2. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
No limiar do Universo algo extraordinário faz estrelas desaparecerem.
O misterioso poder vai abalar os alicerces da Criação.
ROBERTO MIRANDA
Parte 1 – NOITE NEGRA
1ª edição digital
Roberto Miranda
São Paulo
2011
3. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
NOTA DO AUTOR
Esta é uma obra de ficção. Os comentários fazem parte da essência da
aventura não havendo desejo de depreciar ou instigar qualquer forma de
preconceito ou ofensa a costumes alheios. Todos os personagens são
imaginários e, portanto, qualquer semelhança é mera coincidência. As
referências astronômicas e aeroespaciais são as habitualmente utilizadas na
redação do gênero e os fenômenos espaço - temporais baseados na teoria
quântica. Possui também referências à cultura mesoamericana.
FICHA CATALOGRÁFICA:
Paginação: Roberto Miranda
Capa: Roberto Miranda e Willian Nunes Miranda
Revisão: Roberto Miranda e Willian Nunes Miranda
Certificado de Registro FBN nº 520.657 - Livro: 988 - Folha: 99
Todos os direitos reservados.
Título Original da Obra: Escuridão Absoluta: O Matador de Estrelas
Registro FBN nº 139.779 em 27/10/1997
Título original da série do Brasil: Escuridão Absoluta
ISBN - 978-85-900642-3-7 (e-book - divulgação)
ROBERTO MIRANDA (ISBN 900642), 1997, 2011.
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SUMÁRIO
Parte I
Prólogo
Capítulo 1 – Noite negra
Interlúdio – Fase Um
Epílogo – O perdão do mendigo
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O primeiro capítulo desta estonteante aventura oferece a emoção de
uma trama bem elaborada, que diverte e prende a atenção do leitor até
o ultimo parágrafo.
6. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
Dedico em memória a meu pai, Mario Miranda e Matheus Urch Filho.
7. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
ESCURIDÃO ABSOLUTA
MENSAGEIROS
Um fenômeno jamais previsto por cientistas emergiu do espaço
profundo, aniquilou constelações e acabou com a nossa crença no Pai
Universal.
Conhecer algo tão inacreditável, escondido nas mais improváveis
teorias, instiga alarmantes profecias sobre o Reino do Caos no mundo
das trevas, mostrando o quão pouco sabemos sobre o Universo.
O Matador de Estrelas não é visível aos instrumentos e vagueia
camuflado pela escuridão. Só o percebemos quando sua sombra
desaparece com a estrela de maneira voraz, consumindo parte da
galáxia sem hesitar em quantas vidas teria destruído ao alcançar seu
intento. E quanto a nós, incapazes de detectar a origem dessa força
avassaladora, só nos restou a fuga.
Talvez, assim como nós, outra civilização esteja imaginando do
que se trata. Na opinião de nossos cientistas, é uma forma de
canibalismo estelar cujo modelo cientifico não obedece ao
comportamento padrão dos buracos negros massivos.
Eu só posso descrevê-lo da forma que o vejo do interior do
observatório de espaço profundo na cidade-astro, nosso refugio e lar.
Daqui eu admiro mais um sol se apagar totalmente, deixando a
perversa escuridão livre para devorar a próxima estrela.
Nossa única alternativa de sobrevivência será encontrar um
planeta em zona habitável numa outra galáxia, fora do caminho do
Matador de Estrelas. Contudo, as cidades-astros não chegarão a tal
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lugar antes de a fome nos abater.
E mesmo ignorando a existência de vida inteligente no universo
capaz de compreender o conteúdo desta mensagem, foi nosso desejo
enviar este alerta de esperança a quem consiga nos ouvir.
Seja quem for, esperamos ter recebido esta mensagem antes do
perigoso intruso, e talvez... Talvez concluam o êxodo antes de a sua
estrela desaparecer!
-- PALAVRAS DO VIAJANTE 1982/1997
9. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
PRÓLOGO
Na cidade-estado situada às margens de uma ilha peninsular,
seus habitantes erigiram a grande muralha para isolá-la do resto do
mundo e viver sob o regime de um sinistro reino onde seu soberano
prega a existência de uma força celestial onisciente.
Através do culto à nova ordem da Criação, o governo impôs seu
controle sobre a liberdade civil sem reconhecer a legitimidade dos
muitos protestos, onde a morte sobreveio a todos os opositores.
A nova ordem da Criação foi impetrada após a capitulação do
Roshua, último regente eleito em foro popular antes da conspiração que
levou a doutrina da Irmandade dos Unos ao poder absoluto. O
sacerdócio delegou ao Conselho Supremo, convocado para administrar
o estado, justificar seus desígnios contra a ordem popular conjurando o
poder oculto no Domo, símbolo teológico da unidade celestial, de onde
afirmam emanar os atos.
O protetorado exerce suas funções com a participação mínima de
uma assembleia popular constituída de parlamentares escolhidos pelo
clero, contando com a presença do Frei Calstin e do próprio Silas, para
fazer-se de executores das ações do conselho.
No entanto, as leis decretadas impõem severas penalidades e
com o passar dos anos gente destemida vem ignorando a ideologia do
Conselho, se entregando à leitura de teoremas proscritos e artigos
científicos formulados por filósofos expatriados, que os publicam na
tentativa de ensinar o conhecimento excomungado dos preceitos da
educação monopolizada.
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Notoriamente, os mais jovens são os primeiros a perceber quando
há necessidade de reformas e almejam promover a extinção do sistema
totalitário, porém, se ressentem de não saber muita coisa a respeito do
aspecto das tribos além-mar.
Estas ideias subvertem os conceitos de dominação e cidadania
delegados ao Conselho Supremo com respaldo do Silas, cuja tendência
à arbitrariedade impede a instauração de ideias contrárias ao regimento
imposto pelas leis celestiais dos soberanos de todos: os Senhores de
Orgiyê.
11. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
NOITE NEGRA
Ao entardecer os últimos raios de sol deixam nuvens cobrindo
parcialmente a grande lua dando a ela um tom castanho claro,
enquanto outras duas formas circulares esmaecidas igualmente
dominavam o céu noturno no mesmo hemisfério, conforme o céu ia
enegrecendo e perdendo contorno, até ficarem arcos brilhantes e
visíveis onde o breu ao fundo perdura.
A lua maior, também chamada de Orgiyê, mundo inóspito e
cravejado de abismos estreitos, tornara-se o objeto mais belo naquele
céu noturno sem mistério, também durante o dia. A claridade lunar
refletida sobre a superfície do planeta oferecia uma tonalidade opaca às
massas de terra e ao oceano, que tomava a cor da prata.
Na cidade-estado, erigida sobre o berço da mata nativa, reinava a
tranquilidade e, em céu límpido nos revela a faceta cinzenta dos
principais edifícios públicos em meio à pequena ilha peninsular de 50
mil metros quadrados de topografia irregular. Por conta de um artifício
natural há milhares de anos, restos da boca de um vulcão submarino,
está intimamente ligada ao continente por estreita faixa de terra
formada do magma vulcânico, que um dia desembocou no meio da
praia paradisíaca.
Para além da linha de praia, e ao longo da costa, os contornos do
cume das árvores, em contraste com o fundo de altos picos, estendiam-
se parecendo traços grotescos rabiscados sobre uma tela de pintura.
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Orgiyê sempre foi considerada o olho vigilante dos deuses pelos
simplórios habitantes da cidade fortificada e seu brilho prateado reluzia
como um espelho cristalino na superfície do mar. Além disso, acentuava
a residência do Silas ao refletir sua face resplandecente sobre o Domo,
o edifício em forma de meia esfera, construído ao lado do imponente
Palácio do Templo, casa da Irmandade dos Unos.
Essa misteriosa construção glorificada dentro de seus 45 metros
de altura, e 90 metros de diâmetro, guarda o segredo da vida pungente
do planeta. Sua forma arredondada integrava o conjunto arquitetônico
em torno do pátio, no centro da cidade, onde residem os clérigos.
Mas o brilho da lua não encontra significado apenas nas
crendices populares. Também ajudava a diminuir o uso de candeeiros
de óleo na iluminação pública, pois, mesmo quando a noite vinha a
nublar sempre um esplendor de luz escapava da lua com intensidade.
Entretanto, na calada da noite ocorriam algumas surpresas.
Uma leve ventania balançava a fronde das árvores nos canteiros
da avenida principal e instigava quatro indivíduos passeando por lá em
roupas de estudante. No entanto, eles caminhavam furtivamente nas
sombras da quadra onde havia um prédio em construção, até o mais
baixo deles se infiltrar no canteiro de obra. Os outros o seguiram
rapidamente, alçando as escadas até atingirem o andaime mais alto.
Feito isso, o quarteto reuniu-se no terraço e um deles acendeu uma
vela para iluminar o livro de teoremas na mão do estudante mais jovem.
- Estamos seguros aqui. — disse Hani ao abrir o livro. Mas por
precaução passou uma orientação ao amigo do lado, em voz baixa. –
Loma, seria bom ficar de vigia enquanto leio o livro.
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- Está bem! — concordou e foi até o muro da varanda, de onde
falou: - Pode ficar tranquilo que eu vou ficar de olhos bem abertos.
Nisso, Rashiv, o amigo mais velho e forte, apontou o céu.
- Veja só aquilo! — exclamou entusiasmado.
A pequena lua Yod, a menor e a mais ligeira no hemisfério, exibia
uma pluma vermelha e fulgurante, tanto acima, quanto abaixo dos
polos. Hani leu sobre o fenômeno no livro, onde constava na
observação que a lua possuía vulcões em atividade nos polos e cuja
erupção a intervalos regulares envolvia o satélite numa bruma radiante.
- Queria saber como fazem os exilados do mosteiro para ter tanto
conhecimento. — assinalou Saied, o último e mais esperto de todos
eles.
- Meu pai disse que são estudos baseados em observações
diárias feitas no alto do monte Tegapa, do outro lado do continente.
Enquanto acompanhavam a lua em seu curso celeste, aconteceu
a queda de um meteorito. O bólido riscou o céu, iniciando na frente de
Orgyiê, e veio a desaparecer além do horizonte.
- O que foi aquilo? — Loma perguntou extasiado.
Hani ficou de corpo encurvado e leu no livro o esclarecimento aos
ávidos observadores, aproveitando da melhor maneira a claridade da
vela.
- Um tipo de estrela cadente. — respondeu Hani. - Segundo o
livro, a maioria delas se desintegra no ar ou caem no mar. Mas uma
entre milhares chega com perigo e cai em terra firme.
Graças à narração pedagógica dos eremitas que redigiram a tese
do experimento, eles compreendem como o fenômeno ocorreu.
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- Os sacerdotes dizem que são lágrimas dos deuses. —
acrescentou Rashiv. - O que quer que seja vem de um lugar do céu.
Mas de onde?
- O livro não mente. — asseverou Hani. - Não existe nada lá em
cima além dos mundos que pairam sobre nós.
- Orgyiê é a morada dos deuses. Por que não vemos o Castelo
Lunar? — quis saber Saied, embevecido com a experiência.
- Meu pai, certa vez, disse para mim que os exilados acham a
lenda do Patrono Celestial um mito. Que o Castelo dos Senhores de
Orgiyê não existe! — mencionou Hani, descrente quanto à posição dos
exilados.
- São heresias. — falou Loma, de volta à tocaia.
Estava apoiado no muro quando avistou o soldado de roupa
cintilante parado na rua, olhando de frente para o prédio do outro lado
da calçada. De alguma maneira Loma chamou sua atenção, pois logo
olhou para o alto, ou talvez outro o tivesse avistado na varanda.
- Tem uma sentinela aqui em frente. — alertou os companheiros.
- Ela viu você? — perguntou Saied.
- Só uma? Tem certeza? — quis saber Rashiv.
- Acho que me viu sim. — respondeu acanhado.
Loma deu mais uma espiada. Desta vez avistou mais sombras
vagando sob a luz dos candeeiros nas vielas próximas, então retornou
rápido para junto dos seus amigos.
