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MULHERES-PERSÉFONE
E SUA DESCIDA AO SUBMUNDO ATRAVÉS DA POESIA
Marceli Eduarda Charão Gambatto
Mito de Perséfone
Filha de Deméter e Zeus, Coré é raptada por Hades, senhor do submundo, ao se
distrair colhendo flores. Desesperada pelo desaparecimento da filha, Deméter a
procura incessantemente por nove dias e nove noites, sem sucesso. Hécate é a
única deusa que ouviu o grito de Coré ao ser raptada e é através dela que
Deméter descobre que Hades teria sido o responsável pelo desaparecimento de sua
filha. Tomada de ira e tristeza, Deméter decreta que nada mais nasce na terra até
que tenha sua filha de volta. Zeus, preocupado com o futuro da humanidade e dos
próprios deuses que dos humanos dependem, intervém mandando Hermes
comunicar Hades para que permita o retorno de Coré. Ao deixar Perséfone
retornar para Deméter, Hades dá sementes de romã para que ela coma. Quando a
filha retorna para a mãe, já não é mais Coré, a donzela, é Perséfone, a Rainha do
Mundo Inferior. Algumas versões do mito sugerem que Perséfone comeu de boa
vontade sabendo que comer algo no submundo a deixaria eternamente ligada ao
mundo inferior. Assim passou a se dar as estações. No momento do ano em que
Perséfone está com Deméter a vegetação cresce, dá frutos e há abundância,
configurando a primavera e o verão. Quando Perséfone desce para o mundo
inferior, a vegetação decai, os frutos ficam escassos e o inverno se instaura.
Mas, afinal, o que é uma deusa?
De acordo com a teoria junguiana, as deusas são arquétipos,
fontes de padrões emocionais de pensamentos, sentimentos,
comportamentos e instintos que poderíamos chamar de
"femininos", no aspecto mais amplo possível desta palavra.
Os gregos e demais culturas antigas não percebiam essas
energias como abstrações destituídas de alma, e sim como
forças espiritualmente vitais.
Tais forças ou energias estão exercendo continuamente grande
influência sobre os processos psicológicos que vivenciamos.
Não é apenas uma, mas várias combinações de deusas que
estão por trás das configurações psicológicas das mulheres.
(Nos homens isso acontece de forma diferenciada).
Como Perséfone se manifesta e pode
auxiliar as mulheres atualmente?
O mito de Perséfone revela a necessidade de descer até as profundezas do submundo, de cuidar
e amparar as forças que habitam o inconsciente e o interior da alma. É preciso fazer essa
descida para conhecer a si mesma, para revelar o seu potencial, para cumprir seu propósito. O
seu caminho é de interiorização.
Caso esta descida não ocorra de forma "natural", por questões sociais que há tempos vêm nos
afastando da nossa ligação com a natureza e nossa alma, o rapto de Hades tende a gerar
bastante desconforto., através de sintomas como angústia, depressão, dependência,, com o
objetivo de retorno à alma. “Afastamo-nos da natureza e de nossa natureza e o resultado disso
tem sido devastador” (WERRES, 2019, p. 26).
O mito estimula uma transformação psíquica, a saída de um estado de inocência e a capacidade
de integrar luz e sombra para posteriormente se relacionar com o mundo, possivelmente
auxiliando outras mulheres a fazerem a mesma jornada.
A r t e c o m o f o r m a d e a c e s s o a o s u b m u n d o
Através de diversas formas de arte é possível empreender a descida ao mundo avernal, e
percebo isto de forma muito explícita através da poesia. Muitas poetas tem grande
identificação com este arquétipo e percebemos sua obra ambientada nele, onde descrevem
ou relatam a descida ao submundo, ao inconsciente, o que veem lá, entre outros aspectos.
Através da escrita conseguem ir e retornar, seguir vivendo enquanto têm o controle da
descida, da permanência e da ascensão. Algumas não conseguem completar a descida,
permanecem perpetuamente no submundo (clinicamente isto seria denominado como
depressão crônica) e acabam se perdendo, muitas vezes vivendo a morte literal.
Morrer
É uma arte, como tudo.
Eu a pratico excepcionalmente bem.
