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Editora Meta Comunicação
3
Av. Raimundo Álvares da Costa, 1122
CEP 68900-915 - Macapá - AP
Telefones: (96) 99152.7365 - 98111.2230
Em várias circunstâncias, nas situ-
ações mais atípicas, me habituei a
ouvir o seguinte desabafo de angustiados
interlocutores: “a minha história pessoal
dá um livro”. Com o tempo, descobri que
se trata de uma grande verdade. Partindo
de experiências vivenciadas no dia a dia
é possível, sim, construir histórias sensa-
cionais.
A vida de cada pessoa, por mais que
possa parecer desenxabida, é extremamen -
te rica em acontecimentos extraordinários.
O problema é que como a maioria ainda
não aprimorou a percepção, acaba desper-
diçando essa inesgotável fonte de apren-
dizado.
O trivial cotidiano é esta fonte de sabe-
doria. Está disponível para quem consegue
ler nas minudências do dia a dia as mensa-
gens cifradas da vida.
É esta a fonte de inspiração de onde
obtive a matéria-prima para produzir as
crônicas publicadas neste livro. A propos-
ta essencial é estimular a reflexão interior,
partindo da observação de situações apa-
rentemente corriqueiras, e extrair delas
grandes lições de vida.
O diplomata e jornalista Francisco Ota -
viano tem uma frase que considero lapi-
dar: “Quem passou pela vida em brancas
nuvens e em plácido repouso adormeceu,
quem nunca sentiu o frio da desgraca,
quem passou pela vida e não sofreu foi es-
pectro de homem, não foi homem, só pas-
E
sou pela vida e não viveu.”
manoel Reis é jornalista,
publicitário e teólogo.
Trabalhou em alguns dos prin-
cipais veículos de Comunicação
da Amazônia como O Estado do
Maranhão, Folha do Norte, Di-
ário do Pará, O Liberal, Jornal
do Dia (AP) e Diário do Ama-
pá. Foi produtor na Rede Brasil
Amazônia de Televisão (RBA),
professor de Texto Científico
e Acadêmico na Faculdade do
IMMES (AP) e redator publici-
tário nas agências Talento Pu-
blicidade e Amazoom - Sistema
de Comunicação.
Conteúdo das orelhas
4 5
Copyright © Emanoel Reis, 2018
Não é permitida a reprodução desta obra, parcial ou integralmente, sem a
autorização expressa da editora e do autor.
Produção Editorial, Projeto Gráfico e Arte da Capa
Emanoel Reis
(A folha da árvore é o símbolo da vida)
Reis, Emanoel, 1961 -
Trivial Cotidiano (crônicas do caos sem fim)
Emanoel Reis
Macapá - Amapá: 2018
96p.; 21 x 30 cm.
1. Jornalismo 2. Teologia 3.Amazônia 4. Política
CDU 82 - 1/-9
Os direitos para publicação desta obra em língua portuguesa estão reservados para:
Editora Meta Comunicação
Av. Raimundo Álvares da Costa, 1122
CEP 68900-915 - Macapá - AP
Telefones: (96) 99167.3362 - 98111.2230
Emanoel Reis
TRIVIAL COTIDIANO
2ª Edição
Macapá - Amapá
Edição do Autor
(crônicas do caos sem fim)
2018
6 7
ÍNDICE
Coração selvagem...................................................9
O castigo do magistrado......................................11
Benditasdecepções..............................................13
Acorda,Gumercindo!..........................................15
Otrambiquedocapiau.........................................17
O Dia de Oxumaré...............................................19
Encantos do Salmo 23.........................................21
Cacos e pedregulhos............................................23
Escolhas erradas, futuro ruim............................25
Uma nova disciplina............................................27
Vontade de vencer................................................29
As janelas da alma................................................31
Cantares matinais................................................33
Sentimentos natalinos.........................................35
Intolerânciaàsdiferenças....................................37
Walter,ocarpinteiro.............................................39
Sozinho,jamais.....................................................41
Liçõesdomestre...................................................43
O amigo da onça..................................................45
Angustiante nitude............................................47
AsrevistasdoJuvenal...........................................49
OdebochedoCasseta..........................................51
Educandovencedores..........................................53
Duascaixinhas e umciscante..............................55
Medo.Amigoouinimigo?...................................57
Vamosganhar?!....................................................59
SerraPeladasemCurió........................................61
O réveillon de nossas vidas.................................63
O grande mistério................................................65
O princípio da fé..................................................67
Deus, a base de tudo.............................................69
O que virá depois.................................................71
Overãodaandorinha...........................................73
Pedaços de felicidade...........................................75
O carro de funerária........................................... 77
Sua bênção, Nazica!.............................................79
Aceitaumcafezinho?...........................................81
Avingançadamulhertraída................................83
As duas moedas....................................................85
Odesabafodoescriba...........................................87
As irmãs siamesas................................................89
Nemgregosougoianos........................................91
8 9
APRESENTAÇÃO
O
cotidiano é inesgotável fonte de sabedoria.
Em especial, quando a percepção está pre-
parada para absorver as situações mais cor-
riqueiras, que parecem intrinsecamente triviais, como
uma pedra no caminho ou, seguindo nessa mesma
linha de raciocínio, permite extrair conhecimento de
cacos e pedregulhos encontrados em calçadas ou numa
simples estrada de chão. O cotidiano ensina a tirar dos
acontecimentos mais comezinhos lições enriquecedo -
ras, essenciais para o desenvolvimento mental e espi-
ritual.