- Vi mais uns quatro! E em breve virão reforços. — constatou.
A sentinela em frente ao prédio mandou um tiro de advertência. A
bala detonou o beiral do muro da varanda, jorrando reboco sobre os
15. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
quatro amigos. E Hani, o rapaz miúdo de cabelo emaranhado,
aproveitou a deixa para se queixar da displicência de Loma, pois este
lhe havia prometido ficar atento ao menor sinal da patrulha.
- Você não podia ter tirado os olhos da rua, nem por um segundo.
Por sua causa nos apanharam desprevenidos. — acusou o rapaz.
- Eu me distraí com o que acontecia no céu. — defendeu-se
Loma.
- Sem desculpa! Agora tenho de destruir o livro. — afirmou Hani,
já se preparando para atear fogo nas páginas abertas. - Meu pai não
vai gostar de saber disto.
- Seja como for, vamos ser eliminados. — pensou Rashiv.
- Concordo com você. — discorreu Saied. - Mas para nos acusar
de heresia, primeiro eles precisarão nos fazer calar. — insinuou o rapaz
esgalgado enquanto o livro principiava a queimar.
Hani afastou-se para pensar melhor quando o fogo ficou mais
alto, indo de encontro à parte inacabada da varanda.
- E quanto ao Silas? — quis saber Rashiv, o mais encorpado. -
Tenho certeza de que ninguém será contrário à sua palavra, nem se
nos der a oportunidade de blasfemar diante da multidão.
- Se pudéssemos fugir e nos esconder, os donks não poderão nos
acusar de coisa alguma. — ponderou Loma.
- É exatamente o que eu ia sugerir. — disse Hani exibindo um
largo sorriso na boca ao voltar para junto do grupo.
- Do que está falando? — retrucou Rashiv.
- Os donks logo estarão aqui. Por isso sugiro fugirmos por este
lado. — explicou, voltando para onde estava.
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Chamou a atenção dos amigos e pediu para se debruçarem sobre
o muro, como ele fazia, vislumbrando o canteiro de obra lá embaixo.
O Palácio do Templo, por ser a casa de adoração do culto aos
Senhores de Orgiyê, recebeu traços curvos e irregulares na
composição de sua arquitetura gótica, repleta de pináculos
responsáveis pela mágica distribuição de luz natural no interior da
catedral. Com duas torres em estilo campanário, separadas pelo
arcobotante sustentando à abóbada no centro, a imponente fachada
intercalava grandes janelas retangulares entre grossas colunas
verticais, em franca simetria com o portal de entrada emoldurado de
arcos concêntricos, voltados progressivamente para o interior do vão.
De noite, a iluminação a óleo dentro do salão paroquial destacava
os traços cheios de simbolismo teológico nos glamorosos vitrais das
janelas, enobrecendo a fachada da catedral ao lado do grande portal.
Nos espaços litúrgicos, no interior da catedral, qualquer pessoa
que adentrasse neles podia circular de maneira fácil e apreciar os
elementos decorativos, tais como: tapeçaria, artigos em cerâmica mais
as magníficas esculturas, tudo distribuído em locais adequados.
Dispunha também de ventilação constante, mantendo a temperatura
amena durante todas as estações do ano graças às técnicas
inovadoras utilizadas pelos arquitetos no trato do isolamento térmico, a
começar pelo suntuoso salão paroquial. A parede entre cada andar
guardava um espaço vazio, servindo como sistema de calefação, e
também como proteção acústica, tendo entradas no teto controladas
por claraboias, usadas na regulação da temperatura interna do edifico,
17. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
conforme abriam ou se fechavam.
Os enormes vitrais pintavam sombras coloridas no piso cerâmico
branco durante o dia, horário em que representantes do povo e clérigos
passam diariamente. Para segurar as paredes do salão, a estrutura de
três andares e a cúpula, existia seis pilastras reforçadas de concreto
armado. No vão do meio era encontrada a escadaria que dava acesso
aos andares superiores, sendo também o melhor local para admirar os
afrescos no teto abobadado, semelhante a um mosaico celestino. A
obra de arte renascentista ilustrava o instante da Criação, segundo os
pergaminhos sagrados armazenados em doze furos localizados na
base da pilastra de centro na Capela das Almas. Esses rolos de papiro
são os documentos históricos dos fundadores da irmandade e são
proibidos de serem lidos por servos apóstatas, pois neles acha-se
escrito os ritos secretos. Apenas os conselheiros, e o próprio Silas,
possuem permissão de desvendar os seus mistérios.
Detalhes da mobília eram feitos de peças de bronze, como
também as fechaduras das portas e as braçadeiras das cadeiras de
assentos acolchoados.
A ala da Capela das Almas ficava situada no térreo, ao fundo do
salão paroquial, com a porta sempre fechada ao publico, pois atrás
desta residia o pavilhão de reuniões. Ali existia um suntuoso altar e, na
frente deste, fileiras de bancos de madeira destinados aos membros do
Parlamento e do Conselho, quando da realização de cerimônias e
preces presididas pelo Silas, onde aproveitavam para discutir assuntos
eruditos de interesse restrito da comunidade.
O palco do cerimonial possuía uma mesa de orações sobre a qual
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ficava resguardado o livro canônico da irmandade, exposto em cima do
forro vermelho e entre dois castiçais, um em cada extremidade lateral,
sendo a mesa localizada entre dois púlpitos. No assoalho atrás dela
havia o desenho de uma estrela de cinco pontas dentro de um
decágono delimitado por um círculo. Consequentemente, servia de
marcação para o Silas durante as reuniões paroquiais nas vezes em
que ele precisava estar por baixo da Oscarenta.
A raríssima pedra esmeralda pendente no teto sempre foi motivo
de assunto no clero, pois guarda uma historia sombria acerca de sua
origem.
Contada em forma de fábula, a lenda dizia assim: a pedra lançada
do dorso de um cometa veio a cair numa fazenda onde nada
prosperava. A família que vivia ali passava anos a fio com pouca
colheita e animais padecendo de fome. E em visita as paragens
inóspitas de sua fazenda, o menino Asdréz, filho de Masiel, encontrou a
pedra esmeralda dentro de uma cratera calcinada por um raio e ao
primeiro contato o espírito verde lhe revelou o segredo de seu
propósito. Asdréz concordou em servir ao espírito da pedra e esta
conferiu a ele conhecimento para que a fazenda prosperasse.
E nos anos vindouros a tristeza abandonou o lar daquela família,
transformando Asdréz e seu pai em elegantes comerciantes.
Certa ocasião, o sumo-sacerdote de Oregas, a mando de Roshua
II, foi investigar os acontecimentos miraculosos naquela fazenda e
descobriu ter Asdréz dominado técnicas de irrigação, utilização de
biodigestor e fabricação de máquinas agrícolas rudimentares.
Ao saber do conhecimento contido na pedra mítica, o sumo-
19. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
sacerdote condenou Asdréz e seus familiares à morte e declarou-a uma
relíquia divina, que, como tal, nenhuma pessoa deveria usufruir do seu
poder em proveito próprio; levando-a para ser adorada no templo.
Com o passar dos anos, os sacerdotes fizeram um pacto com o
espírito da pedra e isto permitiu o surgimento da linhagem do guardião,
um membro do sacerdócio escolhido por ela para explorar a fronteira do
conhecimento. Nesta situação, qualquer estranho que se aproxime da
Oscarenta experimentará um tormento enlouquecedor.
Essa história vem de muitas gerações e os descendentes dos
proclamados guardiões da Oscarenta são conhecidos pelo cognome
Silas. O sucessor do guardião tem de ser aprovado na seleção do
monastério e escolhido pela pedra. Os candidatos seminaristas passam
por um treinamento paroquial e durante a avaliação final, apenas um é
eleito. A partir de então, o eleito passa a receber os ensinamentos do
fidalgo. Todo o conhecimento acumulado durante a gestão do Silas é
anotado nos livros da ordem e confiado ao sucessor. O escolhido
também tem de arcar com a responsabilidade de preservar o segredo
do Domo e juramentar o livro oculto da irmandade. Além disso, herda o
aposento onde vai dedicar a maior parte do seu tempo ao estudo da
mente, com o objetivo de manter desenvolvidas suas habilidades
psíquicas.
Durante o dia, o Silas participa de reuniões e pratica rigorosos
exercícios físicos, visando aperfeiçoar o corpo para quando receber os
dotes sobre-humanos, mais precisamente se conseguir atingir o estado
mentalista cósmico na idade adulta.
E naquela noite, em um momento fugidio, Silas estava envolvido
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nas tormentas do seu inconsciente em busca da razão pela qual
antigos guardiões compartilhavam um pesadelo inquietante, gravado
por eles nas escrituras cunhadas em pasta de cera sobre os blocos da
parede daquele recinto. O enigma, uma charada dos anciãos, descrevia
um evento que apagou as estrelas do reino do céu e guardara o
coração do deus verdadeiro no tempo esquecido. Ao solucionar este
mistério o guardião realizaria os três passos seguintes para restaurar o
reino, concedendo para si o poder cósmico.
De repente, o ruído de um apito soando freneticamente na rua
tirou Silas do transe, levando-o a se dirigir à tribuna no alto da torre da
catedral. Mal chegou à sacada do terraço, escuta o estampido repetitivo
do disparo de armas de fogo. Dali podia ver cada rua de uma vista
privilegiada da cidade sob o luar incansável de Orgiyê, conseguindo
distinguir os vultos prateados no alto do prédio em construção enquanto
nas ruas, um punhado de fardas reluzentes estava atrás de infratores
aventureiros desvencilhando-se delas por vielas mal iluminadas, numa
inebriante tentativa de escapar do flagrante.
Silas ficou deveras satisfeito, pois era praticamente certo ver os
infratores feito prisioneiros. E isso significava ter de pôr os clérigos para
trabalhar bem cedo, na organização da procissão da verdade.
Então preferiu retornar ao seu aposento para ir dormir.
Para surpresa do chefe de milícia, quando chegou ao pavimento,
onde deveria encontrar infratores escondidos, achou apenas as paginas
de um livro queimado por quem estaria ali minutos atrás. Todavia, ao
vislumbrar as cinzas se espalhando ao vento deu um sorriso apático e
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concluiu que mal tiveram tempo de deixar o prédio. E na busca de
evidencias da identidade dos fugitivos, a pericia foi inconclusiva.
Desolado, bastou um pensamento para simular a atividade no
andar usando sombras que surgiam apenas no seu visor. Este recurso
lhe possibilitaria supor o fenótipo dos infratores acantonados diante da
presença de resíduos hormonais, suor, por exemplo, traçando o que
fizeram para assegurar suas vidas. No entanto, a simulação apontou
um feito inusitado, propondo haverem saltado para a rua.
O chefe de milícia meneou a cabeça negativamente, pois ficara
bastante contrariado. Com isto relaxou a postura e se aproximou do
muro inacabado, apoiando-se nele com os dois braços e colocando o
corpo para frente bem devagar, de modo a enxergar a parede externa
do prédio. Sem querer encontrou a rota de fuga mais improvável.
A geometria simétrica dos salientes blocos de cimento,
incrustados na parede externa do prédio, colocava-os próximos o
suficiente para que fossem agarrados e usados como apoio por quem
tivesse mãos firmes para fazer uma escalada. Quando o simulador
projetou isso, bastou aguçar a visão e notar os indivíduos se movendo
rente à parede.
Os fugitivos deslocavam-se para o canteiro lá embaixo, agarrando
firme cada bloco protuberante, escapando de serem pegos em flagrante
e deixando para trás um chefe de milícia irritado, ao ponto de esmagar
o tijolo da borda do muro antes de partir para a captura deles, sentindo
o desejo de esfola-los vivos.
Rashiv foi o primeiro a chegar ao chão e enquanto espera faz
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massagem nos ombros até os outros descerem.
- E agora? — quis saber Rashiv ao vê-los todos no chão.
- Temos de correr! — disse Loma, puxando a fila ao sair correndo.
