
- Desculpa… – Jorge riu-se num claro tom de deboche. – Não era essa a minha
intenção. Mas pensa no que te estou a dizer! Conhecer Marrocos é uma oportunidade
única que nem todas as crianças conseguem ter. Vá lá! Tu sabes que a Sara e o Daniel
iriam adorar…
Ouviu-se um longo silêncio no outro lado da linha. Era a primeira vez que Madalena
equacionava a proposta do ex-marido. Pelos filhos. Fê-lo unicamente por eles. Não
queria privá-los de desfrutarem de umas férias fantásticas. Algo que nunca poderiam
ter caso voltassem a Lisboa antes da data prevista.
- E quando é que voltavam de Marrocos?
- No final de Agosto! Já te disse! São só mais duas semanas para além do que
tínhamos combinado. Ninguém vai morrer por causa disso, nem mesmo tu! Aliás,
acho que devias aproveitar essas férias para incrementar a tua vida social e esquecer
um pouco o papel de mãe galinha. Aproveita para sair, conhecer novas pessoas.
Aposto que te ia fazer muito bem…
- E se fosses à merda, Jorge!? Já pensaste nisso?
No dia seguinte, enquanto Joana atendia um dos inúmeros clientes que
habitualmente passava pela floricultura, Madalena não deixou de meditar nas
palavras que o seu pai lhe disse na noite anterior. Será que ele tinha razão? Será que
ela não deveria baixar as guardas e tentar entender-se com o ex-marido para o bem
das crianças?
Jorge sempre foi um péssimo marido, isso era um facto, mas como pai fazia o que
podia. Pagava religiosamente todos os meses a pensão de alimentos, telefonava duas
a três vezes por semana para saber como estavam os filhos e sempre que o trabalho
deixava ia buscá-los ao fim-de-semana. Diante de tudo isso, Madalena perguntou-se
se não estaria a ser demasiado intransigente. Era o casamento dos dois que havia
terminado, não a relação de Jorge com os filhos.
Quando terminou de atender o último cliente da manhã, Joana interrompeu os
pensamentos de Madalena e informou-a de que iria aproveitar a hora de almoço para
passar pela farmácia.
- Queres que te traga alguma coisa da rua?
- Não! Não precisas preocupar-te – Madalena manteve-se concentrada na análise da
tabela dos fornecedores. – Quando voltares eu como qualquer coisa ali no café da
esquina.
- Está bem! Vemo-nos daqui a uma hora.
- Até já.
As portas automáticas voltaram a fechar-se quando Joana saiu por elas, mas nem
isso tirou a concentração de Madalena da frente do computador. Era urgente
terminar a tabela dos fornecedores e também anotar os novos preços dos produtos da
floricultura. Para isso, ela muniu-se de uma calculadora, dos seus óculos de leitura e
agradeceu o silêncio que se apoderou da loja numa altura de pouco movimento.
Porém, quando o relógio marcou treze horas e quinze minutos, as portas da loja
voltaram a abrir-se trazendo um perfume inebriante da rua. Era a primeira vez que
Madalena sentia aquele odor e também aquela presença. Levantou o rosto e
reconheceu de imediato o novo cliente que entrou na sua loja. Era ele. Sim. Era ele. O
fotógrafo com quem se cruzou dias antes. Vinha trajado com umas calças de ganga
azuís e uma t-shirt preta, não trazendo mais nada a não ser um sorriso estampado no
rosto e aqueles olhos verdes irresistíveis.
- Olá – ele disse. – Tudo bem?
- Olá… – Madalena desfez-se imediatamente dos óculos de leitura e saiu por detrás
do balcão.
- Ainda se lembra de mim?
- É claro que me lembro! Como é que me poderia esquecer! Sérgio Almeida, não?!
- Exactamente – ele sorriu.
Sérgio lançou os olhos àquele espaço repleto de flores, luz e um encanto fora do
normal. Era sem sombra de dúvidas um lugar admirável que seduzia quem quer que
passasse por ali. Contudo, ao voltar-se novamente para a sua proprietária, o
fotógrafo deu-se conta de que era Madalena quem tornava aquele recanto tão
especial.
- Então este é que é o MAR DE ROSAS?
- Como é que descobriu…?
- A loja?! – Sérgio voltou-se para ela com um sorriso.
- Sim.
- Na carrinha! Estava escrito o endereço e o telefone.
- Claro – Madalena riu-se, envergonhada.
- Então!? Como é que está a sua amiga?
- A Alice?
- Sim! Já saiu do hospital?
- Sim! Ela está bem agora. Está em casa da irmã a recuperar-se e deve voltar ao
trabalho dentro de algumas semanas.
- Fico contente que não lhe tenha acontecido nada de grave.
Sérgio e Madalena voltaram a sorrir de uma forma cúmplice. Ambos sabiam-no
bem. A visita do fotógrafo não foi uma simples coincidência ou sequer a tentativa de
saber como Alice tinha conseguido sobreviver ao tiro que levou no braço. Era muito
mais do que isso. Era a necessidade de a voltar a ver.
- Já almoçou?
- Não – Madalena sorriu. – Estou à espera que a minha funcionária termine a hora de
almoço.
- E quando ela vier, vai almoçar em algum restaurante aqui perto?
- Num café ali na esquina! Como não estou com muita fome, vou comer apenas uma
sandes ou algo assim.
- Então eu convido-a para almoçar comigo.
O convite inesperado de Sérgio deixou-a surpreendida. – Almoçar consigo?
- Sim! Porque não!? Eu ainda tenho que fazer umas compras de um material
fotográfico aqui perto, mas devo estar despachado dentro de trinta minutos. O que é
que me diz? Um almoço e escolhe você o restaurante…
- Eu não sei.
- É só um almoço.
A proposta não poderia ser mais tentadora, de facto, assim como o sorriso que
Sérgio lhe ofereceu em seguida. Raios. Como ele era sedutor e como a fazia sentir-se
como uma verdadeira adolescente. No fundo, Madalena sabia que não deveria
aceitar aquele convite. A atitude mais sensata seria recusá-lo, até porque era evidente
que os dois não tinham absolutamente nada em comum. Sérgio parecia mais novo e
livre de responsabilidades. Tudo nele gritava perigo e excitação. E realmente seria
uma loucura cogitar um almoço de última hora com um homem do qual ela sabia
pouco mais que o nome.
- Posso escolher o restaurante? – Madalena cometeu a loucura de ignorar o seu sexto
sentido.
- Claro que sim.
- Então está bem! Encontramo-nos daqui a trinta minutos num restaurante no final
desta avenida! Chama-se O Sobreiro.
- Acho que já sei qual é.
- O único problema é que eu não me vou poder demorar muito.
- Não faz mal! Contento-me com o tempo que me puder dar.
- Combinado – ela sorriu.
Joana atrasou-se na farmácia e os trinta minutos que Sérgio estipulou para o almoço
rapidamente se transformaram em quarenta. Quando a sua funcionária entrou na
loja, Madalena correu ao armazém para buscar o casaco e a mala. Tenho que ir, foram
as últimas palavras que proferiu a Joana antes de sair disparada pelas portas
automáticas. Depois disso, iniciou uma caminhada interminável pela avenida,
sabendo bem que a sua pressa para almoçar prendia-se com tudo, menos com a fome
que disse sentir.
Quando chegou ao restaurante combinado, Madalena avistou a mesa escolhida por
Sérgio. Ficava no fundo do salão, perto da janela. Ele já se encontrava à sua espera,
mas a expressão séria que tinha no rosto enquanto falava ao telemóvel trouxe-lhe
uma nova hesitação. Devia ou não avançar? Ou pelo contrário! Será que não era
melhor desaparecer e fingir que nunca estivera ali?
O dilema de Madalena teve fim quando Sérgio acenou de longe. Ela correspondeu
de igual forma, forçando-lhe um ligeiro sorriso enquanto caminhava lentamente em
direcção à mesa.
Quando chegou ao seu destino, Sérgio apressou-se a desligar a chamada. Madalena
vinha mais bonita do que nunca, ele reparou. Trajada com um simples vestido
castanho um pouco acima dos joelhos e os cabelos soltos, o que mais saltava à vista
era a sua pele tão branca como a de uma boneca de porcelana.
- Espero não ter interrompido nenhuma conversa importante – ela sentou-se à mesa
com alguma cautela.
- Não, claro que não! Apenas trabalho.
- Ainda bem.
- Tinha combinado uma sessão fotográfica com uma modelo e ela telefonou-me para
saber se a sessão ainda continuava de pé.
- E continua?
- Claro! Normalmente, não costumo voltar atrás quando dou a minha palavra.
- É bom saber isso.
- Bebe alguma coisa? – Sérgio exibiu um sorriso radiante que a contagiou de
imediato.
- Um sumo de manga, por favor!
- Então eu também vou tomar o mesmo.
O almoço com Sérgio revelou-se muito mais agradável do que à partida Madalena
poderia supor. Embalados numa conversa animada, os dois desconhecidos
degustaram a refeição trazida por um dos empregados do restaurante. Pediram
Carpaccio de Vitela como entrada e finalizaram a refeição com uma deliciosa Carne
de porco à Alentejana. E logo Madalena que durante a manhã já se tinha conformado
com a ideia de uma simples sandes mista e de uma sopa no café da esquina. No
entanto, naquela ensolarada tarde de quarta-feira, os seus intentos saíram furados.
Sérgio conseguiu livrá-la da sua rotina entediante.
- Há quanto tempo tem a sua floricultura? – ele perguntou.
- Na verdade, a floricultura era da minha mãe e já existia há muitos anos. Eu apenas
assumi o negócio.
- Deve ser uma mina de ouro, não?!
- Nem tanto! Mas tem um significado especial porque pertenceu à minha mãe. É uma
das poucas lembranças que ainda tenho dela.
- Morreu?!
- Sim! Há dois anos.
- E você ficou à frente do negócio?
- A loja está no nome do meu pai, mas sou eu quem a dirige! Digamos que um ex-
militar da marinha não teria muito jeito para tomar conta de um negócio relacionado
com flores – Madalena e Sérgio riram-se alegremente sem conseguir tirar os olhos um
do outro. – Por isso, resolvemos fazer uma sociedade. Eu tenho quarenta e cinco por
cento, ele tem cinquenta, e a minha amiga, a Alice…
- A que levou um tiro no braço.
- Exactamente – riram-se novamente. – Ela tem cinco por cento.
- E o nome da loja? Foi a sua mãe que escolheu?
- Sim! UM MAR DE ROSAS! Eram as flores que ela mais gostava.
- Deve sentir muita falta dela, não?!
- Todos os dias – Madalena sorriu tristemente. – Mas e você?! Disse-me que tinha um
estúdio fotográfico.
- Sim! Há quatro anos! Com um grande amigo meu que também é meu sócio.
Trabalhamos em parceria e no final dividimos os lucros. Tem sido uma boa
experiência. Ele é um excelente fotógrafo.
- Tenho a certeza que você também é.
- Há quem diga que sim.
Madalena regressou à sua floricultura quarenta minutos depois. Despediu-se de
Sérgio e agradeceu o excelente almoço que este lhe proporcionou. Contudo, o
fotógrafo não parecia disposto a deixá-la partir. Cada assunto, por mais
desinteressante que fosse, era motivo de conversa. E ali permaneceram os dois,
indiferentes ao adiantado das horas como se já se conhecessem há milhares de anos.
Passaram inclusive a tratar-se por tu. No final, Sérgio encheu-se de coragem e pediu
o número de telefone a Madalena. Ela hesitou por breves instantes, mas acabou por
ignorar mais uma vez o seu sexto sentido.
Três dias depois, ele voltou a surpreendê-la com um novo convite. Intimou-a para
um jantar, a dois, num restaurante agradável que ele conhecia. Sábado. Às vinte
horas. Disponibilizava-se para a ir buscar a casa e não aceitava um não como
resposta. Madalena não teve outro remédio a não ser aceitar o convite. Com os filhos
de férias, a sua agenda mantinha-se livre até o final de Agosto. E pela primeira vez,
desde o nascimento das crianças, ela congratulou-se por ter um tempo só para si.
- Comprei-te algumas coisas – Madalena abriu as portas do frigorífico quando o pai a
visitou em casa a poucas horas do seu encontro com Sérgio. – Ponho-te tudo num
saco para levares!
- Não precisavas preocupar-te com isso! Já te disse que me arranjo.
- Estou-te a achar muito magro! Tens a certeza que te estás a alimentar como deve
ser?
- Estou-me a alimentar muito bem se queres que te diga – Afonso acendeu um
cigarro junto à marquise da cozinha.
- De cigarros já estou a ver.
- E existe algum alimento melhor?
- Não brinques com coisas sérias – Madalena continuou a colocar as compras do pai
em dois sacos de plástico. – Já te disse várias vezes que devias deixar de fumar,
especialmente por causa da tua idade.
- Só tenho sessenta e sete e tratas-me como se já tivesse passado dos oitenta.
- Pelo contrário! Eu trato-te como trato o Daniel, porque psicologicamente, ainda nem
chegaste aos dez.
- Está bem – Afonso riu-se alegremente e voltou a levar o cigarro à boca. – Por falar
nos miúdos, como é que eles estão lá de férias com o pai?
- Falei ontem com eles e ainda estavam no Algarve! Só na segunda-feira é que vão
para Marrocos.
- Fizeste bem em deixá-los ir com o Jorge.
- Sinceramente, pai?! Eu não sei.
- A Sara e o Daniel também precisam de estar com o pai.
- O Jorge não é uma boa influência para os miúdos.
- Todo o pai é uma boa influência para os filhos – Afonso cerrou os olhos quando o
fumo do tabaco lhe saiu pelo nariz.
Madalena suspirou fundo e resignou-se à ideia de que o seu pai iria ser para sempre
um eterno aliado de Jorge. Não havia nada a fazer. Apesar de todas as razões que
ditaram o fim do casamento da sua filha e do seu genro, Afonso continuava a nutrir
um carinho especial pelo advogado. Sentia muitas vezes saudades dos tempos em
que partilhavam uma partida de xadrez, um licor nos almoços de família e a eterna
rivalidade futebolística. Afonso torcia pelo Benfica, enquanto Jorge, por ter nascido
no norte, não escondia a sua preferência pelo Futebol Clube do Porto.
- Sabes uma coisa?! – Madalena sentiu-se tentada a revelar um segredo ao seu pai.
- O quê?
- Hoje tenho um jantar.
- Com a Alice?
- Claro que não! A Alice ainda continua com o braço enfaixado desde aquele maldito
dia do casamento. Contei-te a história, não te contei?
- Ela devia era processar o tipo que lhe deu o tiro.
- Parece-me que conseguiram chegar a um acordo.
- Que acordo? – Afonso perguntou, curioso.
- O maluco do homem ofereceu-lhe cento e vinte mil euros apenas para que ela não
apresentasse uma queixa formal à polícia.
- Cento e vinte mil euros?! Bem! Diz-me onde é que este tipo anda para lhe poder
oferecer o meu braço.
- Não sejas parvo, pai! Todo esse dinheiro não compensa o susto e as dores por que a
Alice passou naquele dia.
- Eu sei! Estava a brincar! Mas diz-me lá, minha menina! Disseste que tinhas hoje um
jantar. Posso saber com quem?
- Com um homem – Madalena sorriu maliciosamente.
- Homem!? Que homem?!
- Um amigo! Mas por agora a única coisa que precisas saber é que vou jantar com
uma pessoa muito simpática, inteligente e interessante. Tudo o que o Jorge não é e
nem nunca foi…
- Não estou a gostar nem um pouco dessa história.
- Aqui tens a tuas compras da semana! Leva-as e deixa-me preparar para o meu
grande jantar.
- E onde é que vai ser esse tal grande jantar?