Contudo, existe algo mais trivial do que uma folha
de árvore? Na maioria das cidades do mundo, inclusi -
ve na mais distante e isolada, ela está presente na vida
cotidiana das populações. É parte integrante do cená -
rio, componente indispensável dos complexos urbanos
e imprescindível na preservação do ambiente rural. A
folha é o símbolo da vida, e (basta observar) cada uma
reage diferente às lufadas do vento. “Somente a árvore
seca ca imóvel entre borboletas e pássaros”, a rmava
Cecília Meireles.
É exatamente do trivial cotidiano, da mesmice apa -
rente, das pedras, cacos e folhas de que trata este livro
de crônicas do caos sem m no qual a humanidade
está há muito submersa. São resultados de observações
continuadas e experiências pessoais vivenciadas em di -
ferentes épocas e lugares, absorvidas na convivência
com as pessoas e suas idiossincrasias.
Das 53 crônicas publicadas pelo autor deste livro
no semanário amapaense FOLHA DO ESTADO, entre
2010 e 2014, 42 foram selecionadas seguindo o princí -
pio da gênese existencial. Ou seja, a proposta basilar é
provocar a re exão e, sem pretensões ou pedantismos,
contribuir para o crescimento individual de cada ser
que deseje transformar seu cotidiano numa inesgotável
fonte de sabedoria.
Por isso, aprecie sem moderação. Às minhas quatro mulheres:
Rosa, Socorro Bessa, Tatiana e Sofia
10
A
11
gradar a “gregos e goianos” é o maior de todos os equívocos. As
relações humanas são pautadas pelas diferenças; quem não conse-
gue conviver com elas mente para si mesmo. E certamente, esta é
a pior de todas as mentiras. Existem pessoas afinadas com seus pensamentos,
ações e palavras. Outras, discordam e até o criticam com veemência, às vezes
chegam ao extremo para demovê-lo de suas ideias e ideais como se fossem
detentoras da verdade absoluta.
Nesses momentos, quando parece que o caldo vai entornar, a melhor es-
tratégia é recuar para evitar confrontos diretos. Concorde com elas mantendo
certa autonomia para que não percebam que você está anuindo somente para
evitar maiores chateações. Melhor manter um amigo ocasional do que criar
um inimigo figadal. Claro que nem sempre isso é possível porque há quem
antipatize com você logo de cara e faz questão de demonstrar essa ojeriza. A
esses, o melhor remédio é a indiferença. Afinal, como uma onda no mar as
amizades vêm e vão independente do tempo que faz.
Existem os fingidores, aquelas pessoas habilidosas no engodo, na perfídia,
na malícia, na dissimulação, na astúcia. Conheço algumas com essas “apti-
dões”, e convivo com elas com relativa tranquilidade. Elas não sabem, dedu-
zo, que eu sei que possuem essas características. Deixo que pensem que sou
um néscio. Se eu as temo? Sim, tenho medo delas. São perigosas, sobretudo
quando atacadas no que mais prezam em si mesmas: a vaidade. Com esses, eu
literalmente piso em ovos. Procuro não ofuscá-los; tampouco, confrontá-los.
Todo cuidado com eles é pouco, pois, são perscrutadores e dissecadores de
almas. Eles conhecem profundamente os sinais formados a partir de trejeitos,
muxoxos, gestos e movimentos de braços e pernas. São estudiosos, pesqui-
sadores, perquiridores, experimentadores. Qualquer arquear de sobrolhos ou
um cruzar e descruzar de braços ou pernas pode ser interpretado como gestos
favoráveis ou desfavoráveis. Meu conselho é: mantenha-se impassível, ouça
mais, fale menos e não se apresse em concordar ou discordar.
Não existe nenhuma fórmula mágica para prolongar uma amizade. Mas,
uma longa amizade pode ser desfeita em segundos. Basta uma contrariedade,
um gesto impensado ou palavra malditosa e tudo vai por água abaixo. Expli-
co: as relações são muito frágeis. As amizades, mesmo longas e firmes, são
muito frágeis. O amor, por mais forte que seja, é muito frágil. Porque todo
mundo se magoa, se fere, se atinge. Mesmo sem querer. O próprio Jesus, o
Nem gregos
Trivial Cotidiano
ou goianos
Trivial Cotidiano
Cristo, estabeleceu parâmetros para quem quiser ser Seu amigo: “(…) se fizer -
des o que eu vos mando” (João 15:14). Esta é a condição: SE.
Há quem não compreenda o SE como medida para uma grande amizade e
meta os pés pelas mãos ao confundir liberdade com libertinagem. Ignora os
limites da boa convivência social invadindo privacidades e violando individu -
alidades. É suscetível em demasia, desconhece o “deixa pra lá” como instru-
mento de perdão, trama em silêncio pequenas vinganças, aplicaipsis litteris
a “Lei de Gerson”, torna-se maledicente. Essas são as pessoas cujos perfis
levaram Napoleão Bonaparte a pronunciar a famosa frase: “Deus me livre dos
amigos que dos meus inimigos cuido eu.”
Particularmente, não concordo com Napoleão. Prefiro “Deus proteja meus
amigos e minha família que dos meus inimigos cuido eu”. Afinal, ninguém
vive sozinho. Nem Zaratustra conseguiu tal feito. Tanto que após 30 anos ele
saiu de sua caverna para proclamar a “morte de Deus” e decretar a supremacia
do “super-homem”. Não do ridículo herói americano, mas, do homem “auto
superável”. Ou seja, aquele que venceu suas fraquezas e conquistou a máxima
liberdade ao prescindir de deuses. Infelizmente, este homem nunca existiu. E
acredito, jamais existirá.