Ele os levou por uma viela desolada, e à saída desta, cruzaram a
calçada, encobertos na sombra e de olho em qualquer movimento
suspeito, avançando varias quadras na imediação de um parque, onde
fizeram uma parada.
- Parece que a sorte está do nosso lado. — mencionou Hani ao
notar estar em frente à entrada do condomínio aonde residia.
- Por que diz isso? — perguntou-lhe Rashiv.
- Eu moro no condomínio. Por regra, um morador tem permissão
de caminhar à noite dentro do perímetro residencial sem comprometer
o toque de recolher. — explicou Hani.
- Será que é tão simples assim? — duvidou Loma. - Só temos de
chegar ao portão e entrar no quintal para nos salvar.
- É! É isso, sim. — confirmou Hani.
- Então vamos até lá! — disse Saied, dando o primeiro passo. E
em fila seguiram em direção à fonte de água cristalina, localizada entre
duas formosas esculturas, que mais parecia estarem a observá-los.
Ali permaneceram agachados enquanto divergiam de opinião.
- Parem! — exclamou Loma.
- Por que não continuamos? — Saied indagou a Loma.
- Vamos aguardar um pouco. — respondeu-lhe perspicaz.
- Acha que tramam outra emboscada? — retrucou Rashiv.
Loma respondeu só depois de perscrutar os arredores.
- Estou com um mau pressentimento.
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- Bobagem! Eu vou até lá. — afirmou Saied, saindo às pressas.
- Fica aqui! — sussurrou Rashiv ao tentar ir atrás dele.
Porém, Loma o segurou pela cintura, dizendo:
- É tarde demais.
Saied já havia contornado a fonte, e se deslocava através do pátio
descortinado, quando ouviu o silvo de advertência.
- Os donks chegaram. — pensou ele.
Sentiu medo ao avistar vultos reluzentes saindo de cada viela de
esquina com o parque, fazendo-o pensar em recuar, porém, não
poderia voltar atrás sem revelar o local onde seus amigos estavam
escondidos. Então, Saied tomou a única atitude sensata e correu em
direção ao condomínio.
Tão logo a tropa o viu sozinho, puseram-se a correr no seu
encalço levando os rifles dependurados no ombro.
- O que os donks estão fazendo? — perguntou-se Loma ao notar
a postura dos soldados, pois da forma como se comportavam era mais
provável verem Saied cruzar aquele portão.
Hani continuou torcendo por Saied.
- Ele vai conseguir.
O chefe de milícia não tinha pressa. Ficou em pé numa esquina,
de braços cruzados, assistindo apertarem o cerco ao infrator, e só por
precaução, manteve um franco-atirador de prontidão ao seu lado.
Saied corria rápido como o vento e mantinha boa distancia dos
soldados quando finalmente chegou ao portão. O franco-atirador na
esquina colocou-o na alça de mira e, antes que puxasse o gatilho, o
chefe de milícia pousou a mão sobre o fuzil e forçou-o a baixar a arma.
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Loma e Rashiv viram isso e estranharam o ato do chefe da milícia
de ter feito o franco-atirador resignar-se, apontando a arma ao chão.
- Não fazem um só disparo? Saied é um alvo fácil, mas ninguém
atira nele. — duvidou Loma.
- Tem alguma coisa errada. — retrucou Rashiv. - As sentinelas
não pensariam em açoitá-lo após passar pelo portão. O que estão
tramando?
Passaram-se inacreditáveis segundos até Saied ultrapassar o
portão, sem trinco ou fechadura, abrindo-o apenas com um empurrão e
cair ajoelhado sobre o primeiro degrau, esbaforido, enquanto ouvia o
ruído crescente de botinas atrás de si. Embora esperasse não sofrer
mal algum dentro do condomínio, ficou ansioso. Ainda de joelhos, e de
respiração curta, mas recuperado fisicamente, Saied se voltou para a
entrada. Viu os donks chegarem próximo ao portão e não se mexer dali.
Ficam apenas observando-o de perto, sem esboçar ressentimento.
Saied se levantou e começou a subir os degraus. Mas outro silvo
breve o fez rodar nos calcanhares e olhar para os donks novamente.
Desta vez havia acontecido de o chefe de milícia ter se juntado a tropa
do lado de fora do portão, só para ficar encarando-o com um sorriso.
Saied achou caudilho o um tanto sádico e ficou desconfiado, pois
o podia ter lhe preparado alguma surpresa.
Não muito longe dali seus amigos estavam preocupados.
- O que está acontecendo? — quis saber Hani: - Saied conseguiu
ou não conseguiu?
- Ele conseguiu. — procurou esclarecê-lo Loma, enquanto assistia
o chefe de milícia caminhar até o portão. - Mas tem algo errado.
25. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
De onde estavam Saied parecia ter escapado. Entretanto, foi
estranho ver o chefe da milícia locomovendo-se até o condomínio
quando a perseguição parecia ter chegado ao fim.
- Saied parece estar assustado. — disse Rashiv, mais preocupado
com o desenrolar da situação.
- Ele fica parado ali. É um alvo fácil! — comentou Hani.
- Saied pensa que tudo acabou bem. — presumiu Loma.
No fim parecia isso. Saied não se importava em ter a milícia o
resto da noite ali, aguardando ele se entregar. Mas antes de se retirar,
olhou discretamente na direção da fonte publica ressentido por haver
largado seus amigos sem segurança.
Um tanto melancólico, se distraiu e um donk aproveitou, saiu de
dentro do prédio portando uma baioneta e o espetou pelas costas. Os
olhos de Saied rolaram na órbita e com a vida combalida dobrou de
joelhos e rolou as escadas até o degrau mais baixo.
O chefe de milícia deu um chute no portão e o largou
escancarado para ir pisar no moribundo, terminantemente morto a seus
pés, só para ter certeza de que jamais o veria de novo.
Rashiv reagiu ao ver Saied ser traiçoeiramente apunhalado.
- Maldita armadilha! Eu devia tê-lo segurado aqui! — grunhiu.
Também foi o momento de pensar em retirar-se sorrateiramente.
- Vamos dar o fora, acho que eles não nos viram. — disse Loma.
- De jeito algum eles podiam tocar nele. O que está acontecendo?
Por que os donks podem infringir a lei e nós não? — Hani comentou
estupefato ao sair de fininho.
26. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
- Bom, eles têm o controle. — respondeu Loma. – Por isso penso
em ficar longe das vielas, e conheço o lugar certo. — mencionou,
deixando Hani ansioso em chegar lá.
- Então, leve-nos até lá!
Surpreendidos pela tática miliciana, os três não imaginam ver
sentinelas de tocaia no telhado passando-lhes despercebidas, só
esperando pelo momento em que agissem e revelassem para qual lado
se moveriam. Do alto, o donk os avista esgueirando-se do local e soa o
apito. Dois silvos longos.
Apesar de o aviso provocar uma reação no destacamento, a tropa
reunida em frente ao condomínio não se mexeu enquanto o chefe de
milícia deu a ordem a eles, fazendo um gesto simples ao apontar a
direção para onde deviam marchar, e só então partiram
apressadamente.
Ao ouvirem o apito soar mais uma vez, o desespero tomou conta
dos jovens foragidos, pois sabiam das poucas chances de continuarem
vivos, conquanto que a um passo adiante da tropa. Então tomaram
cuidado para não serem vistos atravessando de uma rua à outra, até
chegarem à entrada do cemitério.
- É aqui? — indagou um assustado Hani.
- Eu sei. Parece macabro, mas ali dentro tem porões e alçapões
que podem nos servir de esconderijo. É só acharmos um mausoléu
aberto! — afirmou Loma já firmando as pernas para escalar o muro.
- Não me importo de atormentar algumas almas antes de nos
juntarmos a elas. Quem quiser ficar, pode ficar! — ironizou Rashiv.
- É! Não tenho uma boa desculpa para dar aos meus pais. —
27. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
retorquiu Hani, de rosto pálido, dando impulso para subir no muro.
A necrópole ocupava uma área fora do perímetro urbano, cercada
por um muro de concreto ligeiramente inclinado para dentro, facilitando
ser escalado pelo trio.
Entraram rapidamente no cemitério, e apesar de serem corajosos,
sentiam aquele friozinho na espinha ao pensarem, ironicamente, terem
aberto a própria sepultura.
Hani caiu sobre o tampo de uma lápide em um tropeço e nela
havia uma frase entalhada no mármore, dizendo: “Nunca revelei minha
admiração por aqueles que insistem em ver além da escuridão".
Ergueu-se duvidando se valia a pena prosseguir com a fuga.
- Vamos logo, Hani! Terá bastante tempo para admirar um túmulo
quando estiver dentro do seu. — praguejou Rashiv.
Diante da insistência do amigo, meneou a cabeça e caminhou
para junto dos colegas, indagando o que fariam ao amanhecer:
- Esperem! Vamos ficar aqui só até o sol nascer, não é?
- Não tenho certeza ainda. — disse Loma.
- Está bem! Eu digo o que devemos fazer. De manhã cedo tem
um comboio marcado para levar trabalhadores à Terra Alta. — pensou
positivamente, e continuou: - Vamos nos misturar a eles nas caçambas,
assim escapamos do flagrante e tiramos as suspeitas sobre nós.
- Parece ser um bom plano, caso encontremos um esconderijo. —
Loma pensou assertivamente.
- E tem mais. Nunca digam às pessoas o que viram. — Hani pediu
como parte de uma promessa.
- Concordo. — afirmou Rashiv: - Mas levará muito tempo até eu
28. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
esquecer essa maldita armadilha! Pois ninguém se importará com o
que aconteceu esta noite, caso nenhum de nós sobreviva.
- Também estou de acordo. — confirmou Loma.
Ao assumir o compromisso de não revelar a experiência daquela
noite, os três reconheceram a precariedade da convivência no âmbito
da cidadela, onde suas vidas estão sempre ameaçadas caso teimem
em não seguir os preceitos da Irmandade dos Unos.
O cidadão temeroso sabe não ser correto contradizer a legislação.
Mas se cada um pudesse vislumbrar o mundo sob a luz da razão,
veriam o fanatismo impetrado pelas gerações de profetas como regras
comportamentais feitas à imagem de suas almas perturbadas, e não os
desígnios do verdadeiro Deus.
Essa idiossincrasia fazia o povo ter dificuldade em aceitar a si
próprio, individualmente.
O conhecimento dos profetas diverge bastante da teoria proferida
no mosteiro de Albúrdia, onde se fala de um Universo constituído por
uma amálgama sem fronteira. Todavia, os habitantes da cidadela são
protegidos da selvageria do mundo pelo Silas e, portanto, não irão obter
permissão para tirar proveito da ciência ou questionar suas crenças
usando ela.
Mais adiante, Hani se recordou de algo que poderia ajudá-los.
- Esperem! — completou: - Agora me lembrei de um lugar que
pode nos servir de abrigo, e fica bem perto daqui.
- Então, vamos indo depressa. — disse Loma ao pegar Hani pelo
braço para apressá-lo, pois teria avistado um de seus perseguidores.
O silêncio dos túmulos foi quebrado pelo rufar de granadas de gás
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batendo contra o chão a uma distancia segura, disparando a cortina de
fumaça que obrigou os foragidos a debandar rápido.
- Os donks! Como nos encontraram? — disse exasperado,
Rashiv.
- Não faço ideia, mas logo irão nos alcançar. — concluiu Loma.
- Vamos para lá, o abrigo fica daquele lado. — encorajou-os Hani.
- É melhor estar certo, ou ficaremos encurralados. — disse Loma
ao avistar o contorno do muro muito além dos túmulos.
Como se a esperança suspirasse mais uma vez, o trio locomoveu-
se bem depressa entre as tumbas do cemitério, ganhando uma
distância razoável de seus incansáveis perseguidores.
À medida que corriam toda escultura de pedra criava uma sombra
de animação horripilante sob a luz do luar, como simples ilusão de
ótica, cuja sensação percebida por cada um deles foi a de ver arranjos
místicos rogarem por suas almas.
- Ali! É bem ali. Na capela. — apontou Hani.