- Ainda não sei! Ele ficou de escolher o restaurante.
- Vê lá o que é que fazes, minha menina – Afonso puxou-lhe o nariz tal como fazia
quando ela era pequena. – Juízo!
Ao ver-se através do espelho do quarto depois de escolhido o centésimo vestido que
lhe passou pelas mãos, Madalena chegou à conclusão que aquela realmente não era a
melhor opção para si. O decote revelava o desespero de uma mulher que já não saía
para jantar com um homem há pelo menos três anos, sendo que essa não era a
primeira impressão que ela queria causar.
Por isso, sem hesitações, Madalena voltou a abrir o roupeiro e encontrou um novo
vestido. Branco. Com um decote à barco. Cintado. Um pouco acima dos joelhos. O
vestido perfeito para uma noite que também prometia ser perfeita. Depois da roupa
escolhida, seguiram-se os cabelos. Naquela noite permaneceram soltos, volumosos e
ligeiramente cacheados. A maquilhagem primou pela simplicidade. Apenas um
batom rosa clarinho, um blush tangerina, rímel e sombra.
Foi nessa altura que a campainha tocou, e sabendo bem quem era a sua visita,
Madalena desceu ao rés-do-chão mergulhada num nervoso miudinho. Ajeitou os
cabelos novamente à frente do espelho da entrada e respirou fundo. Já não havia
como voltar atrás. Era ele.
- Olá! – Sérgio conseguiu desarmá-la com um sorriso.
- Olá…
As calças de ganga e a camisa branca de Sérgio contrastaram com a produção
meticulosa de Madalena.
- Estás lindíssima – ele não conteve o elogio.
- Obrigada – ela disse, abrindo passagem. – Entra!
- Dás-me licença?
- Claro.
Sérgio aceitou o convite e não demorou a chegar à sala, onde avistou uma decoração
simples e sofisticada. Uma nova decoração que Madalena fez questão de produzir
aquando do seu divórcio com Jorge. E sim. Dos antigos móveis comprados pelo ex-
marido não restou absolutamente nada.
- Quem são? – Sérgio alcançou um porta-retratos sobre a mesinha. Nele, encontrava-
se uma fotografia de Sara e Daniel abraçados.
- Os meus filhos – Madalena achou por bem não esconder a verdade.
Sérgio analisou-os com atenção sem esboçar qualquer comentário. Não se apercebeu
sequer do profundo nervosismo demonstrado por Madalena quando esta deixou
escapar que era mãe de duas crianças.
- O.k! Estás oficialmente autorizado a desistir do nosso jantar.
- Porquê!? – Sérgio não percebeu a piada.
- Por nada – ela reconheceu a gafe. – Quer dizer, desculpa! Estava a brincar.
- São bastante parecidos contigo.
- Obrigada! Partindo do pressuposto que isso seja um elogio… – riram-se os dois.
- É claro que é um elogio.
A resposta de Sérgio trouxe um novo silêncio e um sorriso cúmplice que fez
Madalena corar sem querer.
- Talvez fosse melhor irmos andando antes que se faça mais tarde, não?! O que é que
achas? – ela indicou-lhe a saída.
- Claro! Vamos.
- Deixa-me só desligar o gás e as luzes na cozinha.
O restaurante escolhido por Sérgio era simples e casual. Localizava-se numa das
ruas mais movimentadas da cidade, e no seu interior podia-se ver uma quantidade
exorbitante de clientes, o movimento frenético dos funcionários e a música ambiente
em contraste absoluto com o barulho das conversas e da televisão ligada ao fundo do
restaurante. Mas nada disso desviou a atenção de Sérgio. De Madalena, ele tudo
queria saber, e dele, ela fez questão de dissecar todos os pormenores. Soube que
morava sozinho um apartamento nos arredores de Lisboa, nunca fora casado, filhos
não teve, pelo menos que soubesse, e passava a maior parte dos dias enfiado no
estúdio de fotografia que abrira em sociedade com um colega e amigo de curso.
Além disso, era órfão desde os dois anos de idade e o único familiar vivo que lhe
restava era um avô que morava no Alentejo e que ele fazia questão de visitar sempre
que podia.
- Fico feliz por saber que te dás tão bem com o teu avô – Madalena poisou o
guardanapo sobre o colo.
- Só fomos obrigados a nos separar quando vim para Lisboa fazer o curso de
fotografia.
- E vocês vêem-se com muita frequência?
- Não tanto quanto gostaria, mas sempre que tenho algum tempo faço questão de
aparecer por lá… – Sérgio poisou os braços sobre a mesa após o término do jantar.
Sorriu e apoiou o queixo sobre as mãos. – Ele mora numa casinha toda pintada de
azul. É uma casa simples e ele até tem dinheiro para comprar uma melhor, mas o
problema é que é demasiado apegado às lembranças do passado. Especialmente às
lembranças da minha avó e da minha mãe. Diz que jamais seria capaz de abandonar
uma casa onde a mulher deu à luz a própria filha.
- Uau – Madalena exibiu um doce sorriso. – É realmente muito querido da parte dele.
- Quem sabe um dia não te levo lá.
- Eu?!
- Sim! Porque não?
- Confesso que me apanhaste de surpresa.
- Tenho a certeza que irias gostar – Sérgio não se deixou distrair por nada mais
naquele restaurante a não ser pelo sorriso dela. – Sempre que me sinto cansado do
trabalho e quero descansar um pouco, fujo para lá e passo os dias a pescar com o
meu avô.
- Parece-me um programa interessante.
- Podes crer que é! E quando voltamos da pescaria com… um peixe e meio nos
baldes… – Madalena soltou uma gargalhada ruidosa. – Vamos para o quintal e
assamos lá o nosso jantar.
- Eu gostaria muito de conhecer o teu avô. A tua relação com ele parece-se um pouco
com a relação que tenho com o meu pai.
- Verdade?!
- O meu pai também é o meu melhor amigo. Acho que não conseguiria imaginar a
minha vida sem ele.
- Tens ar de menina do papá.
- E sou… – Madalena riu-se alegremente sem perceber o olhar de profundo fascínio
que Sérgio lhe lançou do outro lado da mesa. – Sou mesmo! Confesso que sempre fui
muito mimada pelo meu pai. Talvez por ser filha única, não sei…
- Deve ter sido muito difícil para ele quando a tua mãe morreu, não?!
- Foi a pior fase das nossas vidas.
- Ela morreu do quê?! – Sérgio perguntou com alguma cautela. – Não me chegaste a
contar da outra vez.
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Romance sobre divórcio e seus efeitos na filha

  • 1. R O M A N C E UM MAR DE ROSAS DIANA NEVES
  • 2. SINOPSE UM MAR DE ROSAS Madalena Soares e Jorge Albuquerque foram casados durante dezasseis anos e desse casamento nasceram duas crianças maravilhosas. Sara e Daniel. Mas a certa altura, cansada das muitas e mal disfarçadas traições do marido e de ter sido presa por um crime cometido por ele, Madalena surpreende Jorge com um pedido de divórcio. Uma decisão que afectará toda a família, nomeadamente Sara, que com doze anos, se recusa a compreender os motivos que levaram a sua mãe a expulsar o pai de casa. A relação entre mãe e filha deteriora-se gradualmente, e três anos após o divórcio dos pais, os primeiros sintomas da doença de Sara começam a manifestar-se. O desejo compulsivo por sexo, o ódio que sente pela mãe e a indiferença carinhosa do pai, levam-na a mergulhar no mundo obscuro da pornografia e da prostituição em busca de um afecto que julga perdido. Quando confrontados com a dura realidade de terem uma filha ninfomaníaca que se prostitui em troca de nada, Madalena e Jorge são intimados a rever todos os erros que cometeram ao longo do seu casamento. Mas aí impõe-se uma questão: Não será tarde demais para voltar atrás e recomeçar de novo? Não será tarde para eles e também para Sara? DIANA NEVES
  • 3.
  • 4. R O M A N C E UM MAR DE ROSAS DIANA NEVES
  • 5. Este romance é baseado em factos reais.
  • 6. O conteúdo desta obra, inclusive revisão ortográfica, é de responsabilidade exclusiva do autor. 1ª Edição/2013
  • 7. 2000 O sábado ensolarado deu lugar a uma noite carregada de nuvens que se adensaram ao longe no horizonte. Parecia que o Outono tinha chegado em força, ditando o fim de um ciclo que já se vinha arrastando há muitos anos. De olhos postos na janela, enquanto os primeiros pingos de chuva caíam sobre o tejadilho, Madalena susteve a respiração. Olhou o seu relógio de pulso e viu que nele estavam marcadas vinte e quatro horas. Nessa altura, o silêncio da rua foi interrompido pela chegada de um táxi. O veículo estacionou em frente à sua moradia, no separador central, por debaixo da mesma fileira de plátanos que durante anos esteve ali plantada. Dezasseis ao todo. O tempo em que ela esteve casada com Jorge. Madalena observou a sua saída do táxi. Jorge trazia, como sempre, o seu sobretudo cinzento nas mãos e uma pasta castanha por debaixo do braço. De longe, era possível perceber o seu cansaço. A viagem a Madrid naquele fim-de-semana não poderia ter vindo numa pior altura. O timing tinha sido péssimo, mas ainda assim, Jorge sabia que não iria conseguir fugir por muito mais. Era altura de enfrentar os problemas. Custasse o que custasse. O motorista ajudou-o com as malas. Ele pagou a corrida, oferecendo-lhe uma boa gorjeta, ao que o senhor agradeceu com um aperto de mão cordial. Pouco tempo depois, o advogado arrastou a bagagem e abriu os portões de casa sem saber que a sua mulher o vigiava por detrás dos cortinados da sala. Quando abriu a porta, já a noite ia alta, Jorge viu-se confrontado com uma escuridão avassaladora. O casarão parecia adormecido, ou pelo menos foi essa a sensação que obteve durante escassos segundos. Com certeza a mulher e os filhos já estariam a dormir. Mas não foi isso que aconteceu. No momento em que se largou as malas a um canto do corredor e colocou o sobretudo no bengaleiro, uma luz pálida do candeeiro acendeu-se junto à entrada. Jorge apanhou um susto de morte. Era Madalena. A sua mulher. - Não precisas subir – ela disse-lhe num tom de voz imperioso.
  • 8. - Pensei que já estivesses a dormir. - Não ouviste o que eu disse? - Lena! Nós precisamos conversar… - Eu já não tenho mais nada para falar contigo, Jorge. - Eu sei que deveria ter-te contado antes! Ou pelo menos antes que a polícia descobrisse. Mas a primeira fase das transacções já estava praticamente concluída. Faltava apenas mais uma remessa e depois íriamos transferir o dinheiro para uma outra conta. Fecharíamos aquela que estava em teu nome e caso ficaria encerrado. Mas a polícia descobriu tudo. Com certeza, deve ter sido alguma denúncia, alguma vingança, sei lá… - Jorge aproximou-se lentamente dela. – Mas o importante é que acabou tudo bem. Já falei com o Duarte esta tarde e ele garantiu-me que o caso será abafado e o teu nome ilibado desta história toda. Enquanto ouvia o discurso do marido, alguém a quem dedicou dezasseis anos da sua vida, Madalena não quis acreditar no que ele se tinha transformado. Um homem arrogante, presunçoso e cheio de si. Crente de que as suas acções não tinham consequências e de que poderia livrar-se das suas responsabilidades sempre que quisesse. Jorge não iria mudar. Nunca. Por mais anos que despendesse naquele casamento fracassado, ele não iria mudar. A luta estava perdida. Para Madalena, não existiam forças e nem vontade para salvar aquela relação doentia. - Tens as tuas malas ali na sala – ela disse por fim. - Que malas?! – Jorge afrouxou o nó na gravata sem acreditar no que tinha ouvido. - As malas que te fiz esta tarde. Enfiei lá dentro todas as tuas tralhas! Só tens que pegar nelas e sair desta casa. - Estás louca, Lena?! De onde é que foste tirar uma idiotice dessas? - O nosso casamento acabou, Jorge! Eu quero-te fora desta casa e quero-te também fora da minha vida! Para sempre… Jorge soltou uma risada seca como se não quisesse acreditar nas palavras da sua mulher. Aliás, recusava-se a acreditar naquela encenação feita por Madalena. Já a tinha visto inúmeras vezes sempre que ela lhe descobria uma traição ou outra
  • 9. mentira mal contada. Foram dezasseis anos do mesmo. Dezasseis anos em que ela o perdoou e o deixou voltar a um casamento que, apesar de não ser perfeito, conferia- lhes toda a segurança de que necessitavam. Então porque é que desta vez seria diferente? Não havia e nem nunca houve motivos para ser diferente. - Vou tomar um banho e dormir no quarto de hóspedes! Amanhã falamos… - Jorge tentou subir as escadas que ligavam o rés-do-chão ao primeiro piso. - Não estás a levar a sério aquilo que te estou a dizer, não é?! – Madalena impediu-o de subir. - Lena! Eu estou cansado, aliás, estou exausto! O congresso em Madrid não correu nada bem. Já disse que amanhã falamos… - E eu já disse que não vais subir – ela gritou, raivosa. – Será que ainda não percebeste, Jorge?! Será que vou ter que te dizer com todas as letras que o nosso casamento acabou? ACABOU – Madalena voltou a gritar-lhe aos ouvidos. – Chegou ao fim, aliás, a minha paciência contigo chegou ao fim. E o meu amor por ti também. Eu já não te amo mais! Há muito tempo que não te amo mais… Jorge fechou os olhos e balançou a cabeça sem querer acreditar que aquilo estava realmente a acontecer. Depois de um congresso de setenta e duas horas, de ter perdido um voo pela manhã e da notícia que obteve do seu escritório sobre as investigações da polícia judiciária às suas contas bancárias, ainda tinha que lidar com as crises sentimentais da sua mulher. - Eu sei que estás irritada por causa do que aconteceu. Assumo a minha culpa! Mas já passou, Lena! Já te disse que não vais ser acusada de nada. O Duarte e eu vamos tratar de tudo… Madalena sentiu uma lágrima cair-lhe no rosto. – Acabou, Jorge! Desta vez é a sério… - Tudo o que fiz foi para o teu bem e para o bem dos nossos filhos. - Não! Tudo o que fizeste foi para o teu bem. Nunca pensaste em mim, na Sara ou no Daniel! Durante todos estes anos, estiveste muito mais interessado nos teus negócios e nas tuas conquistas profissionais. Estiveste também muito mais interessado em arranjar várias amantes e em humilhar-me com elas… - os olhos de Madalena encheram-se de lágrimas. – E até ontem, eu engoli tudo porque achava que era
  • 10. preferível viver este casamento de fachada do que privar a Sara e o Daniel de terem um pai. Achei que era preferível abrir mão da minha felicidade, para que todos à minha volta fossem felizes. E eu até estava disposta a fazer isso, Jorge! Estava realmente disposta a viver miseravelmente para o resto da minha vida apenas para ver os meus filhos felizes. Mas ontem foi a gota de água. Acabou-se tudo! Acabou-se o pingo de respeito que eu ainda sentia por ti, o pingo de admiração e também o pingo de amor… - Pois eu ainda te amo. - Não! Não amas – Madalena disse-lhe num tom deveras calmo. – Agora sai da minha casa! Desaparece e não voltes mais, porque desta vez, eu não te vou aceitar de volta… - Eu não vou sair desta casa, ouviste bem?! – Jorge gritou pela primeira vez, acordando os filhos no piso de cima. – Sabes qual é o teu problema, Lena? Passares a vida enfiada no teu mundo de fantasia sem realmente saber o que se passa lá fora! Ou pensas o quê?! Pensas que teríamos metade das coisas que temos se eu continuasse a trabalhar naquela firma de advogados em Benfica onde me enfiei a ganhar o ordenado mínimo e a trabalhar como um condenado para que os outros advogados mais experientes me ficassem com os louros? Achas que teríamos esta casa? Diz lá! Achas que poderíamos pagar os colégios dos miúdos? As nossas férias? As roupas, as jóias e tudo o que compras com os cartões de crédito que te ofereço de mão beijada? Não! Nunca poderias ter a vida que tens se não fosse por minha causa. Ao contrário do que possas pensar, os bens materiais compram-se com dinheiro e não com honestidade. E hoje em dia, já não se ganha dinheiro com honestidade. Lá fora, no mundo real, as pessoas lutam com unhas e dentes por um ordenado ao final do mês porque sabem que o dinheiro não cai do céu. E tu devias dar graças a Deus por não ter que lutar por nada. Devias agradecer de joelhos a vida que eu te ofereço… - Uma vida que eu não quero mais – Madalena cortou-lhe as palavras com um grito agudo. - Até ontem querias – Jorge enfrentou-a perto das escadas. – Por isso pensa bem! Não faças nada do qual te possas vir a arrepender mais tarde. - Eu não me vou arrepender, Jorge! Até porque prefiro morrer do que continuar casada contigo.