Ao contrário de sua criatura, Friedrich Nietzsche era um grande conviva
e antes de adoecer conquistou amigos e admiradores. Para o grande filósofo,
somente dois sentimentos podem destruir uma amizade: desconfiança e inve-
ja. “A falta de confiança entre amigos é erro que não pode ser repetido, sob
pena de ser irremediável”, sentenciou, acrescentando que a falta de amigos faz
pensar em inveja ou presunção. “Por isso, há pessoas que devem seus amigos
à feliz circunstância de não ter motivo para a inveja.”
12 13
para mitigar as lembranças. Não foi fácil. Hoje, as tragédias se avolumam.
Muita gente matando gente. Implacáveis como os nazistas em Auschwitz.
Por isso, recomendo atenção redobrada. Há algum tempo, formulei a “Te-
oria do Morcego Vermelho” (uma singela homenagem ao atrapalhado herói
da HQ do Peninha, de Walt Disney). Vou explicar. A teoria é baseada no
sistema de proteção natural desses mamíferos. Para evitar colisões durante o
voo noturno, eles emitem sinais que identificam os obstáculos (árvores, torres,
paredes…).
Inspirado nesse princípio, construí a tese de que todo ser humano é dotado
de um “sistema natural de segurança” idêntico. Um radar. Se você consegue
desenvolvê-lo, observando os sinais de alerta lançados por ele, pode amenizar
alguns problemas decorrentes das circunstância do cotidiano, também chama -
dos contratempos.
Porém, a maioria de nós tende a ignorar esses “bipes”. Embora tornem-
-se percebíveis, com sinais claros da ocorrência futura, a tendência é consi-
derarmos a improbabilidade do acontecimento e insistirmos na ação. A isso
chamamos imprudência, que consiste em proceder sem a necessária cautela,
deixando de empregar as precauções indicadas pela experiência como capazes
de prevenir possíveis resultados lesivos.
Acontece que antes da ação imprudente materializar-se, aquele “sistema
natural de segurança”, ou bom-senso para muitos, sinaliza alertando sobre
o perigo crescente. Essas sensações (também nominadas adrenalina) aumen-
tam quando ocorrem situações de elevado risco à vida. Os “bipes” disparam.
Alguns, cuja clarividência é altamente desenvolvida, percebem de imediato
a anormalidade da situação. Esses, têm menos dificuldade em lidar com o
inesperado. A maioria, contudo, desconhece a existência desse “sistema” e
não consegue se antecipar aos fatos.
Resumindo, para minimizar os pequenos e grandes deslizes cotidianos (e
não se surpreendam, são cometidos até pelos mais sapientes), recomendável
são doses frequentes de cautela e canja de galinha. Como diz este velho pro-
Trivial Cotidiano
V
vérbio português, não fazem mal a ninguém.
ida e morte são irmãs siamesas. Inseparáveis e atemporais. O que
é a vida, senão a confirmação da morte. E o que é a morte, senão
a certeza de que houve uma vida. Por que a morte infunde tanto
medo? Todas as vezes em que fiz esta pergunta, escutei respostas diferentes.
Quando disseram que sim, os medos mais comuns eram: sofrer uma dor in-
controlável, ser humilhado, ficar dependente, separar-se de pessoas queridas
ou sentir-se arrependido por ter vivido inutilmente. Mas o maior medo era o
de sentir o próprio medo.
Acompanhando o noticiário nas emissoras de rádio e TV, tenho testemu-
nhado a banalização da morte. Será que a humanidade está em guerra fratri-
cida? Dizem que nos últimos anos a violência virou epidemia. Não sei. Penso
que há controvérsias. Na verdade, o homem sempre foi o lobo do homem
(homo homini lupus). Vi muito isso nos meus anos dedicados à reportagem
policial, primeiro na gloriosa FOLHA DO NORTE, reeditada pelo então Sis-
tema Rômulo Maiorana de Comunicação entre 1990 e 1992. Depois, em O
LIBERAL, de 1994 a 1998. Confesso a vocês que reportei casos horripilantes,
assassinatos “cometidos com requintes de crueldade” e por pessoas “inofensi -
vas e cordatas”, acima de qualquer suspeita. E isso diariamente, numa cidade
pautada pela violência urbana em espiral crescente.
Lembro-me de um avô, um senhor que conheci desde os remotos tempos
de Marambaia, funcionário do extinto DNER, cuja sede localizava-se no En-
troncamento, em Belém (PA). Sempre solícito, cordial, afável. De repente,
durante um ataque de fúria, se armou com um formão e aplicou dezenas de
golpes no neto, uma criança de cinco anos. Isso aconteceu em novembro de
1991. Fui vizinho daquela família. Ele era pai de uma amiga do bairro, a Edna,
mãe do menino assassinado. Mesmo de folga, fui ao local do crime. Duas ce-
nas guardo na memória até hoje: a mãe, debruçada numa cadeira, rodeada por
pessoas amigas, e no mais profundo desespero; o avô, sentado no sofá, com
as mãos ensanguentadas, cruzadas entre os joelhos, ombros arqueados, lívido,
trêmulo, olhar vítreo, balbuciante. Um ser humano esfacelado.