Eu a pratico até sentir bem mal
Eu a pratico para sentí-la real
Acho que se poderia dizer que ouvi um apelo.
Sylvia Plath, de "Lady Lazarus"
S y l v i a P l a t h f o i u m a d a s m u l h e r e s q u e m a i s s e a g a r r o u à b e i r a d o a b i s m o ,
e q u e r e g i s t r o u v i v i d a m e n t e a a m b i v a l ê n c i a d e P e r s é f o n e e n t r e s o l t a r - s e
o u n ã o s o l t a r - s e a t r a v é s d e s e u s p o e m a s .
Será longe?
É tão pequeno
O lugar a que estou chegando, por que esses obstáculos?
O corpo desta mulher
saias crestadas e máscara mortuária
Pranteada por figuras religiosas, por crianças com grinaldas
Não há lugar sereno
Girando e Girando em pleno ar
Intocado e intocável
Enterrarei os feridos como pupas,
Eu contarei e enterrarei os mortos
Que suas almas se contorçam num aljôfar de
Incenso em meu rastro.
Os plastros me embalam, quais berços que são.
E eu, deixando esta pele
De velhas bandagens, fastios, faces antigas
Venho a você do carro escuro de Letes
Pura como um bebê.
Sylvia Plath deixou um registro de
sua luta contra o Senhor e a Dama
da Morte. Neste poema, Hades é
imaginado como o cortejo da Morte,
mas há obstáculos que a detém,
como se não pudesse levar adiante
seu próprio processo de morte por
ver tantos horrores ao seu redor.
No último verso, há uma revelação:
ela ainda quer ser pura, o bebê de
Deméter. Toda sua escuridão é
apartada e projetada nos mortos
que ela ainda pranteia, são imagens
de partes velhas, dolorosas e
mortas do eu que ela não consegue
descartar inteiramente.
Woolger, no livro "A Deusa Interior", cita o psicanalista James Hillman, que
escreveu muito sobre o suicídio e o mundo avernal, e disse que o erro de
Plath foi literalizar, tornar física a sua descida com suicídios de fato.
Segundo ele, sua alma buscava desesperadamente renascer depois da
descida, e talvez houvesse conseguido, se Sylvia não houvesse agido de
maneira tão drástica e trágica. Ela não soube ou não conseguiu distanciar-
se e acabou tornando-se cônjuge da morte.
Muitas outras poetas também falam sobre a
morte, sobre aspectos do submundo, sobre
a própria interiorização e nem todas tem o
mesmo final trágico de Sylvia Plath.
Um exemplo de escritora que tem diversos
poemas sobre o tema é Sophia de Mello
Breyner Andresen, a seguir alguns deles:
SINTO OS MORTOS
Sinto os mortos no frio das violetas
E nesse grande vago que há na lua.
A terra fatalmente é um fantasma,
ela que toda a morte em si embala.
Sei que canto à beira de um silêncio,
Sei que bailo em redor da suspensão,
E possuo em redor da impossessão.
Sei que passo em redor dos mortos mudos
E sei que trago em mim a minha morte.
Mas perdi o meu ser em tantos seres,
Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes não soube dos meus actos,
Que a morte será simples como ir
Do interior da casa para a rua.
Sophia de Mello Breyner Andresen | "Poesia", 1944
APESAR DAS RUÍNAS
Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
Sophia de Mello Breyner Andresen | "Antologia Poética"
A HORA DA PARTIDA
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
Sophia de Mello Breyner Andresen |
HORA
Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.
E dormem mil gestos nos meus dedos.
Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.
Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.
E de novo caminho para o mar.
Sophia de Mello Breyner Andresen | "Dia do mar", págs. 58 e 59 | Edições Ática, 1974
Além de ser uma expressão da realidade, a literatura
auxilia a identificar e esclarecer ficcionalmente a vida
humana em diversas situações, tendo o importante e
bonito papel de elaboração das vivências psíquicas.
Sabemos que o resultado dos processos
artísticos/poéticos não pertencem apenas ao seu
autor, então também não servem somente às
elaborações do artista.
A poesia e as demais formas de arte tem a
capacidade de dialogar com as questões conscientes
e inconscientes daqueles que a admiram,
possibilitando também a estes uma imersão em seus
mundos internos.