  • 11. Jorge foi o primeiro a aperceber-se da presença da filha, já que Madalena, por estar de costas, não viu expressão assustada de Sara com as mãos suspensas sobre o corrimão das escadas. A jovem ouviu a discussão dos pais e a frase preemptória da mãe: Prefiro morrer do que continuar casada contigo. E não foi preciso mais nada para que Sara percebesse que o casamento dos pais estava irremediavelmente arruinado. Para sempre. - Sara… - Jorge tentou antecipar-se à filha, mas foi tarde demais. Sara desapareceu das escadas assim que os seus olhos se cruzaram com os da mãe. Trancou-se no quarto, batendo a porta com violência. O barulho que se ouviu foi absolutamente ensurdecedor e deixou Jorge e Madalena de olhos postos um no outro. Como chegaram àquele ponto, perguntaram-se em silêncio. O que aconteceu àquele casamento? Ao amor e ao respeito que um dia sentiram um pelo outro? O que foi feito a todos aqueles sentimentos que outrora pareceram tão reais? - Tens as tuas malas ali na sala! Quando saíres, fecha a porta e deixa a chave… Proferidas estas últimas palavras, Madalena subiu as escadas lentamente, levada por uma falsa sensação de liberdade. Estava livre, foi o que pensou. Finalmente livre. Anos e anos de desespero, angústia e sofrimento tinham sido deixados para trás, enquanto a sua figura se desvanecia perante o olhar perplêxo de Jorge. O advogado não soube muito bem porquê, mas subitamente um grande nó atravessou-lhe a garganta. Como se aquela fosse, de facto, a última vez que pisava aquele corredor.
  • 12. 2003 As chuvas torrenciais não a deixaram dormir naquela noite. Madalena ouviu por diversas vezes estouros violentos de trovões e relâmpagos a lacerar os estores das janelas. O despertador tocou ruidosamente as seis horas em ponto, assinalando o término do seu descanso. Chegara a hora de se levantar, tomar um banho, vestir-se e preparar os filhos para a escola. Era essa a rotina que mantinha há pelo menos três anos desde que se separou do marido. Intitulava-se agora uma mulher divorciada. A separação foi difícil e traumática, especialmente por causa das crianças que de uma hora para a outra viram o pai sair de casa com três malas na mão. Nunca mais voltou, ao contrário do que todos esperavam, e ao contrário do que ele próprio esperava. Madalena manteve-se resoluta em não aceitá-lo de volta. Passaram-se meses e os papéis do divórcio foram assinados citando diferenças irreconciliáveis. Um motivo muito torpe para todas as angústias e humilhações a que ela se viu submetida durante os dezasseis anos em que esteve casada com Jorge. Agora com quarenta anos restava-lhe recomeçar do zero. Os três anos que se seguiram ao divórcio não foram fáceis. Os filhos reagiram mal à separação. Sara especialmente. Desde o dia em que o pai saiu de casa, a jovem fechou-se em sete copas e destilou todo o seu ódio e rancor contra a mãe. Culpabilizava-a por tudo. Pelo término da família, por todos os fins-de-semana em que se via obrigada a fazer as malas e partir para a nova casa do pai, pelas estranhas comemorações no Natal, Ano Novo, aniversários e outras datas festivas. E por não saber realmente a quem pertencia. Tudo era motivo para implicações e discussões. A menina doce que vivia agarrada à saia da mãe transfornou-se numa jovem infeliz e amargurada. Um ano depois da assinatura do divórcio, a família sofreu um outro abalo. Leonor, a mãe de Madalena, recebeu o diagnóstico de que sofria de um cranco nos intestinos em estado avançado. Cancro, esse, que lhe permitiu desfrutar de apenas mais seis meses de vida. Afonso, o marido de Leonor, foi o que mais sofreu com a sua morte.
  • 13. Leonor deixou igualmente um outro problema quando faleceu. A sua floricultura. Um negócio que mantinha há mais de vinte anos e que se tornou na grande fonte de rendimento aquando da reforma do marido da carreira militar. Manter o negócio ou fechar a loja, foi este o grande dilema de Madalena durante as semanas que seguiram à morte da mãe. Ela pensava que não era capaz. Nunca dirigira nada em toda a sua vida e não estava sequer familiarizada com aquele negócio. Durante os anos em que esteve casada com Jorge e depois do nascimento dos filhos, Madalena deixou de trabalhar. Dedicou-se única e exclusivamente à casa e às crianças, passando a maior parte do tempo submersa nos afazeres domésticos. Esqueceu-se de que também poderia ter uma vida própria e fazer algo de útil à sociedade. Mediante o aconselhamento do pai, de resto uma das poucas pessoas que sempre acreditou nas suas capacidades, Madalena decidiu aceitar o desafio de reerguer a floricultura da sua mãe. Dotou-a de um novo fôlego e de uma nova acuidade visual graças à preciosa ajuda da sua melhor amiga, Alice Martins. O negócio corria bem. Em pouco tempo, foi possível contratar duas novas funcionárias e abrir uma segunda loja no centro da cidade, onde muitas vezes Madalena se revezava com Alice. Todos os dias surgiam aniversários, casamentos e outras datas comemorativas celebradas com a compra de flores. Não era um negócio fútil, ao contrário do que a maioria das pessoas poderia pensar, ou melhor, ao contrário do que o ex-marido de Madalena poderia pensar. Era um negócio sério que provinha o sustento de várias pessoas, incluindo o dela, que desde o seu divórcio com Jorge recusou-se a receber um cêntimo do dinheiro sujo que o ex-marido ganhava a defender banqueiros, empresários e políticos corruptos. Assim, o tempo foi passando e cicatrizou algumas feridas que pareciam incuráveis. Os cabelos castanhos de Madalena, ligeiramente aclarados, cresceram, e os olhos cor de mel voltaram a brilhar de uma forma diferente. Menos infelizes, decerto. Conseguiu igualmente manter a sua excelente forma física tamanho trinta e seis, com um ventre liso, braços tonificados e seios arrebitados. Madalena possuia todas as características de uma mulher atraente, embora não se considerasse especialmente bonita. Tinha dias. Dias em que se conseguia ver ao espelho e descobrir alguns traços que não se perderam durante a sua juventude, como as maçãs do rosto salientes, as sobrancelhas perfeitamente delineadas e os lábios finos. Apesar de tudo, o tempo tinha sido generoso consigo. Nunca engordou. Nem mesmo aquando do nascimento dos filhos. A amamentação encarregou-se de lhe retirar os dez e os quinze quilos ganhos nas suas duas gravidezes. Naquela manhã, tal como sempre, Madalena apressou-se a pôr a mesa do pequeno- almoço. Preparou um café para si, bebeu-o num só gole e aproveitou os minutos seguintes para servir os filhos, que arrastados pela lentidão matinal, sentaram-se à mesa e aguardaram pacientemente a chegada do leite, dos cereais e das torradas.
  • 14. Algum tempo depois, Madalena, Daniel e Sara saíram de casa às pressas em direcção ao carro estacionado na garagem. O céu continuava nublado com indícios de que provavelmente iria chover durante a manhã. As previsões metereológicas não apontavam melhorias nos próximos dias. Assim que Madalena tirou o carro da garagem em marcha atrás, Sara enfiou-se no banco da frente e Daniel entrou pela porta traseira, depois de sem querer ter pisado uma poça de água. A viagem foi feita em silêncio ao som das primeiras notícias na rádio, e quando deu por si, a chuva caía tão forte que já quase não era possível o limpa-pára-brisas varrer toda a água. Madalena abrandou então a marcha e manteve-se na via de trânsito mais à direita. Diminuiu o volume do rádio e olhou de soslaio para a filha. Sara encontrava-se mais uma vez com aqueles malditos auscultadores nos ouvidos. - Não era hoje que ias ter um teste? – Madalena interrompeu o silêncio constrangedor. – Ouviste-me!? - O que foi?! – Sara tirou os auscultadores. - Perguntei se não era hoje que ias ter um teste. - Sim – a jovem suspirou. - Estudaste? - Não sei! Acho que sim. - Como não sabes!? Ou se estuda ou não se estuda! Ninguém acha que não sabe se estudou. Sara voltou a brindá-la com um longo silêncio e um suspiro entediado. - Estudei. - Esta semana não te vi com um único livro na mão. - É natural! Não andamos juntas vinte e quatro horas por dia. Não te passou pela cabeça que talvez eu possa ter estudado enquanto não estavas em casa? - Sara! Não me respondas nesse tom! Eu não te admito.
  • 15. Madalena apoiou a mão sobre a caixa de velocidades com uma expressão contrariada, esperando que o sinal vermelho passasse a verde. Percebeu que estava a ser cada vez mais difícil manter um diálogo decente com a sua filha. Sara dirigia-se a si sempre com altivez, irritabilidade e com aquela expressão provocadora de quem tudo sabia. Era preciso uma paciência de santo para a aturar. - Mãe… – Daniel esgueirou o pescoço em direcção aos bancos da frente. – Vamos passar este fim-de-semana à casa do pai? - Ainda não sei – Madalena passou a mão pela nuca. – Ele ainda não ligou a dizer nada. - Deixei lá a minha Playstation! Preciso ir buscá-la. - Sabes que eu até acho que foi bom teres esquecido maldito jogo na casa do teu pai!? Assim pelo menos esta semana passaste menos tempo em frente à televisão e estudaste mais. Devias esquecê-la outras vezes para ver se me consegues levantar as notas a Português. - Se o pai não nos vier buscar, eu peço-lhe para me trazer a minha Playstation! Não passo mais uma semana sem ela, senão fujo de casa… - És mesmo parvo - Sara empurrou o irmão contra o banco de trás. – Foges de casa e vais para onde? Para debaixo da ponte!? Madalena seguiu caminho no meio do trânsito infernal da segunda circular. Por sorte, tinha tempo. Saíra de casa com antecedência prevendo que uma situação dessas pudesse acontecer. A primeira paragem, por ser a mais próxima, foi o colégio de Sara. - Boa sorte – ela disse quando a filha saiu do carro com a mochila às costas. - Para quê? - Oras, para quê?! Para o teste. - Não precisas desejar-me sorte. - Vou torcer por ti.
  • 16. - Já disse que não é preciso. Sara afastou-se do carro sem olhar para trás e entrou no colégio debaixo de uma chuva miudinha. Não abriu sequer o chapéu que a mãe obrigou a levar consigo. Em vez disso, atravessou o pátio da escola a correr, afundando propositadamente os pés em grandes poças de água. Ao vê-la entrar no pavilhão principal, Madalena encolheu os ombros e respirou fundo. De facto, ninguém a podia acusar de não tentar melhorar a relação com a sua filha. Talvez um dia Sara conseguisse reconhecer o seu esforço. De qualquer maneira, era bom poder continuar a sonhar com isso. Uma hora foi o tempo que Madalena precisou para deixar o filho mais novo na escola e dirigir-se até a uma das suas floriculturas. Foi a primeira a chegar ao local e fê-lo pontualmente quinze minutos antes das dez. Ao abrir a porta, surgiu-lhe como sempre a visão assustadora da correspondência acumulada ao longo do fim-de- semana. Abaixou-se e alinhou as cartas com um suspiro. Água. Seguro. Publicidade. Publicidade. Realmente nada a que já não estivesse habituada durante os três anos em que dirigia aquele negócio. O espaço era amplo e iluminado. Possuía dois pisos, um armazém e vários expositores que guardavam todo o tipo de plantas e flores, algumas medicinais e outras simplesmente decorativas. Encontrava-se localizada na Avenida de Roma, uma das avenidas mais nobres de Lisboa, e todos os dias recebia clientes de diversos extratos sociais. O nome MAR DE ROSAS chamava a atenção de todos os que por ali passavam. Madalena não se podia queixar do negócio. A sua mãe construíra uma reputação sólida na vizinhança, o que serviu como impulso para continuar e expandir a floricultura para outras zonas da cidade. - Olá Madalena! Como estás? Desculpa o atraso – uma das funcionárias entrou pela loja adentro, afogueada. Desfez-se imediatamente do impermeável que trazia consigo e também do guarda-chuva destruído pela forte ventania. - Não faz mal, Joana! Também cheguei há pouco – Madalena mostrou-lhe um sorriso compreensivo enquanto abria o caixa. - Está um temporal lá fora! Nem queiras saber como aqui cheguei. Olha para o meu chapéu! Do jeito como está mais vale pô-lo no lixo. - Vai-te secar lá dentro antes que apanhes uma constipação. - Está bem! Dás-me cinco minutos?!
  • 17. Joana correu ao armazém. Secou-se rapidamente com uma toalha e voltou à loja pronta para começar mais um dia de trabalho. – A Alice não vem hoje? - Vai ficar a manhã na outra loja no Areeiro! Só vem à tarde. O casamento de Sofia Dias estava marcado para dali a quatro meses, e tal como se era de esperar, foi a sua mãe, Beatriz Dias, a responsável por toda a organização do evento. O vestido de noiva fora adquirido numa viagem que fizeram a Paris, o local da boda reservado numa quinta em plena Vila de Sintra, e a igreja escolhida para os cerca de duzentos e cinquenta convidados do casal era, nada mais, nada menos, que o majestoso edifício situado em Belém. O Mosteiro dos Jerónimos. Seria o casamento do ano, ela bradava. Beatriz havia passado anos a sonhar com o dia em que a sua filha se iria casar. Sempre teve objectivos bem traçados relativamente ao tipo de genro que pretendia. Um homem educado, rico e de boas famílias. Alguém que pudesse equiparar-se ao seu nível social e oferecer uma vida desafogada à sua filha. Para Beatriz, apenas isso importava. Tudo o resto eram detalhes, como por exemplo, o facto de Sofia não estar apaixonada pelo noivo. Pormenores. Dizia. O amor vem com o tempo e nem sempre podemos ter tudo aquilo que queremos. Por vezes, somos obrigados a abrir mão de um grande amor em prol de uma certa posição social. Sofia compreendia a sua mãe melhor do que ninguém. Sempre esteve consciente das privações a que foram obrigadas a passar por culpa das irresponsabilidades do seu pai que perdeu toda a fortuna em casinos e salões de jogos. Por isso, não lhe queria seguir as pisadas. Ainda que não amasse o noivo, ela iria casar-se com um homem rico e ser feliz com os cartões de crédito que ele lhe oferecesse. No final daquela semana, ao fechar as janelas da sala, Madalena observou uma cena que já lhe era particularmente familiar. O ex-marido estacionou o carro em frente ao jardim. Tinham-se passado duas semanas desde a última vez que ele se comprometeu a buscar os filhos para passar o fim-de-semana. Muito trabalho, foi a desculpa. Naquela tarde, ele saiu do carro às pressas. Tentou abrigar-se da chuva miudinha, utilizando para isso o sobretudo que quase sempre o acompanhava em emergências como àquela. Depois disso, atravessou a rua e abriu os portões com o mesmo à vontade de outros tempos. Tempos em que aquela casa ainda continuava a ser sua. O divórcio não o tinha mudado. Jorge continuava presunçoso, arrogante e com a estúpida sensação de que tinha o rei na barriga. Mas apesar de todos os defeitos e dos seus quarenta e dois anos de idade, mantinha-se um homem bem-apessoado. Possuía cabelos castanhos religiosamente pintados sempre lhe surgiam os primeiros fios brancos em frente ao espelho, olhos escuros e estatura elevada. Para além disso, fazia questão de manter-se em forma com visitas regulares ao ginásio.