Na pequena casa em alvenaria, havia sangue da sala à cozinha. Ao lado da
cama, no único quarto do imóvel, o corpo da criança jazia em pedaços. Aquele
cenário suplantou em horror o que eu viveria em janeiro de 2002, durante o
naufrágio do barco “Cidade de Óbitos I”, em que morreram sete pessoas num
amanhecer chuvoso no rio Jari. Da mesma forma, precisei de um bom tempo
As irmãs
Trivial Cotidiano
siamesas
14
Trivial Cotidiano
E
15
stendido sobre o sofá alaska chenille marrom, Gumercindo acabara
de ouvir antiga música do compositor cearense Belchior executa-
da no Micro System sobreposto no hack cor de tabaco, portas em
preto e puxadores pratas, reluzentes. Ainda sob o efeito dos últimos acordes,
cantarolou em silêncio trecho de uma das músicas: “O que é que pode fazer
o homem comum neste presente instante senão sangrar?/Tentar inaugurar/a
vida comovida,/inteiramente livre e triunfante?” Naquele momento, sentiu
saudades de Izaura. Fechou os olhos, reclinou a cabeça sobre a almofada e
suspirou: “Ah, Izaura!!”
A ausência da mulher amada, com quem divide “(...) dia e noite, sol e
cama, cobertor, quarto e café”, tornara-se um tormento interior de proporções
inimagináveis, principalmente nos fins de semana, quando mais sente falta da
companheira, às voltas cuidando da mãe doente numa cidadezinha no interior
do estado. “Minha sogra está mal”, resumiu, pesaroso, revolvendo-se sobre o
sofá em busca dos controles remotos do som e da TV, perdidos entre páginas
de jornais, capas de CDs e revistas esparramadas sobre a lajota.
Desde a adolescência, Gumercindo inspira-se nas músicas de Belchior.
Canções com letras enigmáticas, entremeadas com frases filosóficas e men-
sagens esotéricas. Da safra de “Alucinação”, de 1976, “Ter ou não ter” é uma
de suas preferidas: “Noite é vida e vida é jogo e jogo é sorte e a sorte é vária;/
coisa muito complicada: o amigo tem ou não tem./Quem não tem sucesso ou
grana tem que ter sorte bastante,/para escapar salvo e são das balas de quem
lhe quer bem.”
A sala de visitas de Gumercindo e Izaura é do tipo modernosa, mas com
leve toque retrô nas mesinhas cheias de fotografias, bibelôs, dois grandes
vasos dispersos nos cantos, um imenso quadro pintado pelo artista plástico
Wagner Ribeiro representando os antigos buritizais da Macapaba dos anos
1950, meados do Século XX. “Eu nem tinha nascido”, pensou Gumercindo,
enquanto selecionava uma faixa de outro CD do excêntrico Belchior: “Cora-
ção Selvagem”.
Com as mãos cruzadas sob a nuca, grudou os olhos no forro lustroso de
macacaúba e ficou esperando os primeiros acordes: “Meu bem, guarde uma
frase pra mim dentro da sua canção/Esconda um beijo pra mim sob as dobras
do blusão/Eu quero um gole de cerveja no seu copo no seu colo e nesse bar/
Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja/Não quero o que a cabeça
Coração
Trivial Cotidiano
selvagem
pensa eu quero o que a alma deseja/Arco-íris, anjo rebelde, eu quero o corpo
tenho pressa de viver.”
Foi nos anos 1970 que Gumercindo ouviu “Coração Selvagem” pela pri-
meira vez. Ao passar em frente a uma loja de discos, na rua João Alfredo, anti -
go centro comercial de Belém, repentinamente parou ao ouvir a voz roufenha
do sobralense. As palavras e frases grudaram-lhe na mente, e não demorou
para se flagrar repetindo “(...) Beijo.. Gole de cerveja... Bar... Pressa de viver”.
É assim ainda hoje, mais de 35 anos após aquele encontro casual com a obra
de Belchior. Claro, hoje longe da empolgação juvenil, contudo, com a mesma
emoção.
Sem Izaura, Gumercindo é um barco perdido num mar de tristeza. “Sem
você comigo/a vida é castigo/tudo é solidão”, pensou, recitando em voz baixa
e com os olhos lacrimejantes, a estrofe inicial da canção de Alceu Valença:
“A solidão é fera, a solidão devora./É amiga das horas prima irmã do tempo,/E
faz nossos relógios caminharem lentos,/Causando um descompasso no meu
coração”. Novamente ressurgiu, vagando pelos neurônios: “(...) Beijo.. Gole
de cerveja... Bar... Pressa de viver.”
Não, não... Nem pensar!! A vida não pode ser feita de ilusão: — do con-
trário, “pode[-se] até ficar maluco/ou morrer na solidão”. Isso é comigo, sim.
E eu cumprimento o acaso com toda a ênfase patética. Faço questão de acenar
para a vida com dois, três dedos, ou com a mão inteira. Depende do momento.
É isso. Eis o que eu quero dizer: — quando alguém me pergunta — “Você é
feliz?” — penso em Izaura e respondo: “Completamente!”
Com essa profusão de pensamentos turvando-lhe o coração, Gumercindo
sentou-se no sofá alaska chenille marrom, flexionou braços e pernas, exer-
citou as mãos dormentes e ficou de pé sobre páginas de jornais, capas de
CDs e revistas esparramadas. Ao olhar pela janela entreaberta, notou a tarde
crepuscular. O dia aproximava-se, inexorável, da boca da noite. Dessa vez,
aflorou na lembrança somente o “gole de cerveja” e outra canção povoou-
-lhe o cérebro nervoso: “Naquela sombra vou armar a minha rede/E olhar os
solitários viajantes/Beber, cantar e matar a minha sede/Lá longe, onde tudo é
verdejante.”