"A literatura não emerge de águas
tranquilas: fala de minhas perplexidades
enquanto ser humano, escorre de fendas
onde se move algo que, inalcançável, me
desafia. Escrevo quase sempre sobre o
que não sei."
- Lya Luft
Perséfone, bendita filha do grande Zeus, filha única
de Deméter, vem e aceita este sacrifício cheio de graça.
Mui honrada esposa de Plutão, prudente e vivificante,
comandas as portas do Hades nas entranhas da terra,
Praxidique* dos belíssimos cachos, fruto puro de Deo,
mãe das Fúrias, rainha do além-túmulo,
gerada por Zeus em união clandestina.
Mãe do vociferante Euboleus** das muitas formas,
radiante e luminosa companheira de folguedo das Estações,
augusta, onipotente, donzela rica em dotes,
brilhante e cornada, tu somente és amada pelos mortais.
Na primavera rejubilas nas brisas das campinas
e mostras tua sacra figura em rebentos e verdes frutos.
Tornaste-te noiva do que te raptou no outono,
tu somente és vida e morte para os mortais que labutam,
Ó Perséfone, Tu sempre os alimenta e os mata também.
Ouve-me, Ó abençoada Deusa, e envia os frutos da terra.
Tu que floreces em paz, em meiga saúde,
e em vida de fartura que conduz a uma velhice de conforto
ao teu domínio, Ó rainha, e ao do poderoso Plutão.
The Orphic Hymns, trad. por Athanassakis, em The Ancient
Mysteries, org por Meyer, p. 105
* Um epíteto de Perséfone
** Dionísio
HINO A PERSÉFONE

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  • 1. MULHERES-PERSÉFONE E SUA DESCIDA AO SUBMUNDO ATRAVÉS DA POESIA Marceli Eduarda Charão Gambatto
  • 2. Mito de Perséfone Filha de Deméter e Zeus, Coré é raptada por Hades, senhor do submundo, ao se distrair colhendo flores. Desesperada pelo desaparecimento da filha, Deméter a procura incessantemente por nove dias e nove noites, sem sucesso. Hécate é a única deusa que ouviu o grito de Coré ao ser raptada e é através dela que Deméter descobre que Hades teria sido o responsável pelo desaparecimento de sua filha. Tomada de ira e tristeza, Deméter decreta que nada mais nasce na terra até que tenha sua filha de volta. Zeus, preocupado com o futuro da humanidade e dos próprios deuses que dos humanos dependem, intervém mandando Hermes comunicar Hades para que permita o retorno de Coré. Ao deixar Perséfone retornar para Deméter, Hades dá sementes de romã para que ela coma. Quando a filha retorna para a mãe, já não é mais Coré, a donzela, é Perséfone, a Rainha do Mundo Inferior. Algumas versões do mito sugerem que Perséfone comeu de boa vontade sabendo que comer algo no submundo a deixaria eternamente ligada ao mundo inferior. Assim passou a se dar as estações. No momento do ano em que Perséfone está com Deméter a vegetação cresce, dá frutos e há abundância, configurando a primavera e o verão. Quando Perséfone desce para o mundo inferior, a vegetação decai, os frutos ficam escassos e o inverno se instaura.
  • 3. Mas, afinal, o que é uma deusa? De acordo com a teoria junguiana, as deusas são arquétipos, fontes de padrões emocionais de pensamentos, sentimentos, comportamentos e instintos que poderíamos chamar de "femininos", no aspecto mais amplo possível desta palavra. Os gregos e demais culturas antigas não percebiam essas energias como abstrações destituídas de alma, e sim como forças espiritualmente vitais. Tais forças ou energias estão exercendo continuamente grande influência sobre os processos psicológicos que vivenciamos. Não é apenas uma, mas várias combinações de deusas que estão por trás das configurações psicológicas das mulheres. (Nos homens isso acontece de forma diferenciada).