  • 18. - Chegaste cedo – Madalena abriu-lhe a porta minutos depois. - Oito horas! Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos – Jorge alcançou o relógio de pulso num gesto zombeteiro. – Como reclamas sempre que chego atrasado… - Entra! - Estou com pressa! Os miúdos ainda vão demorar muito? - Não sei. Antes de fechar a porta, Madalena voltou a lançar os olhos ao carro de Jorge. Viu que o motor ainda continuava a trabalhar. - Tens alguém dentro do carro? O advogado bem tentou esconder o seu constrangimento quando se viu confrontado com a perspicácia da ex-mulher, mas na altura não teve como negar. - Sim! Tenho. Madalena franziu o sobre olho. - Uma amiga – ele defendeu-se prontamente. - Uma amiga!? - Sim! Uma amiga. - Escuta Jorge! Eu não quero que ponhas os meus filhos a conviver com as tuas amigas. - Lena, não começes com as tuas cenas outra vez! Nós já não somos casados, lembraste? Não te devo satisfações da minha vida. - Que seja! Simplesmente, não quero. - Será que podes ir lá acima despachar os miúdos?
  • 19. O olhar de Madalena foi peremptório e não deixou outra escolha a Jorge a não ser sentar-se no sofá e aguardar impacientemente a chegada dos filhos à sala. Estava cansado de ouvir sermões e acusações sempre que lá ia buscar as crianças a casa. A ex-mulher nunca lhe facilitou a vida nesse sentido. E o pior é que as coisas não pareciam estar a melhorar com o tempo. - Estava a ver que nunca mais – ele disse, recebendo um beijo de Sara e de Daniel respectivamente quando ambos desceram à sala. – Então!? Já estão prontos? - Já – Sara colocou a mochila atrás das costas. – Podemos ir? - Sim! Claro. - Portem-se bem – Madalena ajudou o filho a vestir o casaco e a enfiar o gorro na cabeça. – Não fiquem acordados até tarde! Façam os trabalhos de casa e comam todas as refeições. Ou melhor, obriguem o vosso pai a fazer-vos todas as refeições… Jorge soltou um novo suspiro e revirou os olhos. Até quando iria continuar a aguentar aquela provação, foi o que se perguntou em silêncio. - Está bem, mãe – Daniel anuiu. - Ligo amanhã para falar com vocês. - Não precisas ligar – Sara saiu da sala sem olhar para trás. – O pai traz-nos no domingo à noite! São só dois dias… - Mesmo assim! Amanhã eu ligo. - Vamos, Daniel – Jorge desferiu um último olhar à ex-mulher. – Tchau, Lena! - Tchau, Jorge… Quando a porta se voltou a fechar, Madalena aproximou-se lentamente da janela da sala. Entrelaçou os dedos por entre os cortinados brancos, observando a caminhada do ex-marido e dos filhos em direcção ao carro. Iam animados e felizes. Jorge levava o braço sobre os ombros de Daniel e Sara encontrava-se abraçada à sua cintura contando-lhe entre risos e gargalhadas todas as peripécias que lhe aconteceram nas duas semanas em que não o viu.
  • 20. No interior da casa, Madalena tentou não sentir ciúmes da proximidade que os filhos pareciam ter com o pai, especialmente Sara. Em vez disso, forçou um pouco mais a vista para conseguir vislumbrar os traços físicos da mulher que se encontrava sentada no banco da frente do carro do ex-marido. Mas na altura foi inútil. A escuridão da noite impossibilitou-lhe tal tarefa e Jorge não teve cerimónias em arrancar o carro a alta velocidade depois de ter enfiado as mochilas dos filhos na bagageira. Nessa altura, a rua tornou a ficar deserta e Madalena deu-se por vencida. Não seria desta vez que iria conhecer a nova namorada do ex-marido. Passaram-se quatro meses e o Verão regressou em força. Jorge convidou os filhos para passar duas semanas no Algarve num novo apartamento que adquiriu, fruto de um acordo imobiliário bastante rentável. Tal como se era de esperar, Sara e de Daniel aceitaram o convite sem hesitações. E Madalena, por não ter tido outra alternativa, acedeu ao desejo das crianças em seguirem viagem com o pai. As súplicas tornaram-se cada vez mais incessantes com o passar das semanas, sobretudo por parte de Sara. Eram usuais as suas chantagens, a sua contrariedade e o seu mau-humor sempre que um desejo seu não era atendido. Por esse motivo, Madalena resolveu baixar as guardas. Permitiu a viagem e permitiu também, pela primeira vez, que os filhos convivessem com a nova namorada do pai por mais do que um fim-de-semana. Chamava-se Vanessa, era alta como uma torre, loira e com as curvas perfeitas de uma verdadeira top model. O zénite que todos os homens divorciados acima dos quarenta sonhavam apresentar às suas ex-mulheres. - Olá, muito prazer - Vanessa estendeu a mão a Madalena, mostrando-lhe um largo sorriso. A florista aceitou o cumprimento de uma forma muito menos efusiva. – Prazer! - Finalmente! Confesso que estava curiosa para a conhecer. - O sentimento era recíproco – Madalena mentiu. - O Jorge falou-me muito sobre si. - Bem, espero… - Claro que sim – Vanessa riu-se alegremente. – Sabe que eu até estive a dizer ao Jorge para a levar connosco nestas férias?! - Eu?!
  • 21. - Sim! Iria ser divertido passarmos as férias todos juntos. - A Madalena tem um negócio para gerir, Vanessa – Jorge adiantou-se, temendo que a sua namorada pronunciasse mais alguma loucura. – Eu disse-te que ela era dona de uma floricultura, lembraste!? - Hã, claro… - Não vou ter férias este ano! Já tinha dito isso ao Jorge – Madalena concluiu a resposta do ex-marido. - Não acredito! Bem, deve estar arrasada, não?! Um ano sem férias! Tenho a certeza absoluta que não aguentava. Iria bater com a cabeça nas paredes. - Imagino que sim – Madalena não conteve a observação sarcástica. Era a quinta vez que Madalena observava a entrada dos filhos, da namorada e do ex- marido no carro, mas era sem sombra de dúvidas a primeira em que não se sentia minimamente enciumada por ver aquela cena. Vanessa, a tal loira mais alta que uma torre e com as medidas perfeitas de uma top model, não passava de um corpo desprovido de cérebro ou qualquer outro sinónimo que pudesse fazer jus à inteligência humana. E sim. Ela fazia realmente o estilo de Jorge. - Estás a gozar?! Ela é assim tão burra? – Alice, a sócia e a melhor amiga de Madalena não resistiu a fazer a pergunta quando ambas jantaram juntas naquela noite. - Define-me burra. As duas amigas riram-se animadamente, deliciadas com uma maravilhosa refeição cozinhada por Madalena. Salmão grelhado e salada de ervas aromáticas a acompanhar. Em cima da mesa, encontrava-se também uma garrafa de vinho branco aberta especialmente para a ocasião. A televisão debitava as últimas notícias do dia, mas isso não foi suficiente para prender a atenção de Madalena e Alice. A conversa sobre a nova namorada de Jorge era muito mais interessante. Fazia-lhes bem ao ego gozar com ele, com as suas conquistas furadas e rirem-se às gargalhadas com alguns comentários menos agradáveis sobre o seu carácter. Não era de todo o melhor passatempo do mundo, mas pelo menos exigia a Madalena que se relembrasse de todos os motivos que a fizeram assinar os papéis do divórcio com Jorge. - Coitado! Será que ele está assim tão desesperado? – Alice perguntou.
  • 22. - Provavelmente! Mas lá diz o ditado que cada um tem aquilo que merece, não é!? Pois então! Ele só está a ter aquilo que merece. - E tu estás a adorar. - É assim tão evidente? – Madalena arrancou uma nova gargalhada à sua melhor amiga. - Mas tens razão! Aliás, tens toda a razão em ficar contente com a desgraça do teu ex- marido! Especialmente depois de tudo o que ele te fez. - Nem me digas. - Podias pelo menos ter ficado com algum dinheiro daquela conta no Chipre – Alice riu-se, animada. - Olha, nem com isso fiquei! Só fiquei com os chifres, com os filhos e com esta casa a cair aos bocados enquanto ele se pavoneia no Algarve com a Vanessa loira burra. Aliás, se queres realmente que te diga, eu é que sou burra… – Madalena largou a taça de vinho sobre a mesa. – Burra por ter aguentado tantas traições e ainda acabar com uma mão à frente e a outra atrás. - Eu bem te avisei que devias ter feito um negócio mais vantajoso quando assinaste os papéis do divórcio. Mas tu só quiseste ficar com esta casa! Não foste muito inteligente nesse aspecto. Infelizmente, Madalena foi obrigada a concordar com as palavras da sua amiga e também com a certeza de que tudo continuava igual naquela cozinha. Exactamente ao que sempre fora. - Estou sozinha – ela chegou a essa conclusão. - E eu?! Sou um fantasma? - Tu sabes bem o que eu quis dizer, Alice! Ele está lá no Algarve, até pode estar com a mulher mais burra do mundo, mas pelo menos está lá a divertir-se, a viver uma vida que eu também queria viver e a ser feliz… - Madalena bem tentou controlar as lágrimas que lhe teimaram em cair dos olhos, mas na altura foi impossível. - Não penses nisso – Alice tentou animá-la.
  • 23. - Nunca pensei que um divórcio fosse tão difícil. - A quem o dizes! Eles avançam com a vida e nós não… - Mas quando se tem filhos é mil vezes pior! Cheguei à conclusão que nunca me vou conseguir ver livre do Jorge. Nunca! Por mais que eu não queira, ele vai continuar a aparecer-me cá em casa todos os fins-de-semana para buscar a Sara e o Daniel. Vai continuar a fazer parte das nossas vidas. Vão existir sempre situações em que me vou ter que cruzar com ele por causa das crianças. E eu não pensei nisso quando resolvi pedir o divórcio. Acreditas que na noite que nos separámos eu cheguei a cometer a loucura de dizer que o queria fora da minha vida para sempre? Que nunca mais o queria voltar a ver? - Isso era um sonho, de facto. - E o pior de tudo nem é isso – Madalena levou um pedaço de salmão à boca. Estava frio e ela há muito que já havia perdido o apetite no jantar. - Ainda há coisa pior do que seres obrigada a conviver com o Jorge para o resto da tua vida? - Há! A Sara. - O que é que tem a Sara? - Desde que me divorciei do pai, sinto que ela guarda rancores de mim. Pensa que fui eu que o expulsei cá de casa. - Isso é porque não sabe o verdadeiro sacana que o pai dela é! Já lhe devias ter contado a verdade há muito tempo. - Não posso fazer uma coisa dessas. - Porque não?! - Porque não tenho o direito de destruir a boa imagem que ela ainda tem do pai. Não quero que ela acabe desiludida como eu. - Podes ficar descansada porque ela não se vai casar com um homem igual ao pai. Não existem dois Jorges no planeta terra.
  • 24. - Deus te oiça – Madalena e Alice riram-se alegremente. - Tu é que devias começar a pensar em refazer a tua vida. - Eu?! Estás louca, Alice! - Porque não?! Continuas uma mulher bonita, interessante, inteligente… - Queres acrescentar mais algum elogio? - Só não arranjaste ninguém porque ainda não quiseste! Eu bem vejo como o Srº António olha para ti. - Que Srº António?! - O nosso fornecedor do Porto Salvo. - Estás louca?! O homem tem quase idade para ser meu pai. - Se calhar é mesmo disso que estás a precisar! De um homem maduro, experiente… - Não, Alice – Madalena voltou a servir-se de um novo copo de vinho. – O que eu estou a precisar é de sexo tórrido e o Srº António nunca me vai poder dar um sexo tórrido. Aliás, como é que eu posso sequer pensar na possibilidade de ter sexo tórrido com um homem que usa suspensórios e meias brancas!? Alice não conteve a gargalhada ruidosa. - Pelo menos aquele idiota do Jorge era bom de cama – Madalena odiou-se por ter feito aquela confissão. – Raios! Porque é que todos os homens traidores, sem escrúpulos e miseráveis são bons de cama?! - Está-lhes no sangue – a resposta de Alice trouxe novas risadas à mesa.
  • 25. 1982 Madalena tinha acabado de sair do ginásio quando entrou numa pequena mercearia para comprar uma garrafa de água. Esteve duas horas nos treinos de ginástica acrobática. Uma modalidade que praticava desde os doze anos, em dias alternados, conjugando-as com aulas de Ballet e também com o curso de Contabilidade. Os seus dias eram agitados. Não tinha tempo para nada, nem sequer para sair com as suas amigas e tomar um copo numa esplanada. Mas ainda assim ela gostava de se manter activa. Com dezanove anos, um corpo escultural e bem definido, Madalena chamava a atenção de qualquer homem que passasse por si na rua, ainda que sempre saísse do ginásio com os cabelos desalinhados presos por um rabo-de-cavalo, umas leggins pretas e um velho pullover cinzento que habitualmente a acompanhava nos dias mais frios. Sempre que entrava na mercearia, o dono cumprimentava-a com um sorriso malicioso. Mexia no bigode e passava as mãos pelos poucos cabelos que ainda lhe restavam na careca oleosa. Madalena já havia coagitado deixar de lá ir. Incomodava- a os olhares lascivos daquele homem que tinha quase idade para ser seu pai. Normalmente conseguia vê-lo através do espelho do expositor de bebidas. Ficava de olhos fixos, a olhar para o seu rabo e a admirá-la de cima a baixo. Sempre que isso acontecia, ela puxava o pullover para baixo e abria o expositor às pressas, retirando uma garrafa de água de um litro e meio. Depois, enchia-se de coragem e dirigia-se até ao caixa. Ali, escolhia algumas pastilhas de menta para mastigar durante caminho. Mas naquela tarde de Verão, um outro cliente passou-lhe à frente. Fê-lo sem qualquer cuidado, evidenciando alguma pressa. Pagou um maço de cigarros e uma bebida energética. Era alto, corpulento e bastante atraente. Um rapaz vistoso não fosse o maldito vício do tabaco. Madalena observou-o de costas sem que ele se apercebesse da sua existência. Depois de pagar, ele saiu e ela foi então obrigada a encarar o rosto devasso do dono da mercearia. - Está toda suada, menina…
  • 26. - É só a água e as pastilhas, por favor – Madalena ignorou-lhe o comentário menos próprio. O eléctrico estava prestes a sair da paragem quando Madalena abandonou a mercearia, carregada com o seu saco de treinos e com a garrafa de água que comprara momentos antes. Desesperada, ela correu pela rua como uma louca, esbarrando-se numa senhora de idade que furiosamente bradou bem alto que os jovens já não tinham respeito por ninguém. Madalena desculpou-se sem olhar para trás, mas o eléctrico iniciou a marcha. Parecia uma causa perdida, até uma mão forte puxá-la para o interior do veículo em andamento. Ao vê-la pela primeira vez, o desconhecido sorriu e Madalena reconheceu-o de imediato. Era o rapaz da mercearia. - Estás bem? – ele perguntou. - Estou – ela respondeu algo afogueada pela corrida. – Obrigada. - Foi por pouco. - Obrigada. Madalena despediu-se do rapaz e procurou um lugar para se sentar. Caiu na cadeira com o saco de treinos sobre o colo, depois de ter limpado o suor do rosto e ajeitado os cabelos desalinhados. Minutos mais tarde, foi-lhe possível recuperar o fôlego e permitir a saída da senhora que se encontrava sentada ao seu lado. O lugar voltou a ser rapidamente ocupado pelo mesmo rapaz que a ajudara a apanhar o eléctrico. O rapaz da mercearia. Assim passou a ser conhecido. Em poucos instantes, enquanto observava aquela bela jovem de estatura média, o seu rosto angelical e os longos cabelos que lhe caíam nas costas presos por um rabo- de-cavalo volumoso, ele sorriu extasiado. Enredou-se nos seus próprios pensamentos, tentando adivinhar-lhe o nome, os motivos que a levaram a apanhar aquele eléctrico e o que ela escondia no interior daquele saco de treinos. Admirou igualmente a perfeição das suas unhas, muito bem arranjadas, pintadas de rosa clarinho. Não tinha brincos nas orelhas ou qualquer outro acessório no pescoço ou nas mãos. Apenas a limpidez de um sorriso que sem querer deixou escapar quando percebeu que ele não parava de olhar para si. - Sou o Jorge! E tu? - Madalena – ela respondeu timidamente com um esgar nos lábios.