E saiu chispando rumo ao Bar Baré.
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Trivial Cotidiano
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Trivial Cotidiano
e bela, com incontáveis bens e uma legião de amigos, que de repente perde tudo.
No meu humilde entendimento, Jó é um exemplo universal de superação.
Mesmo na pobreza extrema, e pranteando a morte dos filhos e filhas, manteve-
-se fiel. “Nu saí do ventre de minha mãe, e nu tornarei para lá. YAHVEH deu, e
YAHVEH tirou. Bendito seja o nome de YAHVEH.”
O que sucedeu a Jó confirma uma certeza absoluta: a adversidade é inerente
à vida. Ela nos empurra para um turbilhão de sentimentos controversos porque
nunca estamos preparados para o sofrimento. Tendemos a acreditar numa supos -
ta imunidade à dor. Ou seja, que “o inferno são os outros”. E se não fossem os
outros, a vida seria mais fácil. Não é nada disso. Se não fossem os outros, não po -
deríamos compartilhar nossas vitórias e nos faltaria um ombro amigo para buscar
apoio e conselhos. Sem os outros, não teríamos nenhum motivo para trabalhar.
Para que fazer algo de excepcional se não serve para nada?
Grandes ou pequenos, os problemas estarão sempre presentes em nossas exis -
tências. Independentemente de quão animado, inteligente ou contente estejamos
no momento todos seremos confrontados com desafios e dificuldades. É como
se fossemos postos à prova, para vermos de que fibra somos feitos, como é que
conseguimos enfrentar algumas situações catastróficas e angustiantes.
Claro, “(…) ninguém quer a morte/só saúde e sorte”. Porém, as boas ou más
notícias independem de nossas vontades. Assim sendo, diante das tormentas da
vida os pequenos homens desmoronam feito a casa construída sobre a areia: e
“(…) desceu a chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos e bateram com ím -
peto contra aquela casa, e ela caiu; e foi grande a sua ruína”. Por isso, penso que
os grandes problemas são reservados aos homens extraordinários. E você, caro
Humberto Moreira, está entre estes.
S
ou um madrugador contumaz desde a pré-adolescência. Naquela épo-
ca, acordava cedo para atualizar os estudos. Mais tarde, no seminário,
para orar, fazer o desjejum e seguir para o curso de Teologia. Depois,
por necessidade madrugava para percorrer a pé a avenida Almirante Barroso, da
Marambaia à Travessa Castelo Branco (São Braz), onde trafegava os ônibus da
“Viação Rio Guamá”, única empresa de transporte urbano na Belém dos anos
1980 que fazia linha para o campus da Universidade Federal do Pará. Tempos
difíceis aqueles.
Continuo madrugando, por hábito e dever de ofício. Cedo passo a vista nos
jornais, acompanho a programação das emissoras de rádio e TV e vasculho as
redes sociais. Verdadeira maratona pela informação cotidiana. Busca incessante
pela notícia. E foi numa dessas manhãs, ao acessar o Facebook, que me depa-
rei com o desabafo do jornalista Humberto Moreira. Em questão de semanas,
sucedeu-lhe uma espantosa sequência de infortúnios vivenciada por ele e seus
familiares. Problemas graves de doenças e acidente gerando incertezas e temores.
Como são misteriosos os desígnios de Deus! Em nossas vidas continuamen-
te nos defrontamos com desafios, problemas, dificuldades, lutas, obstáculos que
parecem grandes demais para serem vencidos. Quando nos deparamos com cir-
cunstâncias desse tipo, a forma como reagimos vai fazer toda a diferença entre a
vitória e o fracasso. Uns reagem com medo, recuam, não conseguem seguir em
frente, ficam paralisados, não vislumbram saída e se entregam. Outros, olhando
não para o tamanho do obstáculo, mas para o Deus Altíssimo, seguem em frente
de forma confiante, e alcançam vitória em meio às adversidades.
Meu caro Humberto Moreira, também passei por grandes tribulações em mi-
nha vida. A morte de meu pai, quando eu tinha apenas 15 anos de idade, foi a
maior de todas. “Num dia de tristeza me faltou o velho/(…) então fui crescendo,
me criando sozinho./Aprendendo na rua, na escola e no lar./E falta lhe confesso
que ainda hoje faz”. O significado da palavra adversidade é contrariedade, infor-
túnio, infelicidade, tormento, amargura. Neste sentido, todos, de alguma forma,
passam ou já passaram por momentos de vicissitudes.
É verdade que às vezes dá vontade de desistir. Afinal, somos humanos dema-
siado humanos. Mas o espelho da maravilhosa canção dos sambistas João Noguei -
ra e Paulo César Pinheiro, que por muito tempo me levou às lágrimas, também
faz refletir a história de um personagem bíblico de transcendental significância.
Trata-se de Jó, um homem muito piedoso e bem-sucedido, com família saudável
O desabafo
do escriba
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Trivial Cotidiano
19
Trivial Cotidiano
O
dom da caridade está disponível, mas, poucos conseguem alcançá-
-lo. Falta à maioria desapego, o mesmo mal identificado por Jesus
no jovem rico, cuja dúvida atroz o perseguia desde a meninice: Que
farei para herdar a vida eterna? Livre-se da avareza, respondeu o Rabi de Na-
zaré. Apesar do estrito cumprimento da lei mosaica, da religiosidade exacer-
bada, do caráter irretocável, o jovem afeiçoara-se aos bens materiais e sentia
neles prazer indescritível. Acostumara-se às subserviências e obsequiosidades
advindas da condição de homem rico.