Na intenção de orientar os companheiros em fuga, Hani se
distraiu e tropeçou mais uma vez, de perna esquerda na tumba, caindo
ao chão gemendo de dor.
- Ai! Como dói. — dizia segurando a perna ferida com ambas as
mãos na altura do joelho, enquanto Loma aproximava-se para ajudá-lo.
- Vou carregar você até a cripta. — afirmou enquanto levantava
Hani do chão, apoiando-o sobre seu ombro.
Hani rangeu de dor quando Loma o retirou do chão, e continuou
gemendo ao ser carregado até a capela, aonde Rashiv os aguardava.
- Ali...! — resfolegou.
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Hani parecia delirar ao sacudir o braço sobre o ombro de Loma,
enquanto dizia:
- No pedestal do vaso... — resfolegou novamente: - Para entrar
no abrigo..., basta tocar... Ai!Ai!Ai!
Loma abafou a boca de Hani receando que pudessem escutá-lo.
Em seguida, pediu a atenção de Rashiv para ficar atento ao menor sinal
da guarda palaciana.
- Fique de olhos bem abertos! — falou baixinho, depois ajudou
Hani a sentar na beirada de uma cripta, usando a lápide como encosto,
e lhe perguntou: - Do que está falando? Como sabe se há abrigo aqui?
- Eu sei. — respondeu, e explicou em seguida: - Meu pai me
trouxe aqui há alguns dias e eu o vi consertar o alçapão da cripta de um
membro do parlamento. Meu pai instalou um dispositivo especial,
acionado de fora, como uma tranca, e fica bem ali, naquele jarro
grande.
- Rashiv, quando alguma sentinela aparecer...!
- Não se preocupe! Não vejo nenhum sinal deles. — Rashiv
respondeu a Loma, mantendo vigília nos arredores da cripta.
Loma se dirigiu até o local indicado, um pequeno altar ao ar livre
com pedestal e um cântaro em cima. Contando com algum tempo para
abrir o esconderijo, Loma tateou todas as bordas e extremidades do
objeto, mas nada aconteceu. Reparou no par de rubis vermelhos
cravados na fronte do pedestal e pensou se serviam para acionar o
mecanismo da trava, mas essa intenção também foi frustrada. Notou o
piso de mármore a partir da base do pedestal, liso e aparentemente
hialino, formando o tampo da cripta, e logo se indagou: por qual razão
31. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
membros do parlamento mereceriam ter um belo funeral? Em seu
desespero não percebeu os rubis começarem a esmaecer.
- Loma! Loma! Eu os vejo. Estão bem ali.
Os gritos de alerta de Rashiv o avisa da aparição repentina de um
bando de soldados saltitando sobre as sepulturas, e faz Loma volver o
rosto naquela direção.
- Abra isso logo ou farão nosso enterro esta noite. — Rashiv
cobrou dele desesperadamente.
Loma tirou o vaso de cima do pedestal e vasculhou cada borda a
fim de acionar o mecanismo oculto, quando, por acaso, viu os rubis
descolorindo.
- Ora, como isso aconteceu? — se perguntou, achando ter feito
alguma coisa com eles.
Pensando se tratar do mecanismo de abertura do alçapão, Loma
resolveu buscar Hani antes de algo acontecer. Quando correu na
direção do amigo foi surpreendido por dois soldados que surgiram de
repente no seu caminho. Ele se atracou no chão com um deles
enquanto o outro partiu para cima de Rashiv.
Hani se endireitou sobre a tumba e ficou encolhido de medo, caso
mais soldados aparecessem e o molestassem.
Aquele primeiro soldado levou certa vantagem no início, quando
derruba Loma ao chão, mas este escapuliu rolando para longe e ambos
levantaram para um novo embate. Rashiv também investiu contra seu
opositor, que usava as botas pesadas para tentar atingir as pernas dele.
Apesar de todos os soldados possuírem altura e força bruta, não
tinham golpes rápidos, porém, contavam com uma série de acessórios
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presentes no uniforme para proteger o corpo em um confronto direto.
Entretanto, isso os deixava vulneráveis na linha da cintura, devido à
necessidade de movimento dos braços. Além desse, outro bom ponto
de ataque estava marcado pela tira de fixação do capacete, que
deixava parte do queixo exposto para ser golpeado.
Dessa maneira, os soldados resistiram aos golpes e contragolpes
dos rapazes, quando estes resolveram combinar socos e chutes com
movimentos acrobáticos feitos com o corpo, ora apoiados no chão, ora
girando livre no ar. E após infligirem uma sequência magnífica de
golpes atingiram ambos os donks no queixo, que tombam
desacordados.
- Este é pelo meu amigo Saied. — resmungou Rashiv ao chutar o
rosto do donk sob seus pés.
- Fica aqui! Eu tenho de pegar Hani. — falou Loma, preocupado
em fugir antes da chegada do resto da milícia. Deu dois passos à frente
e parou para ouvir de Rashiv uma interessante constatação.
- Estes dois não trouxeram rifles. Acho que nos querem vivos.
Nem bem terminou de falar, ouviram um estampido, e em
seguida, o corpo imóvel de Rashiv caiu ao chão com a cabeça
ensanguentada.
Outro tiro passou zunindo sobre a cabeça de Loma, que se jogava
por cima da lápide à sua esquerda, rolando rapidamente para dentro do
espaço entre a fila de sepulturas, fora da mira do franco-atirador.
Depois disso, ergueu um pouco a cabeça e flagrou vários donks
armados abordando Hani sem violência, porém forçavam-no a se
agachar com as mãos sobre a cabeça, mesmo sabendo estar com a
33. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
perna ferida.
Mais um tiro. E desta vez riscou a superfície da tumba servindo-
lhe de proteção, apressando-o a se retirar dali usando os cotovelos
para ir arrastando pelo vão de volta a cripta com pedestal.
O franco-atirador passou ao lado do corpo de Rashiv e partiu para
cima das sepulturas, empunhando o rifle na direção do espaço vago
entre elas, determinado a vasculhar cada reentrância onde o foragido
pudesse estar escondido, até finalmente avistá-lo. Loma se elevava do
chão, próximo à cripta e a alguns metros de distancia. Sem vacilar, o
atirador fez múltiplos disparos contra o sujeito de esquiva sobre o muro
baixo na cercania da sepultura.
Naquela altura Loma não esperava ter a sorte de escapar com
vida. No entanto, quando deu o salto por cima da mureta, esperava
bem mais do que cair sobre a sepultura, sentindo o mármore frio tocar
em seu rosto do outro lado. Tentou bater com os punhos no mármore
para a tal passagem abrir, mas nada aconteceu.
Depois dessa medida desesperada, só lhe restou cobrir a nuca
para protegê-la dos fragmentos vindos do magnífico pedestal e do jarro,
após estes serem despedaçados no tiroteio.
- Por Jauy! Por Jauy! — murmurava para si quando, de repente,
seu corpo ganhou peso e começou a cair para dentro do piso hialino.
Esta sensação confusa durou uns poucos segundos, e enquanto
sofria a queda, o alçapão se fechou acima dele, vindo a bater com a
cabeça contra o chão duro e desfalecendo em seguida, devido à
concussão.
Quanto aos rubis, voltam a colorir tão logo o alçapão se fecha.
34. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
Um minuto depois o franco-atirador caminhou até a sepultura,
certo de o corpo do foragido estar estatelado sobre ela, mas só veio a
constatar o sumiço de sua presa. Ele faz uma busca nos arredores e
percebe tê-lo perdido misteriosamente. Bastante contrariado, olhou
para a capelinha interessado em Hani, resolvendo se juntar aos
soldados que o vigiavam. No caminho pensava na maneira de
submeter o prisioneiro a um interrogatório e saber sobre o foragido que
escapuliu.
Hani sentia dores no corpo por ter permanecido naquela posição
desconfortável durante muito tempo. Ele acompanhou de longe a morte
de Rashiv e a fuga audaciosa de Loma, mas não tinha certeza se este
havia conseguido usar o abrigo para escapar ileso. De longe, só pôde
ver o vulto dele agachando-se sobre a sepultura quando estava debaixo
de fogo cerrado. Mas assim que viu o donk examinando o tumulo de
cima da mureta teve a sensação de ver seu plano ter funcionado, ao
menos para um deles. A certeza de o alçapão secreto ter poupado o
amigo veio quando o atirador se juntou a eles, bastante frustrado. E tão
logo este chegou, mostrou ter ido interrogá-lo.
- Fale! Para onde ele foi? — inquiriu rispidamente, pegando-o
pelos cabelos enquanto as sentinelas mantinham os rifles em riste.
- Eu não sei do que está falando. — respondeu Hani, mantendo
as mãos perto da cabeça dolorida para não provocar quem o mantinha
na mira.
- Vocês tinham um plano para fugir. Fale!
- Pra quê se já sabe que não deu certo? — retorquiu.
35. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
O donk desistiu do interrogatório, pois não arrancaria nada dele.
- Vamos levá-lo daqui, agora! — ordenou e completou com certa
preocupação: - Este lugar deve estar possuído pelas trevas.
Hani deu um sorriso maroto ao ouvir as palavras supersticiosas
da sentinela imaginando o cemitério possuído por forças sobrenaturais.
Em seguida, os dois soldados baixaram as armas e o levantaram,
apoiando os braços dele sobre seus ombros e o segurando pela cintura
para mancar enquanto o carregavam.
E antes de a noite chegar ao fim o levam às catacumbas do
palácio, onde aguardaria ser julgado pela população no Alays-viv.
De manhã cedo, a cidade estava coberta por neblina e o
enegrecido céu cedia lugar aos raios de sol despontando no horizonte,
tornando o grande círculo lunar opaco a luz do dia.
Com a claridade do dia, os encantos da natureza são revelados
sob as formas exóticas detrás das sombras, enquanto nuvens de tom
amarelo tostado pairam sobre o céu azul, a meio-tom esverdeado.
A lua de Orgiyê tornou-se pálida, mas ainda assim o objeto mais
viçoso visto de qualquer lugar da superfície.
Nestas primeiras horas da manhã há sempre um nevoeiro denso
a cobrir grande parte da floresta no continente e as matas na ilha,
sendo mais disperso na região litorânea, onde porções gasosas são
vistas se desmanchando lentamente em longos rastros acima das
árvores, antes de evaporarem por completo.
Uivos e sons alarmantes de bichos andarilhos percorrem as trilhas
da floresta de mata intocada. Enquanto isso, animais agindo na calada
36. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
da noite retornam às suas tocas para o merecido descanso, depois de
caçar o seu sustento, fechando o ciclo natural dos predadores noturnos
neste bravo mundo, onde animais terrestres, de pequeno e grande
porte, ou tipos estranhos de roedores, lagartos, serpentes e pássaros
silvestres, representam a biodiversidade presente em toda parte.
Também existem insetos de espécimes variados em meio à
vegetação abundante, com diversas árvores de tamanho descomunal e
frutos de sabores exóticos. Vários tipos de plantas ornamentais, de
cores exuberantes e formatos impensáveis, cobrem o terreno
inexplorado. Pássaros sobrevoam os arredores de seus ninhos, piando
alegremente frente ao rugido de feras medonhas.
Para os moradores da cidadela, as terras do continente são um
paraíso impenetrável e nenhum deles trocaria à vida pacata do
povoado na ilha pela emoção de viver perigosamente cercado de
terríveis feras.
Dificilmente alguém vindo do continente esbarraria na ilha, pois
esta dista um quilômetro e meio da costa, no topo de uma montanha
submarina que há milhões de anos alojava a cratera de um
supervulcão. Contudo, existe uma ponte natural ligando-a a praia e é
feita dos sedimentos de lava vulcânica, mas esta estrada natural fica
submersa durante a maré alta e os habitantes da ilha não têm
permissão para cruzá-la porque são mantidos exilados em seu próprio
território.