  • 27. - Moras aqui perto? - Mais ou menos. - Costumas vir muitas vezes para estes lados? - Mais ou menos. Jorge esboçou um sorriso malandro perante a pouca vontade de Madalena em revelar mais detalhes acerca da sua vida pessoal. - Pois eu estudo aqui perto – ele disse. – Mais ou menos. Ela não resistiu a esboçar um sorriso encantador. - Estudas?! Trabalhas? – Jorge voltou a perguntar. - Estudo. - O quê?! - O primeiro ano de contabilidade. - Então quer dizer que és boa a matemática? A pergunta de Jorge obrigou-a a esboçar um novo sorriso e a desviar o rosto em direcção à janela. Madalena não sabia muito bem o porquê, mas a presença daquele rapaz atraente deixava-a nervosa. Como se ao olhar para ele, ela deixasse transparecer todos os seus segredos. Como se ao olhar para ele, tudo à sua volta deixasse de ter importância. - Pois eu estudo Direito… – Jorge mostrou-lhe o livro que tinha por debaixo do braço. – Estou quase a terminar o curso. - Muito bem. - E tu? Gostas de Contabilidade? - Sou boa a matemática.
  • 28. Jorge riu-se alegremente e observou pela primeira vez com atenção o rosto resplandecente de Madalena. Tinha olhos cor-de-mel, reparou. A pele era clarinha, sem qualquer borbulha ou ponto negro a apontar. Branca como a de uma boneca de porcelana. Além disso, os lábios encontravam-se ligeiramente pintados com um batom clarinho. Eram belos. Os lábios mais belos e perfeitamente delineados que ele alguma vez vira ao longo dos seus tenros vinte e dois anos de idade. Apesar de ter ficado bem longe do seu destino, Jorge resolveu descer na mesma paragem que Madalena. Acompanhou-a ao longo da rua numa conversa animada onde foi o principal interlocutor. Ele percebeu que Madalena era uma mulher de poucas palavras. Era tímida, reservada e pensava mil vezes antes de se atrever a abrir a boca para dizer qualquer coisa. Mas era isso que mais o agradava. O mistério e a curiosidade que ela despertava em si. - Não posso dar-me ao luxo de nunca mais te ver – ele afirmou quando cruzaram o Marquês de Pombal e ela disse que iria cortar caminho em direcção à Rua Gomes Freire, local onde morava com os pais. - Foi um prazer conhecer-te, Jorge! - Espera! Vais-te embora assim? – ele interceptou-a de braços abertos. - Assim como!? - Sem me dares um número de contacto. - Não te posso dar o número da casa dos meus pais. - Então diz-me onde estudas, ou então, onde é que te posso encontrar outra vez… Jorge não parecia disposto a deixar escapar a sua presa. Tinha demorado tanto tempo a esbarrar-se com uma mulher como Madalena, que seria uma loucura deixá- la fugir sem a certeza de que a tornaria a ver. Ela devia-lhe isso. O prazer de um novo encontro. - Faço aulas de ginástica todas as terças, quintas e sextas a uma paragem do local onde apanhámos hoje o eléctrico. - Tens a certeza que não me estás a mentir? – Jorge cerrou os olhos e isso provocou uma gargalhada jovial a Madalena.
  • 29. - Não! Não estou a mentir. - Juras?! - Juro. - Então vou lá aparecer na próxima terça-feira. - Está bem. - A que horas sais das aulas? - Às seis. No terceiro encontro que tiveram, Jorge levou Madalena a comer um gelado de manga e baunilha numa nova gelataria que abrira na Baixa da Cidade. Era um local frequentado por gente jovem, bem ao estilo anos oitenta, com música rock aos altos berros. O espaço amplo encontrava-se repleto de clientes, espalhados por dezenas de mesas decoradas com toalhas vermelhas. Havia uma juke box ligada e empregados movimentavam-se magistralmente em cima de patins de quatro rodas. Naquela magnífica tarde de Verão, Madalena trazia um lindo vestido às flores de alças grossas e calçava umas sandálias rasas. Foi também a primeira vez que Jorge a viu com os cabelos soltos. Longos, castanhos e volumosos que lhe caíam até o final das costas. Era Verão. O sol mostrava-se radioso lá fora, mas não havia nenhum outro lugar no mundo onde ele quisesse estar. - Conta-me mais coisas sobre ti – Jorge pediu. - Não tenho nada para contar – ela encolheu os ombros, levando a colher do gelado à boca. - Como não?! Toda a gente tem alguma coisa para contar. - O que é que queres saber? - O que gostas de fazer nos teus tempos livres? - Comer gelados – a resposta de Madalena fê-lo rir-se alegremente. - Só isso?!
  • 30. - Também gosto de dançar, ler, ir ao cinema… - Da próxima vez convido-te para irmos ao cinema. Pode ser? - Pode – ela ofereceu-lhe um doce sorriso. - Vamos ao São Jorge! E os teus pais?! O que fazem? - A minha mãe é dona de uma floricultura e o meu pai é militar na marinha. - O teu pai é militar?! Bem! Então tenho que me pôr a pau, não?! – Jorge fez uma careta engraçada e Madalena riu-se com ela. - Só se fizeres alguma coisa de mal. - Eu não pretendo fazer nada de mal – Jorge encontrou-lhe a mão sobre a mesa. Mexeu-lhe nos dedos, carinhosamente, e mais tarde brincou com eles. – Ou pelo menos nada que tu não queiras. - És tão parvo – Madalena corou de vergonha. - E tu és a miúda mais gira que já vi até hoje. Ela voltou a corar e os dois continuaram a comer o gelado, indiferentes aos ponteiros do relógio. No final, Jorge fez questão de acompanhar Madalena a casa. Subiram a avenida, envolvidos numa conversa animada. Ele fazia-a rir a gargalhadas com as suas piadas sem sentido e com o seu jeito brincalhão. Ela derretia-o com o seu sorriso radiante, com a delicadeza dos seus gestos e com a expressão de menina inocente que parecia nunca lhe sair do rosto. Eram o par perfeito, conjugavam-se na perfeição e isso ficou provado quando Jorge se atreveu a segurar-lhe a mão no meio da rua. Tinha os dedos suados e estava nervoso, mas isso não o impediu de cometer tal loucura. Queria-a, isso era um facto assente. Mas não de uma forma leviana, como desejava as outras mulheres com quem se tinha envolvido até então. Madalena era especial. Diferente de todas as outras raparigas. Não usava roupas malucas, pinturas berrantes ou unhas postiças, tal como a moda dos anos oitenta ditava. Também não gostava de sair à noite, fumar ou beber. Era doce. Inocente. Honesta. - Obrigada por me teres trazido – Madalena abriu a portaria do seu prédio sorrateiramente, não fosse a sua mãe estar à janela a estender a roupa.
  • 31. - Não precisas agradecer! Foi um prazer. - Agora tenho que subir! O meu pai já deve estar quase a chegar! Tchau… - Espera – Jorge impediu-a de fechar a porta. - O que foi?! Jorge ficou pela primeira vez sem fala. Nem se reconheceu. E logo ele que sempre era despachado com as mulheres. Se as queria, fazia de tudo para as ter. Se não, dava uma desculpa e ia-se embora. Contudo, com Madalena era diferente. Queria-a tanto, mas tanto, que as palavras teimavam em sair-lhe da boca. Quando as tentava dizer, atrapalhava-se todo. - Estou mesmo a gostar de ti – saiu-lhe essa frase estúpida. Madalena sorriu e baixou o rosto. A deixa perfeita para que Jorge lhe segurasse o queixo e o levantasse delicadamente. Observou-a durante vários segundos. Sentiu por ela um imenso carinho, e por fim, fez o inevitável. O que já deveria ter feito há muito tempo, nomeadamente desde a primeira vez que a viu naquele électrico. Beijou-a. Um longo beijo em frente à portaria do prédio, a ouvir os latidos irritantes da cadela da vizinha do rés-do-chão e a rezar para que o pai de Madalena não aparecesse ali naquela altura. No final, quando saciou o seu desejo e a abraçou com força, sentiu-lhe o calor do corpo. Foi então que ela lhe disse baixinho: - Também gosto de ti. Tornaram-se namorados oficiais ainda naquela tarde, e desde então nunca mais se largaram. Com o passar dos meses, Madalena foi descobrindo novas coisas sobre Jorge. Por ser brincalhão, quase nunca assumia os problemas que o atormentavam. A falta de dinheiro para pagar os estudos obrigava-o a trabalhar à noite a tempo parcial. Os pais não o podiam ajudar. Moravam em Braga, no norte do país, e eram raras as vezes que surgiam possibilidades de lhe enviar quantias monetárias. Jorge também não pedia. O seu orgulho falava sempre mais alto. Preferia passar fome a ter que depender de alguém. Aos poucos, Madalena passou a admirá-lo. Os seus pais também. Leonor foi a primeira a receber Jorge de braços abertos. Gostou da sua frontalidade e do seu jeito despachado. Pareceu-lhe um bom homem que nutria um sentimento sincero pela filha. Já Afonso, o pai de Madalena, mostrou-se reticente com a ideia da sua única filha ter arranjado um namorado. Para ele, Madalena continuava a ser a
  • 32. sua menina. Jamais homem algum seria suficientemente bom para ela. Mas a verdade é que com o tempo, Jorge conseguiu conquistar a confiança do temível militar. Eram constantes as suas visitas lá a casa. Quando trazia Madalena de algum passeio, fazia questão de subir e cumprimentar os seus futuros sogros. Chegou inclusive a brincar com esse facto da última vez que lá foi. Um facto que surpreendeu todos os presentes e deixou Afonso mais descansado relativamente às intenções daquele rapaz para com a sua filha. Quando fizeram um ano de namoro, Madalena recebeu a autorização dos pais para passar o primeiro fim-de-semana fora de casa. Jorge prometeu levá-la a Braga. A sua cidade natal. Queria que ela conhecesse os seus pais e queria também oficializar um compromisso que parecia duradouro. O encontro não poderia ter corrido melhor. Isabel e Henrique, os pais de Jorge, adoraram Madalena no minuto em que a viram. Mostraram-se aliviados por ela não ser uma típica rapariga da cidade dotada de modernismos. Madalena era simpática, simples, honesta e tinha sobretudo objectivos de vida. O filho soube escolher bem. Dois meses se passaram. Fazia um belo final de tarde. Algumas pessoas passeavam pela praia, aproveitando o final do dia para se exercitarem e colocarem a leitura em dia. Deambulavam também os cães, presos pelas coleiras. Ouviam-se os risos das crianças e o som maravilhoso das ondas a bater nas rochas da praia. O Verão estava quase a terminar. As férias também. E em pouco tempo o sol pôs-se ao longe no horizonte. Na escuridão da noite, já não restava vivalma. A praia encontrava-se deserta. Apenas Madalena e Jorge permaneciam deitados na areia, abraçados um ao outro, indiferentes ao adiantado das horas. - Queres-te casar comigo? – Jorge perguntou com os olhos postos na lua. - Estás louco – ela riu-se alegremente, retirando-lhe a cabeça do peito. - Nunca falei tão sério em toda a minha vida – ele sentou-se na areia e encarou a sua expressão surpresa. – Amo-te! Quero-me casar contigo! Quero que sejas a minha mulher! E foi então que Jorge retirou uma pequena caixinha aveludada do bolso. Nesse instante, os olhos de Madalena brilharam no meio da escuridão, tal como o lindo anel de noivado que Jorge fez questão de lhe colocar no dedo. - Aceitas casar-te comigo? - Sim – Madalena saltou-lhe para o pescoço. – Sim! Sim!
  • 33. - Amo-te! - Eu também te amo. Não havia nenhum outro homem no mundo que a pudesse fazer mais feliz, Madalena chegou a essa conclusão quando Jorge a tomou nos braços e a deitou na areia. Era certo. Era real. E parecia não ter fim. Ela viu-se espelhada no rosto dele dali a vinte anos e Jorge teve a mesma visão. - Prometo que hoje não vou fugir – Madalena disse-lhe em voz baixa, quase num tom de murmuro. - Não vais mesmo? – Jorge entrelaçou-lhe os dedos nos cabelos compridos. - Não. Corriam o risco de serem apanhados, ambos sabiam-no bem, mas o desejo falou mais alto que o bom senso. Sem esperar mais, Jorge desabotoou os primeiros botões da blusa branca de Madalena e viu-lhe o soutien de rendas. Percebeu que ela se encontrava nervosa. Tremia por todos os lados e não sabia muito bem o que fazer com as mãos. Por isso, ele conduziu-a. Do príncipio ao fim, sendo que não foi preciso muito tempo para que os seus corpos se conjugassem na perfeição. A partir dessa altura, tudo deixou de ter importância. A timidez de Madalena dissipou-se e veio ao de cima toda a sensualidade que ela havia escondido a sete chaves. Uma sensualidade a que apenas Jorge teve acesso naquela noite e que o deixou à beira da explosão por saber que tinha sido o primeiro homem da sua vida. E enquanto a manteve sentada sobre o seu colo, agarrado aos longos cabelos castanhos, sugando-lhe o pescoço como um louco, ele perdeu-se no tempo e no espaço. Pensou que se morresse ali, provavelmente, morria feliz.