  • 4. Como Perséfone se manifesta e pode auxiliar as mulheres atualmente? O mito de Perséfone revela a necessidade de descer até as profundezas do submundo, de cuidar e amparar as forças que habitam o inconsciente e o interior da alma. É preciso fazer essa descida para conhecer a si mesma, para revelar o seu potencial, para cumprir seu propósito. O seu caminho é de interiorização. Caso esta descida não ocorra de forma "natural", por questões sociais que há tempos vêm nos afastando da nossa ligação com a natureza e nossa alma, o rapto de Hades tende a gerar bastante desconforto., através de sintomas como angústia, depressão, dependência,, com o objetivo de retorno à alma. “Afastamo-nos da natureza e de nossa natureza e o resultado disso tem sido devastador” (WERRES, 2019, p. 26). O mito estimula uma transformação psíquica, a saída de um estado de inocência e a capacidade de integrar luz e sombra para posteriormente se relacionar com o mundo, possivelmente auxiliando outras mulheres a fazerem a mesma jornada.
  • 5. A r t e c o m o f o r m a d e a c e s s o a o s u b m u n d o Através de diversas formas de arte é possível empreender a descida ao mundo avernal, e percebo isto de forma muito explícita através da poesia. Muitas poetas tem grande identificação com este arquétipo e percebemos sua obra ambientada nele, onde descrevem ou relatam a descida ao submundo, ao inconsciente, o que veem lá, entre outros aspectos. Através da escrita conseguem ir e retornar, seguir vivendo enquanto têm o controle da descida, da permanência e da ascensão. Algumas não conseguem completar a descida, permanecem perpetuamente no submundo (clinicamente isto seria denominado como depressão crônica) e acabam se perdendo, muitas vezes vivendo a morte literal.
  • 6. Morrer É uma arte, como tudo. Eu a pratico excepcionalmente bem. Eu a pratico até sentir bem mal Eu a pratico para sentí-la real Acho que se poderia dizer que ouvi um apelo. Sylvia Plath, de "Lady Lazarus" S y l v i a P l a t h f o i u m a d a s m u l h e r e s q u e m a i s s e a g a r r o u à b e i r a d o a b i s m o , e q u e r e g i s t r o u v i v i d a m e n t e a a m b i v a l ê n c i a d e P e r s é f o n e e n t r e s o l t a r - s e o u n ã o s o l t a r - s e a t r a v é s d e s e u s p o e m a s .
  • 7. Será longe? É tão pequeno O lugar a que estou chegando, por que esses obstáculos? O corpo desta mulher saias crestadas e máscara mortuária Pranteada por figuras religiosas, por crianças com grinaldas Não há lugar sereno Girando e Girando em pleno ar Intocado e intocável Enterrarei os feridos como pupas, Eu contarei e enterrarei os mortos Que suas almas se contorçam num aljôfar de Incenso em meu rastro. Os plastros me embalam, quais berços que são. E eu, deixando esta pele De velhas bandagens, fastios, faces antigas Venho a você do carro escuro de Letes Pura como um bebê. Sylvia Plath deixou um registro de sua luta contra o Senhor e a Dama da Morte. Neste poema, Hades é imaginado como o cortejo da Morte, mas há obstáculos que a detém, como se não pudesse levar adiante seu próprio processo de morte por ver tantos horrores ao seu redor. No último verso, há uma revelação: ela ainda quer ser pura, o bebê de Deméter. Toda sua escuridão é apartada e projetada nos mortos que ela ainda pranteia, são imagens de partes velhas, dolorosas e mortas do eu que ela não consegue descartar inteiramente.
  • 8. Woolger, no livro "A Deusa Interior", cita o psicanalista James Hillman, que escreveu muito sobre o suicídio e o mundo avernal, e disse que o erro de Plath foi literalizar, tornar física a sua descida com suicídios de fato. Segundo ele, sua alma buscava desesperadamente renascer depois da descida, e talvez houvesse conseguido, se Sylvia não houvesse agido de maneira tão drástica e trágica. Ela não soube ou não conseguiu distanciar- se e acabou tornando-se cônjuge da morte.