No entanto, a vida no povoado de 8.200 habitantes sempre foi
bastante agitada, pois existe comércio constante e obrigatoriedade de
serviços para os quais os habitantes são constantemente treinados. A
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cidade foi projetada dentro de uma área urbana, distribuída por 1.308
Km2. Possui nichos adjacentes onde instalaram pequenas indústrias de
base e sítios de agricultura familiar. A produção agropecuária ocupa a
zona rural fora da área urbana e uma extensa região no topo da
chapada, a Terra Alta, que é a porção mais elevada da ilha, onde há
350 hectares de terra cultivável e campo de pastagem.
Diariamente a rotina da cidade gira em torno de ávidos feirantes,
mas apesar disto, não existe o lucro. Eles passam horas arrumando as
especiarias à venda nos empórios ou em barracas de rua, montadas na
frente das suas casas.
Cada pessoa tem obrigação de realizar os afazeres dentro da sua
competência, atribuída durante o ciclo de aprendizagem. Depois de ter
sua profissão homologada todo cidadão a exerce obedecendo a regras
de conduta ditadas pelo Conselho Supremo.
Para alguns, o trabalho árduo exige vigoroso esforço físico. É o
caso dos obreiros e camponeses, obrigados há passar vários dias
longe da família para desempenhar o trabalho em Terra Alta.
Geralmente os camponeses mais jovens buscam reunir-se em
bando antes de prosseguir para o local onde irão embarcar no carroção
de transporte, e todos seguem um líder.
Hayri era o trabalhador tenaz, alto, magro, de cabelos negros e
divertia-se muito contando anedotas a seus seguidores maltrapilhos.
Muito popular entre os colhedores, grupo encarregado de fazer a
colheita no campo. Por outro lado, sempre procurou evitar algazarra na
frente da casa dos camponeses mais velhos.
Na porta das moradias desses homens truculentos e de mãos
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calejadas uma cena vista em toda nova colheita repetia-se: os homens
despediam-se de suas mulheres, que ficariam sozinhas cuidando do lar
enquanto eles partiam para exercer suas atividades na fazenda.
Porém, naquela manhã a rotina seria interrompida pelo súbito
aparecimento do mensageiro do palácio, cavalgando em cela de couro
sobre um cavalo de pelo lustroso e branco.
- Todos para a praça! Todos para a praça! — anunciava em voz
alta e clara em cada viela pela qual passava. - Vai haver procissão!
O povo atendeu imediatamente a convocação, provocando o
atolamento das ruas ao se dirigirem à praça pública. No caminho, o
mesmo mensageiro fazia menção aos ritos da procissão da verdade;
geralmente por causa de uma violação do toque de recolher. E
cavalgando no meio do povo, o núncio tomou o sentido do Palácio do
Templo, indiferente a superstição entre os habitantes.
Alguns confessavam temer uma praga por causa do sacrilégio,
outros só recordavam não ver um evento desse tipo há muito tempo.
O propósito da procissão da verdade, por ser um ato de contexto
religioso, sempre foi livrar a alma do postulante de seu corpo material,
com o intuito de ele experimentar a benção da purificação ao renascer
em outra essência, numa nova vida.
Tão logo o intrépido mensageiro atravessou o pátio do palácio,
galgou a grande escadaria a galope, e foi indo com seu cavalo até a
passagem situada no lado direito, rumo ao subsolo.
Enquanto o núncio desaparecia pela obscura entrada, o clero
dava início à procissão da verdade. O primeiro passo foi fazer soar
longas badaladas a partir de uma série de tubos de aço, de
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comprimento e diâmetro diferentes, aninhados como instrumento de
percussão dentro da torre principal do templo. Alternando o tom e
compasso dos sinais a população sabia quando deveria realizar alguns
dos atos ritualísticos da maneira esperada, durante a passeata.
Costumeiramente, o cântico entoado durante a cerimônia servia
para alertar os arcanjos de Orgiyê para ficarem de prontidão e receber
a alma do postulante em seus domínios.
Além da marcação sonora era preciso seguir alguns passos
durante a cerimônia, cujo propósito visava elevar a percepção das
pessoas perante o Silas. Desse modo ele podia captar o pensamento
de alguém a distancia, como se estivesse ouvindo suas lamentações.
Na verdade, o Silas literalmente as vigiava do terraço.
Ele despertou naquela manhã disposto a subir ao alto da torre
para observar a quantidade de pessoas acomodadas no pátio,
aguardando entoar o canto ritual. Concomitantemente, nestas ocasiões
o conselho episcopal também se reunia no terraço, e logo apareceram
outros clérigos para participar do evento, quando Silas saúda o povo:
- Aos devotos, dou as graças do Senhor! — o povo exaltou. - Que
o Senhor ouça essa prece e salve a alma insolente do corpo imaculado.
— Silas rogou a prece dirigindo-se aos obedientes cidadãos
aglutinados na grande praça celestina, vindos de todos os cantos da
cidade.
Frei Calstin também deu a bênção.
- Dou minhas graças ao misericordioso Deus.
E um conselheiro mais exaltado pronunciou:
- Que o hipócrita queime nas trevas! — e aponta veemente o
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lugar para onde todos os olhares da praça iriam convergir minutos
depois: o altar do perdão.
Dali do alto era possível notar a quantidade de pessoas mal
distribuídas pelo imenso pátio de concreto. Tudo por causa da maior
concentração de gente em torno do vão central, próximo ao piso
elevado sob o qual viria a transcorrer o evento principal, calhando de
quem ficasse de longe não ver direito a execução do profanador.
- Somos todos nós semente da carne e através da purificação o
espírito profano irá se converter em um novo ser, de alma límpida.
Abençoados sejam os Senhores de Orgiyê! — com esta frase Silas
encerrou o momento contemplativo, ordenando os conselheiros a
seguir pelas escadas até o palanque montado na fachada do templo;
tocando no ombro de cada um, e lhes dizendo:
- Livra-te com prece a alma do pecador!
Depois de dispensá-los, Silas volta ao parapeito e fica admirando
o patíbulo aonde o profanador irá ser executado.
Aquele magnífico altar ao ar livre, criado para celebrar a vida, foi
moldado por hábeis artesãos em um único bloco granítico, lapidado na
rocha mais dura e de cor escura, retirada das profundezas do poço
mais fundo sob o chão. E para chegarem àquele formato, os artesões
tiveram de seguir cálculos trigonométricos fornecidos pelo Silas, e
esculpiram a partir da base quadrada, deixando três hastes reclinadas
em cima, se fazendo dos lados de um triângulo isósceles, exceto pela
ausência da ponta de cada vértice, supondo que a energia cósmica
fosse completar o ápice imaginário.
Apesar de o ícone ter sido construído para outros fins, os
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guardiões da Oscarenta aprenderam como manipular a radioatividade
contida na rocha e tornaram seu propósito sinistro.
Após passar um período inanimado, Loma recuperou a
consciência e se mexeu no refúgio subterrâneo, sentindo ainda os
efeitos da forte contusão na cabeça. Na ausência de luz nem deu para
desconfiar da aparência da guarida, fria e de cheiro muito estranho.
Loma sentou com uma perna esticada e a outra recolhida, passando a
mão por baixo do colarinho para pegar o saquinho amarrado ao cordão
no pescoço, onde trazia grãos benzidos para lhe dar sorte. Então,
cerrou o punho em torno do caborje e recitou a prece dos injustiçados,
agradecendo por continuar vivo.
Algum tempo depois, notou o foco de luz na parede à sua frente
ganhar mais brilho conforme o dia lá fora clareava. Ele se levantou e
ficou em pé para gritar e sovar o teto, enquanto tenta enxergar a
superfície de maneira restrita. Um raio de sol converteu pela abertura,
quase o cegando, e clareou o cubículo hermético, revelando a ele de
onde advinha o seu desconforto, até então, do odor fétido e do
suspense claustrofóbico, sendo surpreendido por uma figura hedionda
ao se virar de frente para o cadáver putrefato.
Refeito do susto, perguntou para si mesmo se a carcaça teria sido
de alguém que escapulira anteriormente, então esbravejou:
- Por Jauy! Caí em outra armadilha.
Frustrado, esmurrou o alçapão mais de uma vez.
Enquanto Loma perdia o juízo no subsolo.
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Duas mulheres, trajando manto encapuzado na cor lilás, visitavam
a capelinha quando uma delas começou a caminhar na direção da
cripta que tinha o pedestal danificado, e naquele momento ouviram ao
longe os sinos da torre do templo.
A Dona Helena, senhora idosa, chamou por Cássia, a formosa
jovem de cabelos longos e avermelhados que, ignorando o chamado da
procissão, pretendia orar por entes falecidos.
- Vá depressa, minha filha! — disse em alta voz ao afastar o
capuchinho do rosto e expô-lo à geada matinal. - Ou vão nos maltratar
por causa disto.
A jovem apressou-se em escolher o lugar onde faria as preces
naquela manhã e, rapidamente, elegeu o túmulo de pedra opaca,
estranhando haver pedaços cerâmicos esparramados sobre a sepultura
e o pedestal quebrado, ignorando os sinais claros de vandalismo para
então se ajoelhar e começar a rezar baixinho e repetir a mesma prece
por várias vezes, olhando fixamente e se vendo solitária na imagem
refletida sobre a superfície lisa do tampo funesto.
- Oh, Senhor! Pai de todas as famílias neste terreno sagrado.
Aceitai esta prece e livrai da dor os que vêm ao seu auxílio. Abençoai o
amor de teus filhos celestinos. Abençoado seja!
Embora estivesse sendo observada do subsolo por uma pessoa
irada, ela jamais imaginaria em aplacar a fúria do prisioneiro a seus
pés. Loma foi se sentindo mais confortável ao vislumbrar através da
janelinha do alçapão o rosto meigo e de olhos amendoados. Suas
palpitações foram abrandando conforme adivinhava algumas das
palavras ditas na prece, pronunciadas com amor no coração.
43. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
Ele experimenta tocá-la, mesmo sabendo que o componente
translúcido no teto os separa. Sem conseguir, teve de se contentar em
admirar de longe as maçãs do rosto dela, as mechas ruivas do cabelo e
ler despretensiosamente aqueles lábios lhe dirigindo palavras de
consolo.
Loma desejou pegá-la em seus braços, porém, pensar nisso só
lhe causou mais decepção. Tomado por um desejo alucinado de
escapar do calabouço, restou a ele socar o alçapão na esperança de
ela tirá-lo de lá. Deu socos cada vez mais fortes até a ver ir embora,
cedendo sua índole intransigente ao desânimo.
Enquanto isso, no lado de fora, os sinos da torre continuavam a
alertar sobre o início da procissão.
- Vamos logo, minha filha! O sinal da torre nos chama. — clamava
a mãe querendo evitar qualquer implicação.
- Já estou indo, mãe! — Cássia respondeu, tranquilizando-a.
Depois de se erguer, a jovem ruiva deu a volta na cripta,
passando junto ao pedestal antes de se juntar a mãe.
Mais uma vez os rubis dão uma esmaecida e em pouco tempo as
gemas tornam-se brancas.
Sem saber o motivo da correria do lado de fora do calabouço,
Loma sentiu falta da presença da moça e encostou o rosto junto à
janela do alçapão para procurá-la. Por conta do pouco ângulo, ficou
sem saber para onde ela pudesse ter ido, aumentando a sua frustração.
Então passou a golpear a parede, suplicando para ela voltar com ajuda.
- Volta para mim! Volta!
Para superar a raiva, deu um chute no esqueleto apodrecido, o
44. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
desmanchando em cacos. Por fim, caiu em desespero, encobrindo o
rosto com as mãos e contendo o choro só por um momento. De rosto
transtornado, Loma abriu os braços e soltou um grito fenomenal,
inclinando a face para o teto de olhos fechados.
- Maldito seja! Vou amaldiçoá-lo até apodrecer neste lugar!
Um segundo depois, seus olhos lacrimejados arregalaram assim
que ouviu o barulho da porta do alçapão ao se escancarar acima de
sua cabeça, e, agindo instintivamente, ele se encolheu todo no chão.
- O que foi isso? — disse com a mão fazendo sombra nos olhos.