É muito bom quando podemos ajudar alguém. Ou, mesmo sem condições,
ainda assim ajudar. É o pouco, ou nada, fazendo milagre. Sim, o nada também
pode ser convertido em tudo se existe pré-disposição à caridade. É o caso da
viúva pobre que, somente com duas moedas – era tudo o que tinha -, promo-
veu profunda transformação na própria vida ao doá-las às obras sociais da
sinagoga. Aquele era o único dinheiro disponível, o recurso derradeiro para
comprar pão, alguma comida barata, remédio para curar uma moléstia. No
entanto, ela não titubeou em desfazer-se delas para algo infinitamente maior,
mais abrangente, porque atenderia outras pessoas iguais, ou mesmo em pior
situação.
Posso até imaginar tudo o que aconteceu naquele dia em que Jesus, jun-
tamente com os discípulos, encontrava-se sentado no templo. Chego quase a
ouvir o tilintar de cada moeda que era colocada no gazofilácio por homens
ricos, homens que se orgulhavam de poder colocar “tantas moedas”! A multi -
dão entrava e saía mas os olhos do Mestre voltaram-se para uma pobre viúva
que se encontrava junto a um destes treze gazofilácios em forma de trombeta
que pendiam das paredes.
Observando-a atentamente, Jesus percebeu que ela havia colocado, no re-
ceptáculo, apenas duas moedas que representavam tudo que ela tinha. Ele viu
naquela pobre mulher o que os outros, ao redor, jamais poderiam ver: o amor
em doar e a confiança que Deus supriria todas a suas necessidades. Enquanto
os outros davam do que sobrava, ela deu tudo que possuía.
Atualmente, esse sentimento anda escasso. Também, motivos sobram para
comportamento tão avaro. Os próprios miseráveis estão mais desonestos. Fin -
gem indigência para arrancar dinheiro dos incautos. Eu mesmo já fui vítima
dos trambiqueiros travestidos de mendigos que bateram à minha porta fingin-
do abandono ou doença incurável para arrancar-me as “duas moedinhas”. E
As duas
moedas
são golpistas de todas as idades, naturalidades e nacionalidades. As diferenças
param nesse ponto. Todos usam a mesma estratégia: comover pela exposição
da dor. Mesmo simulada. Chegam solícitos e cheios de mesuras. Às vezes, são
tão convincentes que nos levam à relutância.
Nessas ocasiões, o esmoler em mim aflora vigoroso, certamente resultado
de minha formação judaico-cristã, herança das incursões coloniais dos jesuí-
tas nos amálgamas amazônicos. Temo que aquele interlocutor mal-ajambrado,
petrificado à minha frente, possa ser a encarnação do próprio Cristo que, sob
disfarce de gente, esteja naquele local para medir o nível de minha caridade.
Quanta sandice! Imagina se Cristo, que trabalha há dois mil anos sem tirar
férias, perderia alguns milésimos medindo o tamanho da minha fé. Ele sabe:
Homem de pouCA FÉ! Troveje repetidamente da nuvem mais alva e alta sem -
pre quando ouve minhas respostas aos esmoleiros.
Ele conhece as profundezas de minha alma. Invariavelmente, estou mais
propenso à caridade. Num rompante franciscano, já cheguei a repassar R$
20,00 para uma pedinte useira e vezeira das grades do portão de minha casa.
Fui censurado por familiares, amigos e até “inimigos”. Está endinheirado!
Comentaram, em tom de pilhéria. Um otário! Fustigou certo malquerente. A
verdade é que a mulher pegou a nota e chispou sem sequer murmurar um
muito obrigado! Ou um Deus lhe pague! Nada! Desapareceu na esquina do
Hemoap, mergulhando nas profundezas do cruzamento da rua Jovino Dinoá
com a avenida Ernestino Borges.
Estes comentários foram sobremodo desagradáveis. Não estava endinhei-
rado (como não estou), tampouco fui um néscio. Algo invisível conduziu
minha mão ao bolso onde encontrava-se a única nota que eu tinha naquele
momento. E eu pensei que estava doando R$ 2,00. Quando todos perceberam
o “engano”, ocorreu um estupor generalizante. Despertei com os olhos arre-
galados da mulher sobre as vinte pratas. No mesmo instante, a voz rouquenha
do maledicente retumbou nos meus ouvidos: Um otário! E fui invadido por
um maremoto de dúvidas. Mas, logo percebi o efeito das “duas moedinhas”
e lembrei-me do professor Ezequiel José de Freitas dedo em riste atrás do
púlpito, um grande sorriso sob olhos fulgurantes, a sentenciar peremptório: A
dúvida é o princípio da fé! “Porque todos aqueles deitaram para as ofertas de
Deus do que lhes sobeja; mas esta, da sua pobreza, deitou todo o sustento que
tinha”. Realmente, Deus escreve certo por linhas tortas.
20 21
F
oi uma tarde de fortes emoções. Mostrou para o mundo a vastidão de sua
cultura jurídica. “Sou um astro!!!”, festejou, ufanado de si. Finalmente (oh,
glória!!), garantira seu espaço no panteão da História. Por isso, ao acordar
naquela ensolarada manhã, no majestoso quarto de sua mansão de magistrado, con -
versou com o próprio Deus, de igual para igual: “Graças te dou porque não sou como
os demais homens: roubadores, injustos, adúlteros; tampouco sou como este publica -
no (e pensou em Joaquim Barbosa). Jejuo duas vezes na semana, e dou o dízimo de
tudo quanto ganho.”