  • 34. 2003 Madalena e Alice abandonaram o veículo da floricultura a menos de vinte e quatro horas do tão aguardado casamento da filha de Beatriz Dias. A viagem foi particularmente atribulada. Perderam-se pelo caminho, encontraram uma rua em obras, demoraram uma eternidade a livrar-se do trânsito, e para piorar a situação, naquela tarde viram-se mergulhadas num calor de quase quarenta graus. Alice foi a primeira a abrir as portas da carrinha, trajando uns corsários brancos, uma t-shirt branca às riscas vermelhas e umas sapatilhas confortáveis para a árdua tarefa que se adivinhava. Madalena seguiu-lhe os passos. Para aquele dia insólito, renunciou a arranjar-se. Nem sequer se maquilhou. Levou umas sabrinas rasas, calças de ganga azuís estreitas e uma blusa às flores algo amassada pela viagem. Os cabelos encontravam-se soltos e desordenados, com os óculos escuros colocados estrategicamente sobre a cabeça para os controlar. Ao saírem da carrinha, as duas floristas depararam-se com uma vista magnífica sobre o Mosteiro dos Jerónimos. Um dos edifícios mais emblemáticos da cidade de Lisboa que já contava com inúmeros anos de história. O vento mantinha-se praticamente inexistente, e o sol, magnífico, queimava os corpos dos turistas que por ali passavam em grupos extensos, ansiosos por saborear os tradicionais pastéis de Belém. - Era aqui onde gostaria de me ter casado – Alice guardou as chaves da carrinha no bolso das calças. - Sabes que este mosteiro nunca me disse nada? - Estás a gozar, não!? - Verdade – Madalena poisou o primeiro arranjo floral no chão. – Sempre o achei um pouco sombrio e cinzento.
  • 35. - E eu que me tive que contentar com uma capelinha em Alvalade. - Já não é mau – Madalena riu-se alegremente perante o infortunio da melhor amiga. - Sim! É óptimo! Tão bom que acho que foi por isso que o meu casamento não demorou muito – Alice limpou o suor na testa. – Bem! Vou lá dentro ver se encontro alguém minimamente prestável para nos ajudar a tirar estas flores da carrinha. - O.k. - Não saias daí! A demora de Alice levou Madalena a alcançar o seu relógio de pulso para ver as horas. Viu que nele estavam marcadas treze horas e quarenta e cinco minutos e que o sol continuava mais abrasador do que nunca. A florista não viu outro remédio a não ser sentar-se na parte traseira da carrinha, encontrando uma sombra mínima com a qual se abrigou. Diante da paisagem, embalada pelos Jardins de Belém e pela Torre imponente, Madalena cruzou os braços e pensou em tudo o que não deveria pensar. Pensou nos filhos, em como eles se deveriam estar a divertir no Algarve e nas saudades que sentia deles apesar de apenas se terem passado vinte e quatro horas desde a última vez que os vira. Era uma mãe galinha, não havia dúvidas. Uma mãe que não sabia quando dar espaço e privacidade aos filhos, que lhes vasculhava todas as gavetas numa tentativa desesperada de encontrar algo escabroso e que passava praticamente todas as horas do dia a pensar neles, isto para não falar da facilidade quase sobre humana em incluir os seus nomes em quase todas as conversas, até mesmo com o entregador do gás. - Trouxe ajuda – ouviu-se finalmente a voz de Alice. Os olhos de Madalena não conseguiram desviar-se da figura daquele homem. Era belo, extremamente belo, e trazia consigo um sorriso radiante que a encantou de imediato. Por instantes, quando o viu pela primeira vez diante de si, Madalena não acreditou que ele fosse real. Foi preciso algum esforço para se recompor e para fingir uma estúpida descontracção de quem há muito não sentia o coração disparar na presença de um ser do sexo masculino. Só Alice a trouxe de volta à realidade. - Encontrei este senhor simpático lá dentro! Foi o primeiro a oferecer-se para nos ajudar. O rapaz forçou-lhes um sorriso cordial.
  • 36. - Olá! - Olá – Madalena saltou da babageira e compôs os cabelos desalinhados. - Já vi que precisam mesmo de ajuda. - Nem sabe – Alice mostrou-lhe os inúmeros arranjos no interior da carrinha. – Acha que nos consegue ajudar a levar isto tudo lá para dentro? - Claro! Mas não me peçam para ajudar na decoração, porque não percebo nada do assunto! Só sou um dos fotógrafos contratados para a cerimónia. - Não se preocupe, porque nós também não percebemos nada de decoração. - Só viemos trazer as flores – Madalena concluiu a resposta de Alice, recuando dois passos quando o fotógrafo se aproximou da carrinha e levantou o primeiro arranjo do chão. - São bonitas – ele disse. - Obrigada – ela sorriu. Beatriz Dias recebeu prontamente as duas floristas à entrada da igreja. Vinham ambas carregadas com arranjos vários florais e suportes, mas não houve tempo para grandes conversas. Madalena e Alice estavam bastante atrasadas e as flores eram a parte fundamental da decoração. Sem elas, tudo estaria irremediavelmente perdido. No interior da igreja encontrava-se a equipa de decoração, em movimentos frenéticos e apressados, tentando ultimar desesperadamente todos os detalhes do casamento. Colocavam fitas, velas perfumadas em cantos estratégicos da capela, pedaços de tule a ligar os bancos do corredor e uma passadeira vermelha enorme até ao altar. Enquanto isso, na sacristia, a noiva e a mãe do noivo trocavam as últimas palavras com o padre que iria presidir à cerimónia. Faltavam menos de vinte e quatro horas para o grande evento. Nada poderia dar errado. - Trouxemos as flores tal como o combinado – Alice forçou um sorriso a Beatriz. - Ainda bem! Podem colocá-las junto ao altar que depois os responsáveis da decoração tratam do resto.
  • 37. As ordens de Beatriz foram imediatamente obedecidas, não só por Madalena e por Alice, mas também pelo fotógrafo que teve a amabilidade de as ajudar a tirar todos os arranjos da carrinha. Fê-lo sem pestanejar ou oferecer qualquer comentário menos agradável, apesar de aquela tarefa não fazer parte das suas funções. Enquanto caminhava em direcção à capela com dois grandes arranjos florais nas mãos, um pouco atrás, Madalena observou-lhe as costas formadas, os ombros largos e as pernas ligeiramente arqueadas. Chegou à conclusão de que ele não aparentava também ter mais do que trinta e cinco anos ou tão pouco muitas experiências para contar. O seu olhar era límpido, genuíno e sincero. A certa altura, quando o trabalho já ia a meio, uma voz louca e descontrolada entrou pela igreja adentro. Beatriz foi a primeira a reconhecê-la. Tratava-se da voz do seu futuro genro. - Rafael!? O que é que aconteceu contigo, querido? Estás todo desgrenhado, todo transpirado… - Aonde é que está a sua filha, Beatriz!? Quero falar com ela agora – ele gritou sem se importar com a presença das inúmeras pessoas que continuavam a ultimar os preparativos do seu casamento. - Tem calma! A Sofia está na sacristia com a tua mãe. As duas estão a falar com o padre. - Então vá chamá-la! - Para quê?! - Chame a sua filha agora antes que eu perca a minha paciência, Beatriz – ele gritou. Beatriz nunca vira aquela expressão nos olhos do genro e também nunca pensou que ele tivesse a coragem de lhe levantar a voz perante a presença de dezenas de pessoas. Mas para controlar o escândalo, ela resolveu acatar a ordem de Rafael e chamar a sua filha na sacristia. O noivo não arredou pé do local. Com as mãos nos bolsos das calças, um olhar raivoso e uma das pernas a tremer, aguardou impacientemente a chegada da sua noiva. Ninguém deixou de reparar nele. A sua expressão era assombrosa. Minutos depois, Sofia chegou ao altar. - O que é que se passa, amor!?
  • 38. - Não me chames de amor – o berro de Rafael ecoou por toda a capela, assustando todos os presentes. – Nunca mais te atrevas a chamar-me de amor, sua ordinária! - O que é que estás para aí a falar? - Que eu já descobri tudo. - Tudo, o quê? – Beatriz, a mãe da noiva, foi a primeira a manifestar-se. - Não sabia, D. Beatriz?! Por acaso não sabia que a sua filha andava a ter um caso com um dos nossos amigos? Com certeza que sabia! Até porque o seu único objectivo sempre foi casar a Joana com um homem rico. Com o primeiro otário que lhe aparecesse à frente e que tivesse uma conta bancária choruda. Não era esse o vosso plano? Diga lá! Só que o otário aqui abriu os olhos a tempo – Rafael não se deixou amolecer pelos olhos chorosos da sua noiva. – E podem crer que não me vão arrancar nem mais um tostão! Nem a mim e nem à minha família… - Rafael, tu só podes estar a brincar – Sofia barafustou. – Aliás, não podes estar a falar a sério! Não podes estar-me a fazer isso a vinte e quatro horas do nosso casamento. - Será que ainda não percebeste, Sofia!? Será que ainda não percebeste que a tua máscara caiu diante desta gente toda? Eu já descobri a verdade! Já sei de tudo e nem adianta sequer inventares mais uma das tuas milagrosas desculpas porque o Eduardo confessou o vosso caso quando eu o encostei à parede hoje à tarde. - A culpa foi dele! - A culpa foi tua – Rafael calou-lhe os argumentos com um berro. – A culpa foi toda tua! Foste tu que estragaste tudo e agora não adianta fazeres esse ar de arrependida porque eu já não acredito em mais nenhuma palavra que venha de ti. - Rafael… - Estás a ver tudo isto? – Rafael começou por arrancar todas as fitas decorativas presas nos bancos da capela. – É lixo! Isto tudo é lixo e não vai servir para mais nada. - Pára – Sofia tentou controlar-lhe os braços furiosos. – Pára com isso! - Acabou! Já não vai haver porcaria de casamento nenhum! Acabou!
  • 39. Rafael destruiu tudo o que lhe passou pelas mãos e destruiu também todo o esforço das pessoas que durante meses trabalharam para o seu casamento. Destruiu velas, fitas, suportes, arranjos, cartões e até mesmo as flores trazidas por Madalena e Alice. Possuído por uma fúria descomunal, tudo o que ele queria era extravasar a vergonha sentida quando descobriu que por cinco anos havia sido constantemente traído pela sua noiva. - Rafael, por favor – Sofia chorava desesperada. – Pára com isso! - Sabes qual era a minha vontade!? Queres realmente saber qual é a minha única vontade neste momento? Perante a sua própria incredulidade, Rafael retirou detrás das costas um objecto que cortou a respiração da sua noiva e a respiração de todas as pessoas que se encontravam presentes naquela igreja. Uma arma de fogo. Um revolver que foi apontado em direcção a Sofia e a deixou completamente petrificada. - A minha vontade é de te matar. - Rafael! Não… Tarde demais. Sem pensar nas consequências dos seus actos, Rafael apertou o gatilho com as mãos a tremer e disparou atabalhoadamente. Um tiro muito pouco certeiro que permitiu que Sofia se desviasse a tempo e se livrasse de um dos maiores azares da sua vida. Um azar que consequentemente acertou em cheio no braço de Alice, fazendo-a cair inanimada junto ao altar. - Meu Deus, Alice! Alice! Estás bem? – Madalena correu ao encontro da sua melhor amiga. – Alice! Nessa altura, um aglomerado de pessoas juntou-se à volta das duas floristas. - Alguém chame uma ambulância, por favor – Madalena voltou a gritar, desesperada. O fotógrafo contratado para a cerimónia foi o primeiro a fazer a chamada, enquanto Madalena, desesperada e com o rosto lavado em lágrimas, segurou a cabeça da sua melhor amiga numa tentativa aflita de a manter acordada. Rafael estava em estado de choque. Tentou aproximar-se da vítima e pediu desculpas. Nunca fora sua intenção magoar ninguém.
  • 40. - Você é louco, é o que é – Madalena gritou, insurgindo-se contra ele. – Saia! Saia daqui! Apesar dos inúmeros pedidos de desculpa que recebeu por parte dos noivos e das suas respectivas famílias, enquanto a sua melhor amiga era levada pela equipa de socorro, Madalena manteve-se resoluta em não aceitar nenhum. Acompanhou Alice até à entrada do mosteiro e desesperou-se por não poder ajudá-la a suplantar as terríveis dores que estava a sentir. - Para onde é que a vão levar? – Madalena perguntou aos socorristas de serviço quando estes colocaram Alice no interior da ambulância. - Para o hospital CUF – um deles respondeu, antes de fechar as portas da ambulância. – Se quiser pode seguir-nos até lá! Madalena apressou-se em direcção ao carro, apesar de estar mais nervosa do que nunca. Nem sequer pensou se teria condições de conduzir um automóvel, tamanho o desejo de estar ao lado de Alice. Por sorte, o fotógrafo que a ajudou a transportar as flores naquela fatídiga tarde de Julho, disponibilizou-se para digirir a carrinha no seu lugar. Vinte minutos depois, pararam à frente das portas das Urgências. Ele imobilizou o veículo e ela saiu esbaforida ao encontro da ambulância. Alice foi transportada numa maca até à sala de triagens e Madalena barrada pelo segurança. Era necessário preencher uma ficha de entrada nos serviços da recepção, ele disse-lhe, e assim, ela não teve outro remédio a não ser acatar as ordens do segurança. Preencheu os dados de Alice, pelo menos os que sabia, e aguardou que lhe fossem fornecidas quaisquer informações relativamente ao estado de saúde da sua amiga. Mas nada lhe foi dito. A única pessoa a aproximar-se de si na sala de espera foi o fotógrafo quando este conseguiu estacionar a carrinha da floricultura no parque do hospital. - E então? Ela já foi atendida? – ele perguntou. - Levaram-na há pouco lá para dentro – Madalena permitiu que ele se sentasse ao seu lado. – Mas ainda não sei de nada! Estou à espera que me digam alguma coisa. - Vai correr tudo bem! Vai ver! Tome as chaves da carrinha. - Obrigada. Madalena manteve-se nervosa, sentada numa cadeira perto da janela, de braços cruzados e com um olhar pensativo. Aguardou impacientemente notícias da sua
  • 41. melhor amiga. Temia pelo que lhe pudesse acontecer e responsabilizava-se em silêncio por ter aceitado fornecer as flores para aquele maldito casamento. Nunca o deveria ter feito. Se soubesse, jamais faria aquele negócio. O dinheiro ganho não compensava todo o susto e todo o transtorno. - Ainda não sei o seu nome – o fotógrafo proclamou após um longo silêncio. - Madalena Soares – ela respondeu. – E você? - Sérgio Almeida. - Prazer – apertaram cordialmente as mãos. – Foi muito amável da sua parte ter-me trazido até cá! Desculpe se ainda não tinha tido a oportunidade de lhe agradecer. - Não se preocupe com isso. - Mas se precisar ir embora, por favor… - Não a vou deixar aqui sozinha – a resposta de Sérgio fê-la esboçar um ligeiro sorriso. - Obrigada. - A sua amiga vai ficar boa, tenho a certeza. - É o que eu também espero. Raios! Lembrei-me agora! Tenho que fazer uma chamada. Madalena encontrou o telemóvel no bolso do casaco e digitou o número da loja. Precisava avisar à sua funcionária que não iria chegar a tempo do fecho. Durante o telefonema, também não adiantou muitos detalhes sobre o sucedido. Não quis assustar Joana ou dar informações erradas, visto os médicos ainda não se terem pronunciado sobre o estado clínico de Alice. A única coisa que fez foi pedir à sua funcionária que tratasse de tudo e que levasse a chave de loja, entregando-a na segunda-feira ao início da manhã. Quando Madalena desligou a chamada, um médico de serviço entrou na sala. Trouxe um pequeno bloco de notas nas mãos, e no peito, pendurado na bata, uma placa identificativa. Pedro Fonseca era o seu nome. - São os acompanhantes da Srª Alice Martins? – ele perguntou apressadamente.