A claridade do dia atrapalhava sua visão enquanto tenta enxergar
a qual altura estava o topo, pois teria de sair dali sozinho e não
dispunha de muito tempo. Sabendo disto, se posicionou para ganhar
impulso e deu um pulo, conseguindo se firmar com um braço na beira
da sepultura. Loma faz um tremendo esforço para ficar agarrado e não
escorregar, apoiando os pés contra a parede para dar outro impulso e
desalojar-se da armadilha antes de o alçapão se fechar.
- Que alívio. — disse ao ver o túmulo se fechando, exatamente
como aconteceu da primeira vez. E só então deu atenção às
badaladas.
Ainda deitado escutou o som do sino antes de este extinguir-se,
vindo a saber qual o motivo da moça desaparecer de repente.
- Por Jauy! O som veio do templo. — pronunciou admirando o
contorno do Domo e a torre do Palácio ao longe.
O sinal fazia parte de um grande evento em andamento naquele
exato momento. Pela tradição, ninguém podia desprezar o chamado, e
àquela altura, boa parte do povoado já teria se reunido em local aberto.
45. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
Provavelmente os donks teriam poupado Hani para a realização
do ritual e Loma achava satisfatória a ideia de tentar saber se o amigo
seria levado ao altar das almas, ou ainda, reencontrar a jovem ruiva,
mesmo conhecendo o risco de ser apanhado pela guarda palaciana ao
deixar o cemitério. Para tanto, passou a agir com extrema cautela,
desviando das tumbas sorrateiramente até chegar à saída.
Uma vez do lado de fora, procurou seguir por vielas desprovidas
de sentinelas, se apoderando de um manto com capuz no varal de uma
casa vazia para disfarçar sua identidade. Se sentindo mais protegido,
Loma peregrinou pelas ruas até a praça do templo, onde o povo estava
reunido para assistir o evento, sem se importar se aquilo significasse
para ele a perda de mais um amigo.
Loma não notou o Silas espreitando do terraço, mas sentiu um
forte desejo de volver o olhar naquela direção. E quando o fez, Silas já
havia se dirigido ao outro extremo do terraço, então, voltou a andar
tranquilamente entre as pessoas na praça.
Silas gostava de admirar o Domo ao resplendor do sol. A
gigantesca cúpula encravada no manto de feldspato fora erigida à
espera do messias cósmico, o talentoso guardião há quem um dia o
Domo revelaria todos os seus segredos. E cravara seus pensamentos
nisto quando um leve tremor nas mãos o lembra de voltar ligeiro para a
multidão. Disposto a achar um rosto, passou a enxergar a todos como
quem procura por um lobo escondido no rebanho. E nesse instante, um
mensageiro adentrou despercebido enquanto Silas estava com a mente
envolvida na percepção de pensamentos alheios. Nem mesmo o viu
ajoelhar-se atrás de si.
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- Vossa Excelência! — a interjeição fez Silas rejubilar e volver-se
ao escutar o núncio falar: - Os habitantes esperam para celebrar junto
a...
- Eu vejo! — objurgou, dando-lhe as costas, pois só queria
conhecer quem ele procurava lá fora.
- Mas meu senhor! O povo quer saber o nome do profanador que
escapou na noite de ontem. — advertiu o núncio, sem esconder o temor
da superstição.
- Eu compreendo. — Silas respondeu com firmeza.
- O soldado não extraiu o paradeiro dele na confissão do
bastardo, Hani de Citra, e alega ter perdido o rastro do violador de
maneira inexplicável. — resumiu o fato e aguardou orientação do Silas.
- A ocorrência é no mínimo desanimadora e parece ter causado
superstição entre membros da guarnição. — recriminou Silas.
- Estão receosos quanto ao súbito desaparecimento do violador.
— disse o núncio, abrandando a voz assim que Silas se virou para ele:
- Alguns dizem tê-lo visto escapulir diante da mira do franco-atirador,
até que evaporou no ar, segundo comentários. — o núncio não quis
parecer ter acreditado no rumor, e então retificou: - Não existe um modo
de saber se aconteceu de verdade.
- Mas há uma maneira. — contornou o núncio a passos lentos: -
Envie a eles esta mensagem! — o servo reclinou o corpo para escutar:
- O violador escapuliu das mãos das sentinelas, mas não aos olhos do
Silas. O que tudo sabe e nada lhe escapa! — afirmou, e parou diante
de um vaso bojudo decorado com flores vermelhas.
- Vossa Excelência não se importa com a escapada do profano?
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— o mensageiro deu de ombros.
Silas repreendendo-o com o olhar, e falou:
- Não ouse duvidar de mim! A essência do profano está ao
alcance do Silas, assim como tudo que o poder da Oscarenta controla.
— passou a mão sobre o vaso e retirou uma flor, sentiu o seu perfume.
As pétalas começaram a murchar, levando o temerário mensageiro a
deixar o recinto.
O profeta largou a flor e retomou a busca. Queria achar quem o
perturbara, e passados alguns segundos, um enigmático sorriso brotou
em seus lábios.
O povo reunido no paço murmurava o cântico ritual como de
costume e atentos ao que sucedia à porta do templo, onde foi armado
um palanque improvisado. Viam sacerdotes colocando doze cadeiras
no alto da escadaria voltadas para a multidão. Minutos mais tarde,
cerca de mil sentinelas subindo em marcha a rampa de saída do
subsolo, da cava aberta no lado direito do edifício, surgiam de escudo
na mão em duas fileiras pretendendo estabelecer um corredor entre
aquela saída e o pilão das almas, atravessando a multidão.
Eles foram se enfiando e abrindo caminho entre as pessoas até
atingir o marco público. Somente com o avanço a multidão recua certa
distancia, afastando-se mais um pouco, abrindo terreno para a
travessia do prisioneiro. Depois disso, as sentinelas se deram o braço
esquerdo, levando ao ombro do companheiro ao lado, e estabeleceram
distancia entre si para alongar o cordão de isolamento do corredor.
Logo mais, Mentor surgiu no terraço, exibindo uma flâmula com o
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símbolo da irmandade, e então pronunciou o orago em alta voz.
- Ó Senhor! Despertai-nos das sombras! Conjuramos o santíssimo
fogo cósmico a banir o infiel da natureza criadora. Arrebata todos os
males que o afasta de vós. Ó Senhor! Perdoai a alma, pois sucumbiu
ao mal. Na Sagrada Procissão! Santa Purificação da Fé! — esperou um
momento e depois pediu: - Silenciem!
O povo aquietou-se. E Mentor concluiu deu discurso, dizendo:
- Tragam o abnegado para receber o castigo.
Apreensivo, o publico passou a espreitar a saída inferior do
templo, de onde começaram a ouvir sons melancólicos provenientes de
flautas e rufos de tambores, seguidos de chocalhos. Instrumentos
variados tocados por um conjunto de músicos deixando a cava em
companhia da carroça-prisão puxada por dois cavalos, onde se achava
o apóstata.
Mentor sorriu ao anunciar a presença do violador.
- Olhem bem para o profano. — apontou a pequena cela de
barras em cima da carroça, onde dois carrascos encapuzados de
vestes sinistras seguiam dependurados em ambos os lados. - E digam
se ele merece compaixão!
- Somente o Senhor pode mostrar-lhe a verdade! — o publico
disse em coro, e continuou cantarolando o cântico ritual.
- Que assim seja! — com a frase, Mentor terminou o primeiro ato.
O desfile alegórico prosseguia sem parar, misturando-se com a
multidão ao usar a trilha formada pela guarda palaciana para chegar ao
marco público.
49. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
Minutos antes, no interior da cava inferior do templo.
Hani se sentia desorientado naquele ambiente de luminosidade
fraca, escuro por todo canto, exceto próximo à abertura que levava ao
exterior. O haviam colocado numa cela de chão frio, um cubículo de
paredes lisas com única entrada feita de barras de ferro, através da
qual distinguia a silhueta de quem, de vez em quando, atravessasse
diante da tênue luz.
Um pouco mais tarde, ouviu o solado de passos vindo em direção
à cela, seguido do ruído súbito do destravar de portas.
- Esperem um pouco! Para onde estão me levando? — perguntou
ao ser agarrado e tirado do cubículo.
E no meio de figuras sombrias, Hani tentou distinguir a face dos
carcereiros assim que estes o retiram da cela e o conduz até um lugar
qualquer naquela escuridão. Mas, por um instante, notou uma espécie
de máscara cobrindo o rosto dos seus captores.
- Eu não tenho culpa de nada. Para onde estão me levando? —
continuava a prosear sem se importar se haveria resposta.
Depois de ter sido arrastado por alguns metros, os carcereiros o
ergueram do chão para depositá-lo sobre uma plataforma de madeira,
lisa e malcheirosa.
- O que é isso? Está toda imunda. — reclamou de mãos sujas.
E enquanto reclina o corpo para se colocar em pé a plataforma
deu uma mexida e, ao mesmo tempo, escutou o relincho dos animais
atrelados a ela. De relance, o par de cavalos mais parecia duas
corcovas. Ademais, as listras grossas e perpendiculares em seu redor o
levaram a suspeitar de que fora colocado numa cela de barras sobre
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uma carroça.
- Ah! Outra cela! — Hani começou a surtar: - Ainda mais nesta
carroça fedorenta! E se ainda não sabem, eu nem gosto de animais.
Escutem aqui! Isto fede mais do que um cão molhado.
A falta de escrúpulos ficou evidente quando os indivíduos que o
carregaram tornam a pegá-lo pelos braços, fazendo-o reclinar o torso
para amarrá-los às costas, e depois disto, um deles sussurrou ao pé do
seu ouvido.
- É melhor parar de falar e começar a se arrepender do que fez.
Naquela altura não adiantava perguntar ao brutamonte qual era o
propósito de tudo aquilo, mas tentou mesmo assim.
- Bom conselho! Mas poderia dizer para mim...
A frase foi interrompida quando os carcereiros seguraram sua
cabeça e o amordaçaram, trazendo uma coleira com uma corda presa à
fivela e a colocando em torno do seu pescoço, amarrando ao anel de
ferro junto ao chão da cela. Tudo para mantê-lo calado e imóvel
enquanto a cela estivesse sendo rebocada perante a multidão.
Também não demorou muito para perceber o aumento no numero
de pessoas em redor da carroça. Devido à iluminação fraca, Hani só
podia enxergar vultos carregando certos apetrechos tribais, dando a ele
a sensação de estar rodeado por um bando de desajeitados.
A coleira apertou um pouco quando os cavalos deram a primeira
guinada para o lado e movimentaram a carroça, seguindo atrás dos
vultos em marcha, todos aparentemente de andar esquisito, ao toque
de vários tipos de instrumentos musicais. A carroça deu outra guinada e
mais vagarosa foi dirigida à rampa de saída, onde o conjunto de
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músicos era posto ordenado na alça exterior debaixo da claridade do
dia, momento em que Hani matou a curiosidade de vê-los como são.
A maioria deles tinha o corpo pintado, traziam adereços
pendurados e trajavam peças ritualísticas. O som da música vinha de
instrumentos diferentes e o ritmo acompanhava o cântico entoado pelo
público que assistia o cortejo do lado de fora.
Durante a subida da rampa, a carroça sofreu um solavanco e fez
a coleira repuxar forte, sufocando a garganta de Hani. Entretanto, seu
gemido de dor foi abafado pela mordaça.
Enquanto isso, nos arredores do pátio do templo.
Loma despistou as sentinelas em vigília nas redondezas e
avançou no meio do público esparramado por toda a área livre do
canteiro central, no qual se achava o altar do perdão. Ele se locomovia
devagar para não chamar tanta atenção sobre si, pois desta vez
descobrira sentinelas posicionadas no telhado das edificações
próximas. No intimo, pensava na sua sorte de estar no meio daquelas
pessoas enquanto um amigo estaria prestes a encontrar seu triste fim.
De repente, as pessoas no pátio ficaram agitadas, e ninguém
mais se mexia do lugar. Isso o obrigou a permanecer parado, até saber
se era confiável prosseguir. Instantes depois, as pessoas ficam
apreensivas ao ouvirem sons distintos vindos da fachada do templo.