Após reconfortante banho, vestiu o roupão cotelê marfim, espargiu a rala cabelei -
ra ariana, untou os sovacos, perfumou-se e desceu as escadarias, cantarolando uma
ária. “Que dia maravilhoso!”, pensou ao aproximar-se da enorme mesa de carvalho,
luxuosamente posta para o lauto desjejum. Às vésperas de completar 70 anos, sentia -
-se portentoso César em sua magnificência romana. Com requinte, derramou o suco
de laranja no copo de cristal e olhou em volta, admirando as obras de arte simetrica -
mente expostas, as esculturas, os móveis italianos, o tapete persa, os vasos chineses
da Dinastia Shang.
Com seu terno escuro e luvas brancas, o mordomo aproximou-se discreto trans -
portando uma cesta em vime recoberta com pedras preciosas contendo revistas e
jornais.
— Suas revistas e jornais do dia, excelência — disse o serviçal. — Todos falam
sobre o senhor.
Ele sorriu imperceptível, balançando o copo com suco de um lado a outro, fi -
xando o olhar nas capas dos periódicos sem se deter nas principais manchetes. “Cer -
tamente, enaltecem meu extraordinário saber jurídico!”, deduziu, exagerando nos
trejeitos caricaturais.
Aleatoriamente, escolheu um dos periódicos para folhear. Uma enorme sensação
de dever cumprido inundou-lhe a alma. “Ora, o povo – essa ralé – queria a condena -
ção daquelas autoridades! Mas, sinceramente aqueles sujeitos não merecem mofar na
cadeia. São homens dignos que, por excesso de zelo, cometeram pequenos deslizes.
Fiz bem em propiciar-lhes os embargos infringentes!”, raciocinou enquanto desdo -
brava o exemplar de O Globo. Mas, logo contraiu a mandíbula e arqueou o sobrolho
ao ler a manchete em letras garrafais na primeira página do jornal: “A justiça tarda:
STF mantém impunidade de mensaleiros até 2014”.
— Não é possível!! — pensou o ministro — folheando a publicação aos safanões.
Em seguida, sob o olhar impassível do mordomo em pé, às proximidades, sentiu como
O castigo do
Trivial Cotidiano
magistrado
Trivial Cotidiano
se um tornado o devastasse por dentro ao ler a manchete do Correio Braziliense: “Aos ven
cedores, a pizza”. Percebeu repentina vertigem a turvar-lhe os pensamentos. “Meu Deus,
estão conspurcando meu magnífico trabalho!”, externou queixoso, com o braço direito cur
vado para cima e a mão fechada em punho.
— Ah! – interrompeu o mordomo. – O senhor esta se sentindo bem?! Precisa de algo,
senhor?!
Alheio às perguntas e com os olhos esbugalhados, amassou os jornais, transformando
as folhas em bolas de papel e as atirando para longe aos pontapés. Depois, voltou a sacolejar
os braços em atos contínuos próprios de quem perdera o controle emocional. Os tremores
aumentaram, calafrios, sensação de desespero, dificuldade em respirar, palpitações, náuse
as, tontura, dor aguda no peito. Cambaleante, dobrou os joelhos e tombou nos braços do
mordomo.
Naquele mesmo instante, a alma do magistrado chega na porta do céu e é recebida pelo
anjo recepcionista.
— Quem é o senhor? — perguntou o ser celestial — alisando uma pequena ficha de
inscrição.
“Ora, quanta petulância!! Este lambaio divino não sabe quem eu sou?!”, resmungou o
ministro e vociferou, bem zangado:
— Você me ofende ao desconhecer minha importância — disse a excelência. — Mi -
nha vasta sabedoria resplandece. As pessoas me ouvem em obsequioso silêncio. No Brasil,
meu poder incomensurável mudou o destino de milhões. Provei que Justiça, de fato, não é
feita para pobres ou prostitutas. Portanto, me trate com respeito e me deixe entrar!
Nisso, uma voz cavernosa ecoa de um tenebroso portal, de onde surge um ser alado
envolto em enxofre.
— Você é o Celso de Mello?
— Sim, sou eu! Por que?! — perguntou o magistrado — arrumando os óculos sobre o
nariz semi adunco para melhor visualizar o interlocutor.
— Eu sou Lúcifer — disse o ex-querubim. — Quero te fazer uma proposta irrecusável.
Celso de Mello aperta os olhinhos e pergunta a meio-tom:
— O que queres?
Sem salamaleques ou rapapés protocolares, o Capeta o abraça:
— Aê, Celsão!! Eu vi o que tu fez pelos caras. Pô, livrou meus camaradas do PT de
uma tremenda cana dura!! Tu é muito bom de papo, mermão! Agora, tu é meu advogado e
vai me tirar desse buraco quente onde tô há milhares de anos.
— Mas, como?! — reagiu o ex-ministro.
— É simples: tu chega junto ao Senhor e apresenta um desses teus embargos infrin
gentes a meu favor.
— Jamais farei isso!!! — retrucou Celso de Mello.
— Ah, é?! — bramiu Satanás. — Então, vou te jogar no meio dos sodomitas!!
— POR FAVOR, NÃÃÃÕO!!! ISSO NÃOOOOOOoooooooooooo!!!!