  • 9. Muitas outras poetas também falam sobre a morte, sobre aspectos do submundo, sobre a própria interiorização e nem todas tem o mesmo final trágico de Sylvia Plath. Um exemplo de escritora que tem diversos poemas sobre o tema é Sophia de Mello Breyner Andresen, a seguir alguns deles:
  • 10. SINTO OS MORTOS Sinto os mortos no frio das violetas E nesse grande vago que há na lua. A terra fatalmente é um fantasma, ela que toda a morte em si embala. Sei que canto à beira de um silêncio, Sei que bailo em redor da suspensão, E possuo em redor da impossessão. Sei que passo em redor dos mortos mudos E sei que trago em mim a minha morte. Mas perdi o meu ser em tantos seres, Tantas vezes morri a minha vida, Tantas vezes beijei os meus fantasmas, Tantas vezes não soube dos meus actos, Que a morte será simples como ir Do interior da casa para a rua. Sophia de Mello Breyner Andresen | "Poesia", 1944
  • 11. APESAR DAS RUÍNAS Apesar das ruínas e da morte, Onde sempre acabou cada ilusão, A força dos meus sonhos é tão forte, Que de tudo renasce a exaltação E nunca as minhas mãos ficam vazias. Sophia de Mello Breyner Andresen | "Antologia Poética"
  • 12. A HORA DA PARTIDA A hora da partida soa quando Escurece o jardim e o vento passa, Estala o chão e as portas batem, quando A noite cada nó em si deslaça. A hora da partida soa quando as árvores parecem inspiradas Como se tudo nelas germinasse. Soa quando no fundo dos espelhos Me é estranha e longínqua a minha face E de mim se desprende a minha vida. Sophia de Mello Breyner Andresen |
  • 13. HORA Sinto que hoje novamente embarco Para as grandes aventuras, Passam no ar palavras obscuras E o meu desejo canta --- por isso marco Nos meus sentidos a imagem desta hora. Sonoro e profundo Aquele mundo Que eu sonhara e perdera Espera O peso dos meus gestos. E dormem mil gestos nos meus dedos. Desligadas dos círculos funestos Das mentiras alheias, Finalmente solitárias, As minhas mãos estão cheias De expectativa e de segredos Como os negros arvoredos Que baloiçam na noite murmurando. Ao longe por mim oiço chamando A voz das coisas que eu sei amar. E de novo caminho para o mar. Sophia de Mello Breyner Andresen | "Dia do mar", págs. 58 e 59 | Edições Ática, 1974
  • 14. Além de ser uma expressão da realidade, a literatura auxilia a identificar e esclarecer ficcionalmente a vida humana em diversas situações, tendo o importante e bonito papel de elaboração das vivências psíquicas.
  • 15. Sabemos que o resultado dos processos artísticos/poéticos não pertencem apenas ao seu autor, então também não servem somente às elaborações do artista. A poesia e as demais formas de arte tem a capacidade de dialogar com as questões conscientes e inconscientes daqueles que a admiram, possibilitando também a estes uma imersão em seus mundos internos.
  • 16. "A literatura não emerge de águas tranquilas: fala de minhas perplexidades enquanto ser humano, escorre de fendas onde se move algo que, inalcançável, me desafia. Escrevo quase sempre sobre o que não sei." - Lya Luft
  • 17. Perséfone, bendita filha do grande Zeus, filha única de Deméter, vem e aceita este sacrifício cheio de graça. Mui honrada esposa de Plutão, prudente e vivificante, comandas as portas do Hades nas entranhas da terra, Praxidique* dos belíssimos cachos, fruto puro de Deo, mãe das Fúrias, rainha do além-túmulo, gerada por Zeus em união clandestina. Mãe do vociferante Euboleus** das muitas formas, radiante e luminosa companheira de folguedo das Estações, augusta, onipotente, donzela rica em dotes, brilhante e cornada, tu somente és amada pelos mortais. Na primavera rejubilas nas brisas das campinas e mostras tua sacra figura em rebentos e verdes frutos. Tornaste-te noiva do que te raptou no outono, tu somente és vida e morte para os mortais que labutam, Ó Perséfone, Tu sempre os alimenta e os mata também. Ouve-me, Ó abençoada Deusa, e envia os frutos da terra. Tu que floreces em paz, em meiga saúde, e em vida de fartura que conduz a uma velhice de conforto ao teu domínio, Ó rainha, e ao do poderoso Plutão. The Orphic Hymns, trad. por Athanassakis, em The Ancient Mysteries, org por Meyer, p. 105 * Um epíteto de Perséfone ** Dionísio HINO A PERSÉFONE