Aos poucos ele também notou algo parecido com uma carroça de circo,
surgindo excepcionalmente do subsolo do templo acompanhada de
uma banda desconjuntada.
A claridade do sol passou a incomodar a visão de Hani tão logo a
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cela foi deixando a sombra da cava atrás de si, onde grandes portões
de ferro foram baixados para selar a entrada. Sem muita esperança,
Hani experimentou descrever para si as peculiaridades do grupo de
músicos na sua frente, percebendo o quão diferente são.
Alguns deles vestiam túnicas vermelhas e uma bizarra máscara
lhes cobria toda a cabeça; outros tinham o corpo pintado de preto com
largas faixas amarelas na cintura e o rosto todo branco; outros mais
estranhos, não tinham um fio de cabelo e vestiam saias de corda e
colares de ossos. A grande maioria tinha a pele tingida e símbolos
religiosos tatuados de branco, cujo significado apenas o clero conhecia.
Quando a carroça atingiu o nível da rua, o público se ajoelhou em
respeito à presença de alguém de suma importância. Hani
experimentou girar o corpo e olhar para trás, vendo à sua direita, pelo
canto do olho, o carrasco encapuzado do lado de fora da cela e, em
segundo plano, o grupo de sacerdotes levantando dos assentos acima
das escadas do templo. O movimento era em respeito ao vulto em traje
de tom escuro passando por eles e os cumprimentando um a um.
Enquanto isso acontecia, o carroção prosseguiu seu caminho em
meio ao público, costeado por soldados da guarda palaciana.
Subitamente, um dos homens encapuzados atingiu o rosto Hani
com o bastão, sugerindo que teria cometido um ato desrespeitoso.
- Não dirija o olhar profanador para o Silas. Entendeu?
Hani nada disse depois de receber o golpe, mas amaldiçoou-o em
pensamento.
Os doze bispos receberam os cumprimentos do Silas enquanto
dois acompanhantes do profeta, trajando vestes exuberantes, de cores
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abstratas, vão ao encontro de Mentor carregando duas almofadas
acetinadas, onde estavam acomodadas duas peças ritualísticas feitas
de ouro e gemas preciosas que, quando unidas, formariam o cetro
episcopal.
O cetro é um exótico brasão da Irmandade dos Unos. Através
dele o Silas distingue a fonte da razão e faz uso da onisciência cósmica
para tornar-se soberano dos elementos.
Mentor pegou uma das peças e a entregou ao Silas. Este a tomou
em suas mãos, apreciando o mosaico cravejado de brilhantes por
alguns segundos antes de volver e ficar de frente para o público.
Sua aparição faz o povo se postar de joelhos.
Silas exibiu o cetro ao povo e deu início a cerimônia, em seguida,
marcou o sentenciado ao apontar o cetro em direção à cela a caminho
do altar do perdão. Fez um gesto teatral e ordenou ao outro serviçal
que lhe entregasse o segundo objeto de adoração. O ajudante andou
até ele e deu em suas mãos uma espécie de cilindro de encaixe. De
posse das peças em cada mão Silas juntou as duas, acoplando o cetro
ao cilindro, formando o bastão episcopal, sendo este artefato um dos
segredos mais bem guardados da Irmandade dos Unos.
A seita surgiu no quinto centenário de Oregas, ainda quando o
Roshua se achava em conflito com o Congresso Popular pela questão
dos direitos legislativos. Seus fundadores terminaram endossando a
mudança de poder e o novo conselho permanente a ser instalado na
cúpula do governo em uma nova metrópole.
As manifestações populares e os vários atritos entre
congressistas conservadores e membros da nova irmandade,
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provocaram reações incriminadoras, tais como: a aprovação de atos
institucionais e a incorporação de uma guarda especial. Com o tempo,
o legislativo passou a constituir regras severas sob as quais o povo foi
obrigado a se submeter. No período de restabelecimento da ordem, o
sumo-sacerdote providenciou o bastão episcopal para ser utilizado na
ativação do Alays-Viv quando dissidentes fossem condenados em ato
público.
O cetro é abastecido por vibrações sonoras no momento em que
Silas e Mentor recebem as saudações do povo. E durante este ato o
povo comemora a apoteose enquanto os dois pedem para que gritem
mais, e mais alto, até Silas sentir a ponta escarlate rutilar e o bastão
episcopal abastecer-se de energia vital.
Porém, aquele foi um dia diferente para o Silas, e ele vacilou no
momento mais importante da cerimônia.
Precedendo a cerimônia.
Loma foi pego de surpresa ao ficar em pé, perdido ali no pátio,
enquanto as pessoas ajoelhavam-se depressa, mantendo ainda o corpo
curvado em direção ao templo, onde era possível ver a movimentação
entre membros do sacerdócio junto ao palanque.
Ele se abaixou procurando imitar as pessoas, e ao mesmo tempo
manteve a discreta atenção ao que ocorria no palanque.
Um clérigo, de aparência episcopal, apareceu acompanhado por
dois serviçais e se juntou aos sacerdotes ali presentes, concluindo de
imediato não se tratar de um sacerdote comum, pois não havia outro
que causasse tanto rebuliço senão o próprio taumaturgo, Silas.
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Tomado por um temor instintivo, Loma escondeu o rosto
rapidamente ao se lembrar de algo. Ele já tinha ouvido falar do poder
sobrenatural do Silas e temeu ser descoberto.
Entremeio ao pensamento tenaz devorando-o por dentro viu algo
incomum acontecer ao Silas. Os sacerdotes viram-no vacilar quando o
bastão episcopal estava prestes a ser ativado.
Diante da simetria sensorial usada para captar todas as
emanações de energia espiritual nas almas presentes no cerimonial,
Silas ficou vulnerável a um evento ignoto, nada natural, que lhe causou
uma ligeira dor de cabeça.
Continuando a cerimônia.
Loma ouviu o ruído de cascos de cavalo e resolveu erguer a
cabeça para ver quem estava em cima da carroça-prisão. Embora não
estivesse próximo o suficiente, avistou o vulto de cabelos emaranhados
na cela e esperou para assistir a retirada do prisioneiro quando
estacionassem junto ao patíbulo de pedra, e assim poder identifica-lo.
Os carcereiros saltaram das bordas da cela assim que a carroça
encostou a traseira no patíbulo a certa distancia do bando de músicos,
cujos integrantes dispersavam para fazer o contorno e retornar ao
templo tirando som dos trompetes enquanto preparavam a remoção do
prisioneiro.
Naquele momento fugidio, uma sensação de angústia invadiu seu
âmago e explodiu em seu interior, fazendo Loma recolher o rosto mais
uma vez para não ser descoberto.
E mais uma vez, Silas aparentou ter sido tomado por um mal-
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estar repentino ao levar a mão à testa. Mentor quis ampará-lo, porém,
Silas achou desnecessário e acenou reprovadamente, causando
comoção entre os doze sacerdotes ao protagonizar sua rápida
recuperação.
Mesmo desconhecendo o motivo de outra mente encontrar um
meio para abatê-lo, Silas deu continuidade à cerimônia incitando as
pessoas ajoelhadas a ficarem de pé.
- Revez vus. — tradução: <Levantem-se!>
E o povo obediente ficou de pé, tomando a atenção das
sentinelas e dando oportunidade ao esquivo Loma de embrenhar-se na
multidão, andando meio encurvado, até ficar a pouca distância do lugar
onde se achava a carroça-prisão.
A carroça estava estacionada tranquilamente ao lado do patíbulo
e lá ficou imóvel até o Silas ordenar ao público para erguerem-se do
chão.
Hani permaneceu esse tempo todo na cela, cabisbaixo, sem
ousar olhar para os rostos na multidão encarando-o com desprezo. E a
uma ordem do Silas, o piso da carroça estremeceu. Os dois carcereiros
abordaram a cela e o removeram das amarras.
- Venha cá, infiel! Saboreie o ódio dos deuses. — disse um dos
encapuzados ao pegar na coleira e puxá-lo para fora, ainda
amordaçado e de mãos amarradas às costas.
Dessa maneira o levam para cima do altar do perdão, onde o
colocaram de pé, no centro do pilão de pontas reclinadas.
O encapuzado à sua esquerda parecia sorrir detrás da máscara
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enquanto o outro lhe soltava as amarras dos braços e, em seguida, o
forçava a esticá-los até tocar com a palma da mão a superfície escura e
lisa dos dois vértices laterais.
- Eu acho que você não está gostando do que acabou de sentir.
— afirmou o encapuzado antes de soltar o seu braço.
Hani passou a sentir comichão nos dedos e antebraços após ter
tocado nos vértices. Em um segundo, o prurido se manifestou no resto
do corpo, causando enrijecimento muscular e paralisia total. Como seus
membros não respondiam à sua vontade, não se mexeu enquanto o
efeito daquilo foi se propagando pelo corpo. Mesmo assustado, tentou
gritar quando o encapuzado sorridente retirou-lhe a mordaça. Porém, o
que aconteceu o deixou mentalmente em pânico.
Hani ficou de boca aberta, mas completamente mudo após seus
músculos labiais endurecerem repentinamente. Sem poder mover uma
sobrancelha, restou-lhe ao menos observar o rosto dos que o assistiam
e rezar para um deles perceber sua agonia. Foi decepcionante chegar
ali decidido a berrar até o último sopro de vida e não encontrar forças
para fazê-lo. O efeito do pilão lhe trouxe a sensação de impotência, e
se tornou pior quando avistou Loma acotovelando-se para chegar o
mais perto possível do patíbulo. Mesmo assim não conseguira substituir
a angústia por um sopro de esperança, mas Loma continuaria vivo.
Loma presenciou os carcereiros deixarem o amigo
completamente livre, com as palmas das mãos tocando as colunas
simétricas ao seu lado, demonstrando estar em aparente liberdade de
movimento. Contudo, estranhou o fato de Hani continuar calado quando
tinha a chance de gritar palavras de ordem e alertar as pessoas beatas
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da vila sobre o abuso de seus dirigentes, expondo-os contra a vontade
do Silas.
Porém, Loma nem imagina como o pilão conseguira cuidar da
quietude do prisioneiro, impondo a ele um tipo de paralisia muscular.
Um artifício empregado para calar o sentenciado de modo a este só ver
o que iria acontecer a ele. Ademais, o publico nunca pediu interferência
em execuções publicas.
Loma devia apenas agradecer aos deuses por ter se aproximado
do patíbulo sem despertar o interesse da falange de soldados.
Inesperadamente ele ouviu um sinal sustenido proveniente do alto
do palanque, e a multidão empalideceu.
Silas deu início às palavras sacras que antecedia a execução:
- Irmãos! Reunimo-nos nesta ocasião para celebrar a punição
desta criatura, nascida entre nós como um ser perfeito, e que por
motivos torpes violou a lei do toque de recolher para praticar heresias
da noite contra a comunidade. Por esse ato impuro, vosso senhor o
condenou ao ritual da purificação da alma.
Silas indicou o jovem no patíbulo.
- O profano cometeu heresia da qual homem algum há de redimir.
— ele eleva o gládio reluzente em direção ao patíbulo: - Partirá para o
mundo etéreo, Hani de Citra, filho de Vazcoz. Retornará às trevas de
sua existência e sua alma tornar-se-á parte do cosmo. Seu corpo, a
carcaça que aprisiona sua alma neste mundo, será destruído para
nunca mais caminhar nesta terra.
Uma centelha de energia saltou da extremidade do cetro e partiu
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velozmente para se chocar contra a base piramidal, produzindo um som
agudo e reverberante, fazendo os vértices do pilão vibrar à medida que
liberavam radiação em cima do prisioneiro. Hani sentiu a energia
invisível arder em suas entranhas ao envolvê-lo acima do tórax,
espalhando-se pelos membros inferiores com rapidez.
- Jauy! Livrai o infiel da perdição! Apoia-te no caminho da luz.