  • 42. - Sim, somos – Madalena saltou da cadeira. Sérgio seguiu-lhe os passos. – Como é que ela está, Drº? É grave? - Não! Podem ficar descansados! Está tudo bem com a Srª Alice! Por sorte, a bala atravessou o braço direito de raspão, mas não ficou sequer alojada. Foi mais o susto e o choque. - Graças a Deus – Madalena respirou de alívio. - Já realizámos os primeiros exames e procedemos aos curativos com o devido enfaixamento do braço! A Srª Alice encontra-se bem agora. Está a descansar e deverá ter alta amanhã… O médico saiu da sala logo em seguida, levando consigo o mesmo bloco que trouxe nas mãos. Não parecia preocupado com o estado de saúde da sua paciente, o que de certa forma deixou Madalena bem mais aliviada. Era sinal de que estava tudo bem. De que tudo não tinha passado de um susto, tal como o próprio fizera questão de frisar. - Acho que agora podemos ir tomar um café, não?! – Sérgio interrompeu-lhe os pensamentos. – O pior já passou. Ela sorriu. - Sim! Já passou. Madalena e Sérgio entraram no bar do hospital em silêncio. Na altura, o recinto encontrava-se praticamente às moscas, com apenas três mesas ocupadas e o olhar distraído de uma empregada que assistia a um programa na televisão. Minutos depois, dois cafés e duas garrafas de água foram levados à mesa escolhida por Sérgio e Madalena. - Está mais calma? – ele perguntou. - Agora estou um pouco melhor. - Eu disse que a sua amiga iria ficar boa. Madalena sorriu ao ouvir a resposta de Sérgio e encontrou a mesma amabilidade de volta. Era a primeira vez que se encaravam de frente, menos tensos e com a certeza
  • 43. de que o final daquela história poderia ter sido muito pior. Sérgio abriu a garrafa de água num só gesto e Madalena fez o mesmo. Beberam um longo gole e em seguida degustaram o café. - Disse-me que era fotógrafo – Madalena poisou a chávena sobre a mesa. - Sim! Tenho um estúdio de fotografia. - Deve ser uma profissão interessante. - Eu acho que é! Ou pelo menos hoje tornou-se… A resposta de Sérgio arrancou uma leve risada a Madalena. A primeira desde que chegaram ao hospital. Foi só nesse instante que ele reparou o quanto o seu sorriso era belo e sincero. - Concordo. - E você? Para além de aparecer em casamentos recheada de flores, o que é que faz? - Digamos que a minha vida é recheada de flores. - Como assim?! - Sou proprietária de uma floricultura! Ou melhor, de duas… - Outra profissão interessante. - O quê? Vender flores? Nem tanto – Madalena riu-se, encabulada, voltando a beber um novo gole de café. – Não tem nada de interessante, garanto-lhe! - Tem a certeza? Se fosse assim tão desinteressante não estaríamos aqui neste hospital, não acha?! Madalena sorriu e manteve os braços apoiados sobre a mesa, enquanto as mãos brincavam com a chávena de café numa tentativa frustrada de fugir aos olhares insidiosos de Sérgio sobre si. Ele era um homem realmente muito bonito. - Tem razão – ela concordou após um minuto de silêncio. – A minha profissão é muito interessante, tal como a sua…
  • 44. Alice ainda se encontrava um pouco narcotizada pelos analgésicos, mas ciente de que tinha conseguido escapar de boa. Após uma breve conversa no quarto do hospital, Madalena despediu-se dela e prometeu uma nova visita assim que o dia amanhecesse. Já era tarde, Alice disse-lhe. Era melhor ir para casa e descansar pois o dia havia sido repleto de emoções. Minutos depois, as portas automáticas voltaram a abrir-se, e por elas, saíram Madalena e Sérgio no mais completo silêncio. Já passava das vinte e uma horas e a temperatura começava a baixar. Com o casaco de malha nos braços, Madalena caminhou lentamente em direcção ao carro. Estava exausta. Cheia de dores nas pernas e nos braços, para além da enxaqueca irritante que a tinha acompanhado desde o início da tarde. A única coisa que lhe apetecia na altura era chegar a casa e cair na cama, tal como Alice lhe aconselhara momentos antes. - Não precisa de nada? – foi a pergunta de Sérgio quando se aproximaram da carrinha. - Acredite que já fez muito por mim – Madalena abriu as portas do automóvel sem esconder o seu cansaço extremo. – Deixou aqui dentro o seu equipamento fotográfico. - Obrigado – ele recebeu a mochila, colocando-a atrás das costas. - Ai, desculpe! Que parva! Trouxe-me até aqui e eu nem sequer perguntei se queria uma boleia. Entre! Eu deixo-o em… - Não, não é preciso! Daqui sigo directamente para casa! Não moro muito longe. - Tem a certeza? Não me custa nada. - Está tudo bem! Não se preocupe. - Bem! Então assim sendo, agradeço-lhe mais uma vez! Fico-lhe a dever uma… - Quem sabe um dia não lhe venho a cobrar esse favor? - Sinta-se à vontade para o fazer. Foi um momento estranho e perturbador quando se despediram com dois beijos atabalhoados na face. Depois disso, Madalena enfiou-se no interior da carrinha e colocou o cinto de segurança perante o olhar atento de Sérgio. Sorriram pela última
  • 45. vez numa despedida não muito desejada. Ele afastou-se do veículo e Madalena retirou a carrinha do lugar de estacionamento ciente de que nunca mais o voltaria a ver. Podia pedir-lhe o número de telefone, de facto. Mas e daí? O que tinham eles em comum para além de terem assistido a um tiroteio em pleno Mosteiro dos Jerónimos? Nada. E nem valia a pena criar ilusões ou fazer conjecturas. Se ele não teve o desejo de lhe pedir o telefone era porque também pensava o mesmo. Alice abandonou o hospital na manhã seguinte acompanhada por Madalena e pela sua irmã mais nova. Ficou combinado que a florista ficaria em casa da irmã até se recuperar dos ferimentos e se sentir pronta para voltar ao trabalho. Madalena exigiu que a amiga não tivesse qualquer pressa. O importante era que ficasse boa. O trabalho na floricultura era o menos importante. Uma semana depois, quando regressou a casa ao final da tarde, Madalena atirou-se para debaixo do chuveiro sentindo-se exausta, tal como sempre. Os dias na floricultura tomavam-lhe todo o tempo e também todas as forças. Nunca lhe passou pela cabeça ser tão difícil gerir um negócio sozinha, e sem a ajuda preciosa de Alice, a tarefa tornava-se mil vezes mais penosa. Depois do banho e de vestir uma roupa confortável, Madalena desceu à cozinha. Confiscou o seu frigorífico, mas a sopa do dia anterior não lhe encheu as vistas. Também não tinha fome. Preferiu aproveitar aquela noite quente de Verão, descalça em frente à bancada da cozinha, para se deliciar com um saboroso chá de frutos silvestres e duas torradas de pão integral. Acompanhou-as com um paté e com uma revista de decoração de interiores. Um fetiche que a relaxava sempre que se sentia cansada. Contudo, o seu imaginário decorativo foi interrompido minutos depois quando o telefone tocou ao fim de três dias de um silêncio ensurdecedor. Ao reconhecer o remetente, Madalena largou a chávena sobre a bancada e sentiu o seu coração encher-se de alegria. Eram os seus filhos. Sara e Daniel. Daniel era o mais animado e também o único que falou sobre os banhos de piscina, os passeios pela vila e os presentes que a cada duas horas recebia do pai e de Vanessa Loira Burra – um apelido carinhoso que Madalena encontrou para caracterizar a nova namorada do ex-marido. Mas quando deixou escapar que os planos da viagem se tinham alterado graças aos bilhetes que o pai conseguira comprar para Marrocos, Madalena sentiu os seus olhos esbugalharem de estupefacção. - Mas não tinha ficado combinado que as férias iriam ser até ao Algarve? - O pai disse que havia uma promoção espectacular na agência de viagens e que podíamos prolongar as férias por mais alguns dias.
  • 46. Madalena passeou pela cozinha, esbaforida, tentando assimilar todas aquelas informações. – Vocês só podem estar a gozar comigo, não? Daniel! Passa-me o telefone ao teu pai! Ele está aí ao pé? - Está. - Então passa-lhe o telefone agora! Foram os cinco segundos mais longos da sua vida, mas ainda assim, enquanto esperava por eles, Madalena não desistiu dos seus intentos em falar com o ex- marido. - Sim… – a voz de Jorge veio acompanhada de um longo suspiro. - Será que eu ouvi bem o que o Daniel disse? Ou será que bati com a cabeça em algum móvel aqui da cozinha?! - Lena! Não queiras ser irónica porque isso não faz minimamente o teu estilo. - Por que raios queres tu levar os meus filhos para Marrocos? - Nossos filhos! A Sara e o Daniel também são os meus filhos, lembraste?! – Jorge corrigiu-a. - Ai agora é que te lembras disso? - Sinceramente, não percebo qual é o problema de irmos todos a Marrocos. É mesmo aqui ao lado! Vamos até Espanha e de lá apanhamos o barco… - Tinhas tudo planeado! Desde o primeiro minuto. - Não tinha nada planeado – Jorge mentiu. – Mas mesmo que tivesse, agora já não há como voltar atrás! Já comprei as passagens e não dá para devolver. - Quer dizer, isto já é um assunto tão resolvido, que nem sequer te passou pela cabeça pedir a minha autorização? Nem sequer te passou pela cabeça que eu pudesse estar contra a ideia de levares os meus filhos para um outro país? Por acaso foi a tua querida namorada quem deu essa ideia? Jorge riu-se com algum sarcasmo. – Hã, já percebi…
  • 47. - Percebeste o quê? - Estás a morrer de ciúmes. - Eu?! - Sim! Tu… - Não sejas ridículo, Jorge. - Pois eu falei com os nossos filhos e eles mostraram-se muito contentes com a ideia de conhecer Marrocos. - Só por cima do meu cadáver. - Cuidado! Olha que milagres acontecem – Jorge não resistiu a espicaçar a ex-mulher com uma gargalhada que não foi de todo correspondida. Nessa altura, ele percebeu que aquele não era o melhor caminho por onde deveria enveredar. – Lena! Eu só te estou a pedir para que sejas razoável. São só mais duas semanas para além do estipulado. Voltamos no final de Agosto. Além disso, se as crianças regressassem a Lisboa, o que é que iriam fazer para além de ficarem em casa sentadas em frente à televisão enquanto tu vais cuidar das tuas flores!? - Impressionante como não perdes uma única oportunidade para menosprezar o meu trabalho. - Desculpa… – Jorge riu-se num claro tom de deboche. – Não era essa a minha intenção. Mas pensa no que te estou a dizer! Conhecer Marrocos é uma oportunidade única que nem todas as crianças conseguem ter. Vá lá! Tu sabes que a Sara e o Daniel iriam adorar… Ouviu-se um longo silêncio no outro lado da linha. Era a primeira vez que Madalena equacionava a proposta do ex-marido. Pelos filhos. Fê-lo unicamente por eles. Não queria privá-los de desfrutarem de umas férias fantásticas. Algo que nunca poderiam ter caso voltassem a Lisboa antes da data prevista. - E quando é que voltavam de Marrocos? - No final de Agosto! Já te disse! São só mais duas semanas para além do que tínhamos combinado. Ninguém vai morrer por causa disso, nem mesmo tu! Aliás, acho que devias aproveitar essas férias para incrementar a tua vida social e esquecer
  • 48. um pouco o papel de mãe galinha. Aproveita para sair, conhecer novas pessoas. Aposto que te ia fazer muito bem… - E se fosses à merda, Jorge!? Já pensaste nisso? No dia seguinte, enquanto Joana atendia um dos inúmeros clientes que habitualmente passava pela floricultura, Madalena não deixou de meditar nas palavras que o seu pai lhe disse na noite anterior. Será que ele tinha razão? Será que ela não deveria baixar as guardas e tentar entender-se com o ex-marido para o bem das crianças? Jorge sempre foi um péssimo marido, isso era um facto, mas como pai fazia o que podia. Pagava religiosamente todos os meses a pensão de alimentos, telefonava duas a três vezes por semana para saber como estavam os filhos e sempre que o trabalho deixava ia buscá-los ao fim-de-semana. Diante de tudo isso, Madalena perguntou-se se não estaria a ser demasiado intransigente. Era o casamento dos dois que havia terminado, não a relação de Jorge com os filhos. Quando terminou de atender o último cliente da manhã, Joana interrompeu os pensamentos de Madalena e informou-a de que iria aproveitar a hora de almoço para passar pela farmácia. - Queres que te traga alguma coisa da rua? - Não! Não precisas preocupar-te – Madalena manteve-se concentrada na análise da tabela dos fornecedores. – Quando voltares eu como qualquer coisa ali no café da esquina. - Está bem! Vemo-nos daqui a uma hora. - Até já. As portas automáticas voltaram a fechar-se quando Joana saiu por elas, mas nem isso tirou a concentração de Madalena da frente do computador. Era urgente terminar a tabela dos fornecedores e também anotar os novos preços dos produtos da floricultura. Para isso, ela muniu-se de uma calculadora, dos seus óculos de leitura e agradeceu o silêncio que se apoderou da loja numa altura de pouco movimento. Porém, quando o relógio marcou treze horas e quinze minutos, as portas da loja voltaram a abrir-se trazendo um perfume inebriante da rua. Era a primeira vez que Madalena sentia aquele odor e também aquela presença. Levantou o rosto e reconheceu de imediato o novo cliente que entrou na sua loja. Era ele. Sim. Era ele. O fotógrafo com quem se cruzou dias antes. Vinha trajado com umas calças de ganga
  • 49. azuís e uma t-shirt preta, não trazendo mais nada a não ser um sorriso estampado no rosto e aqueles olhos verdes irresistíveis. - Olá – ele disse. – Tudo bem? - Olá… – Madalena desfez-se imediatamente dos óculos de leitura e saiu por detrás do balcão. - Ainda se lembra de mim? - É claro que me lembro! Como é que me poderia esquecer! Sérgio Almeida, não?! - Exactamente – ele sorriu. Sérgio lançou os olhos àquele espaço repleto de flores, luz e um encanto fora do normal. Era sem sombra de dúvidas um lugar admirável que seduzia quem quer que passasse por ali. Contudo, ao voltar-se novamente para a sua proprietária, o fotógrafo deu-se conta de que era Madalena quem tornava aquele recanto tão especial. - Então este é que é o MAR DE ROSAS? - Como é que descobriu…? - A loja?! – Sérgio voltou-se para ela com um sorriso. - Sim. - Na carrinha! Estava escrito o endereço e o telefone. - Claro – Madalena riu-se, envergonhada. - Então!? Como é que está a sua amiga? - A Alice? - Sim! Já saiu do hospital? - Sim! Ela está bem agora. Está em casa da irmã a recuperar-se e deve voltar ao trabalho dentro de algumas semanas.
  • 50. - Fico contente que não lhe tenha acontecido nada de grave. Sérgio e Madalena voltaram a sorrir de uma forma cúmplice. Ambos sabiam-no bem. A visita do fotógrafo não foi uma simples coincidência ou sequer a tentativa de saber como Alice tinha conseguido sobreviver ao tiro que levou no braço. Era muito mais do que isso. Era a necessidade de a voltar a ver. - Já almoçou? - Não – Madalena sorriu. – Estou à espera que a minha funcionária termine a hora de almoço. - E quando ela vier, vai almoçar em algum restaurante aqui perto? - Num café ali na esquina! Como não estou com muita fome, vou comer apenas uma sandes ou algo assim. - Então eu convido-a para almoçar comigo. O convite inesperado de Sérgio deixou-a surpreendida. – Almoçar consigo? - Sim! Porque não!? Eu ainda tenho que fazer umas compras de um material fotográfico aqui perto, mas devo estar despachado dentro de trinta minutos. O que é que me diz? Um almoço e escolhe você o restaurante… - Eu não sei. - É só um almoço. A proposta não poderia ser mais tentadora, de facto, assim como o sorriso que Sérgio lhe ofereceu em seguida. Raios. Como ele era sedutor e como a fazia sentir-se como uma verdadeira adolescente. No fundo, Madalena sabia que não deveria aceitar aquele convite. A atitude mais sensata seria recusá-lo, até porque era evidente que os dois não tinham absolutamente nada em comum. Sérgio parecia mais novo e livre de responsabilidades. Tudo nele gritava perigo e excitação. E realmente seria uma loucura cogitar um almoço de última hora com um homem do qual ela sabia pouco mais que o nome. - Posso escolher o restaurante? – Madalena cometeu a loucura de ignorar o seu sexto sentido.