Repara-te os erros e alimenta-o do novo cerne. Louvado seja! — Silas
pronunciou cada frase pausadamente enquanto o prisioneiro sofria os
efeitos da radiação mística.
Hani contraiu o cenho ao sentir algo vibrante trilhando por baixo
de sua pele, aquecendo seu sangue e retorcendo os nervos para
torturá-lo por dentro, até fazer sua mente desvanecer em pânico. Não
obstante, estaria correto pensar se tratar de um tipo de tortura muito
sofisticada, cujo objetivo seria causar hemorragia interna; fazendo-o
morrer pelo falecimento de órgãos vitais.
Por causa das feições estarrecidas do público, Hani pensou estar
acontecendo algo horroroso com ele, de maneira bem visível aos olhos
da multidão. Para aquelas pessoas, seu corpo transformara-se em um
ser fantasmagórico, até não passar de um borrão descolorido sumindo
aos bocados, e finalmente desaparecer por completo.
Foi como se Hani tivesse se desmanchado no ar, pensou Loma.
Nisso, sobreveio o silêncio. Silas saboreia o momento e entrega o
cetro a Mentor. O silencio foi quebrado com a debandada de mil
soldados marchando de volta para o interior da cava, e os poucos
sussurros entre a multidão pesarosa a dispersar pelas vielas.
60. E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA
Loma retirou o capuz e permaneceu onde estava matutando
sobre a razão de ele ter sido poupado daquele trágico destino. Com
isso tentou compreender se havia algum significado emblemático no
vazio de sua alma, tomada pelo medo ao saber que erigiram tal
monumento com o propósito de invadir as pessoas e as aterrorizar,
levando-o a pensar em se opor ao absolutismo do Silas.
Naquele momento preferiu recuar cabisbaixo, dando uns passos
de costas ao virar-se para trás, depois, caminhou lentamente e parou
mais adiante, olhando para os seus pés e vendo a poeira do chão
passar por cima deles quando arrastada pelo vento, mas não havia
vento algum. Ficou ali contemplando seus pés, acalentando um conflito
crescente no âmago. Loma sentia alguma coisa querendo arrancar seu
coração em fúria de dentro do peito, tomando-o de ódio e deixando o
rosto dele irreconhecível. Mas teve de abrandar seu ímpeto de modo a
não revelar-se aos donks em vigília no telhado, permitindo à sua mente
vibrar com o desejo súbito de vingança. Loma se virou para mirar o
majestoso conjunto arquitetônico deixado para trás a procura de algum
sacerdote no alto das escadas; contudo, todos já haviam partido e
soçobravam apenas doze cadeiras vazias.
Definitivamente só e precisando achar um lugar para se esconder,
Loma se convenceu a não permanecer ali nem mais um minuto, pois
poderia ser pego de surpresa pelo dom sobrenatural do Silas; então,
evadiu do local a passos largos.
No salão de entrada do templo, os sacerdotes que passaram o
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portal dirigem-se ao plenário para rezar pelo restabelecimento da
ordem face à indignação espiritual ocasionada pelo sacrilégio do
excomungado.
Enquanto isso, Silas, Mentor e frei Calstin cruzam o interior da
abadia a caminho da escada interna em busca dos aposentos.
Durante o trajeto, Mentor analisou o resultado da procissão da
verdade ao citar os jovens envolvidos como meras vítimas de uma lei
promulgada há anos e que lhes causava grande embaraço.
Frei Calstin foi mais abrangente no assunto e recordou das
propostas sugeridas para abrandar a lei, ainda na pauta de votação da
bancada parlamentar e discutida há vários anos pelos líderes da
câmara baixa, que se negavam a concordar.
Silas se comprometeu a tratar o assunto na próxima assembleia,
mas, até lá, a intervenção da milícia continuaria sendo vista de forma
legítima.
Entretanto, ao clero não restava dúvidas sobre a maneira como os
hereges se opuseram ao cativeiro, surpreendendo o chefe de milícia e
a todo mundo. Principalmente pelo fato de, naquela ocasião, os
apóstatas terem feito uso de técnicas de combate obtidas no próprio
ciclo educacional e ferido mortalmente alguns membros da patrulha.
Portanto, o episodio levaria o parlamento a rever as atitudes tomadas
pela milícia com o propósito de tornar o esquema de segurança urbano
mais eficiente.
Silas subia o último lance de escada ao lado dos dois sacerdotes
quando, ao traspassar a janela, algo vibrou em sua mente e o reteve
ali, e desta vez quase o derrubou. Algo parecido, ele nunca sentira
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antes, mas conhecia certos aspectos das revelações ditadas por seus
antecessores.
- Quem estará provocando isso em mim? — o Silas indagou-se
em tom delirante.
- O que foi meu Senhor! Não está se sentindo bem? — observou
Frei Calstin.
- Não! Está lá fora! Eu o sinto agora. — afirmou em completo
delírio ao espiar o pátio através da janela, onde via apenas uns poucos
camponeses indo em direção aos postos de trabalho.
- Eu não vejo nada ameaçador lá fora. — convenceu-se o frei.
Para Silas a ameaça era evidente e se mantinha oculta perante
seu poder psíquico, talvez até de forma ignorada, mas tinha de ter
certeza. Podia ser alguém muito próximo, de qualquer forma deveria
destruí-lo o quanto antes.
Silas fechou os olhos e concentrou a busca do violador através
dos sentidos, detectando o desejo guardado no interior de cada pessoa
tocada por sua mente extraordinária, mas não obteve sucesso. Algo
maior e desconhecido envolvia o egresso, permitindo a ele fugir como
se fosse fantasma.
E, talvez, pensou Silas, seus antecessores desconhecessem de
fato a origem do estímulo protetor que andava lhe causando tantas
náuseas.
- Eu já me sinto bem melhor. — disse ao frei, depois de uma
pausa contemplativa.
Mentor ficara preparado para alertar a abadia caso o Silas não se
recuperasse, interrogando-se em pensamento: Por qual motivo Silas
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teria sido acometido de um mal-estar súbito? E a resposta estava
impressa no semblante atônito do fidalgo, revelando a impotência do
profeta em desvendar o mistério do herege.
- Está se sentindo bem, Excelência? — disse ao Silas, procurando
ficar a par de sua situação.
Silas estava abatido, e num súbito esforço explicou ao abade
após tentar subir as escadas e se curvar, sendo preciso Mentor
ampará-lo pelo braço.
- Nada, não foi nada. Deve ser o calor. Vamos indo!
Mentor não acreditou.
- Vossa Excelência precisa descansar.
- Tenho muito trabalho. — ostentou Silas.
- De jeito nenhum! — Mentor o censurou. - Vossa Excelência vai
ficar no seu quarto o resto da tarde, e o resto da semana se for
necessário.
Frei Calstim se lembrou do compromisso inadiável do Silas, e
propôs o seguinte:
- Mentor tem razão! Se quiser, nesta semana eu mesmo faço o
translado dos seminaristas. Já administrei a sagrada seiva da
obediência outras vezes. — ele oferecia seus préstimos enquanto o
Silas ficou suspirando perto da janela, com o olhar perdido.
Pensou no assunto e terminou concordando com eles.
- Estão certos. Uma semana de cama irá me ajudar. Vocês têm a
minha bênção! — Silas deu autorização.
- Agradecemos a confiança. Eu cuidarei para não ser incomodado
até estar refeito do mal que o aflige. — Mentor prometeu enquanto o
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frei ajudava o abatido Silas a subir os degraus, depois foi embora.
Frei Calstin se encarregou de levar o Silas para o aposento e, ao
passar em frente à biblioteca, dois abades vieram socorrê-los. O frei
ficou grato pela ajuda e deixou a tarefa de levar o Silas até o quarto a
cargo de um deles, pedindo ao outro para levar instruções ao núncio
palaciano. Ele pretendia tomar algumas providencias antes de o núncio
ir buscar os jovens selecionados em suas casas, pois, desta vez, mais
famílias deveriam atender a convocação.
Loma não demorou a se afastar da praça, seguindo atrás de
outras pessoas de passagem pela viela, com destino ao posto de
triagem aonde pretendia se juntar aos trabalhadores de partida para
Terra Alta.
O sol estava a pico e a brisa da manhã ainda fresca, sendo o
inicio de um dia muito agitado.
No caminho até o posto, Loma percebeu carroções cruzando as
ruas e fazendo parada na porta de alguns lares, onde os moradores
abriam suas casas para a visita do núncio do palácio. Este oferecia
uma escolha bem simples à família: doar um dos filhos gozando de
plena saúde para servir ao clero.
A cena fez lembrar-se de sua família, pensando em caso fosse
selecionado e não estivesse em casa, o que ia acontecer a eles? No
entanto, achou difícil, pois não tinha mais idade, e parou de pensar
nisto quando chegou ao posto de triagem.
Havia donks por todo lado, uns tentando colocar disciplina nos
trabalhadores enquanto estes aguardavam a chegada dos carroções
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para levá-los até a Terra Alta, a fazenda localizada no alto da chapada
que formava a geografia do resto da ilha.
Vários carroções de tração animal surgiam no fim da avenida,
ladeados por uns poucos cavalarianos tropicando lentamente no
asfalto. Os carroceiros manuseavam os arreios e pronunciavam
palavras somente entendidas pelos animais, levando os reboques para
perto dos grupos à espera. A um puxão das rédeas os animais param
de vez e permanecem assim, mansamente, até o embarque dos
trabalhadores.
Já os cavalarianos, desmontam e colocam-se a frente dos grupos
com seus uniformes rutilantes ao sol.
Loma espreita a tudo de onde estava e aproveita o tumultuado
vaivém de pessoas para misturar-se a elas, determinado a escapar, e
se fosse possível, não terminar como seus amigos. Ele entrou numa fila
de espera e sua presença ali provocou olhares estranhos por parte de
alguns trabalhadores. O medo impregnou sua alma ao notar que sua
roupa o denunciava, pois todos ali estavam mal vestidos. Um deslize
como esse poderia lhe custar uma fuga bem-sucedida. Ainda mais se
continuasse a tremer, assim estaria subestimando os donks a descobrir
seu audacioso plano.
Precisava de um disfarce convincente, então experimentou agir
como se fosse um camponês disposto a embarcar em sua primeira
viagem. Sem saber quais procedimentos devia fazer, repetiu
exatamente cada movimento feito pelos outros. Pegou um saco
alvejado com alça de ombro e seguiu atrás da fila, passando por uma
espécie de feirinha onde eram entregues pacotes de mantimentos e
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peças de ferramentas. Botou os mantimentos dentro da sacola e
escolheu uma enxada como ferramenta de trabalho, em seguida entrou
numa das outras filas, na qual uma sentinela fazia a identificação de
quem viesse a entrar no carroção.
Loma ficou observando o procedimento de longe enquanto o
miliciano verificava todos, liberando os aptos a subirem na caçamba. O
donk parecia lançar um olhar sobre o indivíduo e, se conhecesse o
rosto do trabalhador, ele o liberava. A fila andava muito rápida e num
minuto sobravam três pessoas na sua frente, mesmo assim continuava
a ter aquela sensação nada agradável, provocada pelo seu medo
infundado.
Mal sabia ele que o capacete da milícia continha instrumentos
com recursos digitais acionados por sensor extrassensorial ou comando
de voz. Ao focar o rosto de certa pessoa, o nome desta aparecia num
canto do visor de cristal. Uma microcâmara com sensor captava a
impressão térmica dos seios da face, que é diferente de um indivíduo
para o outro, realizando a leitura usada para encontrar a identidade
correspondente no banco de dados. O sistema também dispunha de
filtros de luz, reproduzindo a imagem com maior nitidez mesmo em
ambiente escuro. Outro recurso, comumente usado em campanha,
ajuda a esquadrinhar objetos e digitaliza-los de perfil, sempre em três
dimensões.
Além destes recursos, o sistema coordena varias das operações
em situação de batalha, providenciando o alvo na seleção de tiro,
ativando o modo visão noturna e detecção com sensor de movimento.
No momento em que Loma ficou de frente para o miliciano sua