  • 51. - Claro que sim. - Então está bem! Encontramo-nos daqui a trinta minutos num restaurante no final desta avenida! Chama-se O Sobreiro. - Acho que já sei qual é. - O único problema é que eu não me vou poder demorar muito. - Não faz mal! Contento-me com o tempo que me puder dar. - Combinado – ela sorriu. Joana atrasou-se na farmácia e os trinta minutos que Sérgio estipulou para o almoço rapidamente se transformaram em quarenta. Quando a sua funcionária entrou na loja, Madalena correu ao armazém para buscar o casaco e a mala. Tenho que ir, foram as últimas palavras que proferiu a Joana antes de sair disparada pelas portas automáticas. Depois disso, iniciou uma caminhada interminável pela avenida, sabendo bem que a sua pressa para almoçar prendia-se com tudo, menos com a fome que disse sentir. Quando chegou ao restaurante combinado, Madalena avistou a mesa escolhida por Sérgio. Ficava no fundo do salão, perto da janela. Ele já se encontrava à sua espera, mas a expressão séria que tinha no rosto enquanto falava ao telemóvel trouxe-lhe uma nova hesitação. Devia ou não avançar? Ou pelo contrário! Será que não era melhor desaparecer e fingir que nunca estivera ali? O dilema de Madalena teve fim quando Sérgio acenou de longe. Ela correspondeu de igual forma, forçando-lhe um ligeiro sorriso enquanto caminhava lentamente em direcção à mesa. Quando chegou ao seu destino, Sérgio apressou-se a desligar a chamada. Madalena vinha mais bonita do que nunca, ele reparou. Trajada com um simples vestido castanho um pouco acima dos joelhos e os cabelos soltos, o que mais saltava à vista era a sua pele tão branca como a de uma boneca de porcelana. - Espero não ter interrompido nenhuma conversa importante – ela sentou-se à mesa com alguma cautela. - Não, claro que não! Apenas trabalho. - Ainda bem.
  • 52. - Tinha combinado uma sessão fotográfica com uma modelo e ela telefonou-me para saber se a sessão ainda continuava de pé. - E continua? - Claro! Normalmente, não costumo voltar atrás quando dou a minha palavra. - É bom saber isso. - Bebe alguma coisa? – Sérgio exibiu um sorriso radiante que a contagiou de imediato. - Um sumo de manga, por favor! - Então eu também vou tomar o mesmo. O almoço com Sérgio revelou-se muito mais agradável do que à partida Madalena poderia supor. Embalados numa conversa animada, os dois desconhecidos degustaram a refeição trazida por um dos empregados do restaurante. Pediram Carpaccio de Vitela como entrada e finalizaram a refeição com uma deliciosa Carne de porco à Alentejana. E logo Madalena que durante a manhã já se tinha conformado com a ideia de uma simples sandes mista e de uma sopa no café da esquina. No entanto, naquela ensolarada tarde de quarta-feira, os seus intentos saíram furados. Sérgio conseguiu livrá-la da sua rotina entediante. - Há quanto tempo tem a sua floricultura? – ele perguntou. - Na verdade, a floricultura era da minha mãe e já existia há muitos anos. Eu apenas assumi o negócio. - Deve ser uma mina de ouro, não?! - Nem tanto! Mas tem um significado especial porque pertenceu à minha mãe. É uma das poucas lembranças que ainda tenho dela. - Morreu?! - Sim! Há dois anos. - E você ficou à frente do negócio?
  • 53. - A loja está no nome do meu pai, mas sou eu quem a dirige! Digamos que um ex- militar da marinha não teria muito jeito para tomar conta de um negócio relacionado com flores – Madalena e Sérgio riram-se alegremente sem conseguir tirar os olhos um do outro. – Por isso, resolvemos fazer uma sociedade. Eu tenho quarenta e cinco por cento, ele tem cinquenta, e a minha amiga, a Alice… - A que levou um tiro no braço. - Exactamente – riram-se novamente. – Ela tem cinco por cento. - E o nome da loja? Foi a sua mãe que escolheu? - Sim! UM MAR DE ROSAS! Eram as flores que ela mais gostava. - Deve sentir muita falta dela, não?! - Todos os dias – Madalena sorriu tristemente. – Mas e você?! Disse-me que tinha um estúdio fotográfico. - Sim! Há quatro anos! Com um grande amigo meu que também é meu sócio. Trabalhamos em parceria e no final dividimos os lucros. Tem sido uma boa experiência. Ele é um excelente fotógrafo. - Tenho a certeza que você também é. - Há quem diga que sim. Madalena regressou à sua floricultura quarenta minutos depois. Despediu-se de Sérgio e agradeceu o excelente almoço que este lhe proporcionou. Contudo, o fotógrafo não parecia disposto a deixá-la partir. Cada assunto, por mais desinteressante que fosse, era motivo de conversa. E ali permaneceram os dois, indiferentes ao adiantado das horas como se já se conhecessem há milhares de anos. Passaram inclusive a tratar-se por tu. No final, Sérgio encheu-se de coragem e pediu o número de telefone a Madalena. Ela hesitou por breves instantes, mas acabou por ignorar mais uma vez o seu sexto sentido. Três dias depois, ele voltou a surpreendê-la com um novo convite. Intimou-a para um jantar, a dois, num restaurante agradável que ele conhecia. Sábado. Às vinte horas. Disponibilizava-se para a ir buscar a casa e não aceitava um não como resposta. Madalena não teve outro remédio a não ser aceitar o convite. Com os filhos
  • 54. de férias, a sua agenda mantinha-se livre até o final de Agosto. E pela primeira vez, desde o nascimento das crianças, ela congratulou-se por ter um tempo só para si. - Comprei-te algumas coisas – Madalena abriu as portas do frigorífico quando o pai a visitou em casa a poucas horas do seu encontro com Sérgio. – Ponho-te tudo num saco para levares! - Não precisavas preocupar-te com isso! Já te disse que me arranjo. - Estou-te a achar muito magro! Tens a certeza que te estás a alimentar como deve ser? - Estou-me a alimentar muito bem se queres que te diga – Afonso acendeu um cigarro junto à marquise da cozinha. - De cigarros já estou a ver. - E existe algum alimento melhor? - Não brinques com coisas sérias – Madalena continuou a colocar as compras do pai em dois sacos de plástico. – Já te disse várias vezes que devias deixar de fumar, especialmente por causa da tua idade. - Só tenho sessenta e sete e tratas-me como se já tivesse passado dos oitenta. - Pelo contrário! Eu trato-te como trato o Daniel, porque psicologicamente, ainda nem chegaste aos dez. - Está bem – Afonso riu-se alegremente e voltou a levar o cigarro à boca. – Por falar nos miúdos, como é que eles estão lá de férias com o pai? - Falei ontem com eles e ainda estavam no Algarve! Só na segunda-feira é que vão para Marrocos. - Fizeste bem em deixá-los ir com o Jorge. - Sinceramente, pai?! Eu não sei. - A Sara e o Daniel também precisam de estar com o pai.
  • 55. - O Jorge não é uma boa influência para os miúdos. - Todo o pai é uma boa influência para os filhos – Afonso cerrou os olhos quando o fumo do tabaco lhe saiu pelo nariz. Madalena suspirou fundo e resignou-se à ideia de que o seu pai iria ser para sempre um eterno aliado de Jorge. Não havia nada a fazer. Apesar de todas as razões que ditaram o fim do casamento da sua filha e do seu genro, Afonso continuava a nutrir um carinho especial pelo advogado. Sentia muitas vezes saudades dos tempos em que partilhavam uma partida de xadrez, um licor nos almoços de família e a eterna rivalidade futebolística. Afonso torcia pelo Benfica, enquanto Jorge, por ter nascido no norte, não escondia a sua preferência pelo Futebol Clube do Porto. - Sabes uma coisa?! – Madalena sentiu-se tentada a revelar um segredo ao seu pai. - O quê? - Hoje tenho um jantar. - Com a Alice? - Claro que não! A Alice ainda continua com o braço enfaixado desde aquele maldito dia do casamento. Contei-te a história, não te contei? - Ela devia era processar o tipo que lhe deu o tiro. - Parece-me que conseguiram chegar a um acordo. - Que acordo? – Afonso perguntou, curioso. - O maluco do homem ofereceu-lhe cento e vinte mil euros apenas para que ela não apresentasse uma queixa formal à polícia. - Cento e vinte mil euros?! Bem! Diz-me onde é que este tipo anda para lhe poder oferecer o meu braço. - Não sejas parvo, pai! Todo esse dinheiro não compensa o susto e as dores por que a Alice passou naquele dia.
  • 56. - Eu sei! Estava a brincar! Mas diz-me lá, minha menina! Disseste que tinhas hoje um jantar. Posso saber com quem? - Com um homem – Madalena sorriu maliciosamente. - Homem!? Que homem?! - Um amigo! Mas por agora a única coisa que precisas saber é que vou jantar com uma pessoa muito simpática, inteligente e interessante. Tudo o que o Jorge não é e nem nunca foi… - Não estou a gostar nem um pouco dessa história. - Aqui tens a tuas compras da semana! Leva-as e deixa-me preparar para o meu grande jantar. - E onde é que vai ser esse tal grande jantar? - Ainda não sei! Ele ficou de escolher o restaurante. - Vê lá o que é que fazes, minha menina – Afonso puxou-lhe o nariz tal como fazia quando ela era pequena. – Juízo! Ao ver-se através do espelho do quarto depois de escolhido o centésimo vestido que lhe passou pelas mãos, Madalena chegou à conclusão que aquela realmente não era a melhor opção para si. O decote revelava o desespero de uma mulher que já não saía para jantar com um homem há pelo menos três anos, sendo que essa não era a primeira impressão que ela queria causar. Por isso, sem hesitações, Madalena voltou a abrir o roupeiro e encontrou um novo vestido. Branco. Com um decote à barco. Cintado. Um pouco acima dos joelhos. O vestido perfeito para uma noite que também prometia ser perfeita. Depois da roupa escolhida, seguiram-se os cabelos. Naquela noite permaneceram soltos, volumosos e ligeiramente cacheados. A maquilhagem primou pela simplicidade. Apenas um batom rosa clarinho, um blush tangerina, rímel e sombra. Foi nessa altura que a campainha tocou, e sabendo bem quem era a sua visita, Madalena desceu ao rés-do-chão mergulhada num nervoso miudinho. Ajeitou os cabelos novamente à frente do espelho da entrada e respirou fundo. Já não havia como voltar atrás. Era ele. - Olá! – Sérgio conseguiu desarmá-la com um sorriso.
  • 57. - Olá… As calças de ganga e a camisa branca de Sérgio contrastaram com a produção meticulosa de Madalena. - Estás lindíssima – ele não conteve o elogio. - Obrigada – ela disse, abrindo passagem. – Entra! - Dás-me licença? - Claro. Sérgio aceitou o convite e não demorou a chegar à sala, onde avistou uma decoração simples e sofisticada. Uma nova decoração que Madalena fez questão de produzir aquando do seu divórcio com Jorge. E sim. Dos antigos móveis comprados pelo ex- marido não restou absolutamente nada. - Quem são? – Sérgio alcançou um porta-retratos sobre a mesinha. Nele, encontrava- se uma fotografia de Sara e Daniel abraçados. - Os meus filhos – Madalena achou por bem não esconder a verdade. Sérgio analisou-os com atenção sem esboçar qualquer comentário. Não se apercebeu sequer do profundo nervosismo demonstrado por Madalena quando esta deixou escapar que era mãe de duas crianças. - O.k! Estás oficialmente autorizado a desistir do nosso jantar. - Porquê!? – Sérgio não percebeu a piada. - Por nada – ela reconheceu a gafe. – Quer dizer, desculpa! Estava a brincar. - São bastante parecidos contigo. - Obrigada! Partindo do pressuposto que isso seja um elogio… – riram-se os dois. - É claro que é um elogio.
  • 58. A resposta de Sérgio trouxe um novo silêncio e um sorriso cúmplice que fez Madalena corar sem querer. - Talvez fosse melhor irmos andando antes que se faça mais tarde, não?! O que é que achas? – ela indicou-lhe a saída. - Claro! Vamos. - Deixa-me só desligar o gás e as luzes na cozinha. O restaurante escolhido por Sérgio era simples e casual. Localizava-se numa das ruas mais movimentadas da cidade, e no seu interior podia-se ver uma quantidade exorbitante de clientes, o movimento frenético dos funcionários e a música ambiente em contraste absoluto com o barulho das conversas e da televisão ligada ao fundo do restaurante. Mas nada disso desviou a atenção de Sérgio. De Madalena, ele tudo queria saber, e dele, ela fez questão de dissecar todos os pormenores. Soube que morava sozinho um apartamento nos arredores de Lisboa, nunca fora casado, filhos não teve, pelo menos que soubesse, e passava a maior parte dos dias enfiado no estúdio de fotografia que abrira em sociedade com um colega e amigo de curso. Além disso, era órfão desde os dois anos de idade e o único familiar vivo que lhe restava era um avô que morava no Alentejo e que ele fazia questão de visitar sempre que podia. - Fico feliz por saber que te dás tão bem com o teu avô – Madalena poisou o guardanapo sobre o colo. - Só fomos obrigados a nos separar quando vim para Lisboa fazer o curso de fotografia. - E vocês vêem-se com muita frequência? - Não tanto quanto gostaria, mas sempre que tenho algum tempo faço questão de aparecer por lá… – Sérgio poisou os braços sobre a mesa após o término do jantar. Sorriu e apoiou o queixo sobre as mãos. – Ele mora numa casinha toda pintada de azul. É uma casa simples e ele até tem dinheiro para comprar uma melhor, mas o problema é que é demasiado apegado às lembranças do passado. Especialmente às lembranças da minha avó e da minha mãe. Diz que jamais seria capaz de abandonar uma casa onde a mulher deu à luz a própria filha. - Uau – Madalena exibiu um doce sorriso. – É realmente muito querido da parte dele.
  • 59. - Quem sabe um dia não te levo lá. - Eu?! - Sim! Porque não? - Confesso que me apanhaste de surpresa. - Tenho a certeza que irias gostar – Sérgio não se deixou distrair por nada mais naquele restaurante a não ser pelo sorriso dela. – Sempre que me sinto cansado do trabalho e quero descansar um pouco, fujo para lá e passo os dias a pescar com o meu avô. - Parece-me um programa interessante. - Podes crer que é! E quando voltamos da pescaria com… um peixe e meio nos baldes… – Madalena soltou uma gargalhada ruidosa. – Vamos para o quintal e assamos lá o nosso jantar. - Eu gostaria muito de conhecer o teu avô. A tua relação com ele parece-se um pouco com a relação que tenho com o meu pai. - Verdade?! - O meu pai também é o meu melhor amigo. Acho que não conseguiria imaginar a minha vida sem ele. - Tens ar de menina do papá. - E sou… – Madalena riu-se alegremente sem perceber o olhar de profundo fascínio que Sérgio lhe lançou do outro lado da mesa. – Sou mesmo! Confesso que sempre fui muito mimada pelo meu pai. Talvez por ser filha única, não sei… - Deve ter sido muito difícil para ele quando a tua mãe morreu, não?! - Foi a pior fase das nossas vidas. - Ela morreu do quê?! – Sérgio perguntou com alguma cautela. – Não me chegaste a contar da outra vez.