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Trivial Cotidiano
T
empos atrás, durante conversa em balcão de bar sobre os encon-
tros e desencontros do casamento, um amigo sessentão segredou-
-me estar muito preocupado com o comportamento da esposa dele.
Como havia mudado?! Desabafou, desolado e inquieto. Antes questionadora,
desconfiada, rixosa; agora, cordata, simplória, pacífica. Que transformação!!
Uma outra mulher. Ele me pareceu realmente assombrado com a abrupta me-
tamorfose da cônjuge.
Observei-o de soslaio e percebi no olhar do meu interlocutor a sombra
devastadora da dúvida. Um turbilhão de sentimentos a convulsionar-lhe a
alma. “O que dizer para este sujeito?”, questionei-me enquanto vasculhava
na memória algumas palavras adequadas ao momento inquietante, para ele,
que confidenciara-me um segredo de alcova, e para mim, que encontrava-me
naquele local apenas para degustar minha bebida, ouvir uma boa música, jogar
conversa fora e torcer pelo Mengão.
O encontro começou descontraído, em meio a chistes e anedotas, mas, ter-
minou descambando para o aspecto surrealista do casamento. Esse ângulo
nada engraçado das relações homem-mulher: o do desgaste, do desinteresse e
do distanciamento. É quando o fim deixa de ser ectoplasmático e aos poucos
materializa-se nas contínuas discordâncias. Enfim, muitas são as causas dessa
avalanche de más sensações. Porém, só um é o resultado: o rompimento inva -
riavelmente traumático. Às vezes, imperceptível porque bem dissimulado. No
entanto, sempre traumático.
Naquele momento, embora esforçando-se para disfarçar, o amigo de bal-
cão vivenciava um grande drama conjugal, e certamente sem que tenha per-
cebido, inspirado em outro grande drama, este ficcional vivido pelo mouro
Otelo, personagem universal de conhecida obra shakespeariana. “O que dizer
para este sujeito?”, pensei novamente em busca de uma resposta razoavelmen -
te interessante. Queria ajudá-lo sem maior envolvimento. “Talvez não tenha
ocorrido nenhuma mudança. Quem sabe ela sempre foi essa mulher maravi-
lhosa e só agora você a percebeu!”, comentei em tom filosófico, mais para
contemporizar e esfriar o assunto.
Contudo, o amigo estava disposto a desabafar. Confidenciou-me que as
mudanças na cara-metade foram percebidas após ela descobrir o caso extra-
conjugal dele com uma bela estudante do Colégio Amapaense, mantido às
custas de presentes caros e volumosas quantias semanalmente depositadas na
A vingança da
mulher traída
conta bancária da amante. “Eu me apaixonei!”, falou-me, desesperado. “Que
loucura, parceiro!!” – comentei. “E como tua mulher descobriu?”, quis saber.
“Ora, ela me viu com a pequena!”, e bateu sobre o balcão com a mão espal-
mada.
Deslize imperdoável, sem dúvida. Mas, que reação estranha!! Uma mulher
traída é um vulcão em erupção. Capaz de loucuras inenarráveis e disposta
a vinganças indescritíveis. A do amigo namorador, em vez dessas reações
convencionais, preferiu a conversão em dona de casa extremada. Em vez de
“devolver o chifre na mesma medida”, voltou-se para o lar, redobrando o zelo
pelo bem-estar do marido amado, preparando comidinhas e bebidinhas espe-
ciais, esmerando-se na cama, fazendo com ele coisas que até Deus duvida. E
ele gostando, querendo mais, esbaldando-se.
“E isso não é bom?!”, questionei. “É, sim!” – respondeu-me. “Claro que é.
Mas, não sei. Ela está mais vaidosa, voltou a frequentar a academia. Perdeu
uns quilos, melhorou a aparência. Mudou o guarda-roupa!”. Mudanças im-
pressionantes, e sobremodo reveladoras. À primeira vista, a mulher parecia
disposta a reconquistar o espaço invadido pela rival mais nova. Então, deci-
dira lutar pelo amor quase perdido utilizando as mesmas armas. Fazendo-se
sedutora, amante irresistível, desejada. Mostrando ao marido infiel que ela,
aos quarenta e tantos, ainda conseguia fazer um homem gemer sem sentir dor.
Realmente, a preocupação dele procedia. Para uma mulher antes “questio-
nadora, desconfiada, rixosa” aceitar tamanha traição sem descer do salto pa-
recia impensável. Surrar a amante ou cortar o pênis do marido traidor seriam
reações insanas, é verdade, mas plenamente compreensíveis e até aceitáveis
pela sociedade. Mas em vez de atos extremos, ela preferiu vingar-se à moda
Agatha Christie.
Revelando surpreendente talento para a gastronomia, a mulher ampliou
as opções do cardápio doméstico incluindo rabada, sopa de mocotó, carne
de peito para assado de panela, maniçoba, vatapá, torresmo, churrasco, pi-
zzas, hambúrgueres, refrigerantes e muita, mas muita cerveja. Todo um menu
exclusivo para o maridinho. E ele temendo contrariá-la, comia mesmo sem
vontade. Em 32 semanas, saltou de 72 para 124 quilos. Quatro meses depois,
pesava espantosos 142 quilos. Embora com tanta gordura nas coronárias, não
recusou convite da esposa para “umazinha” de leve após degustar suculenta
rabada. Morreu fulminado por um ataque cardíaco durante o ato sexual.
O assassinato perfeito.
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H
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á três décadas, venho tentando driblar as decepções. E não tem sido
fácil. Embora consciente da complexa natureza humana, resiste a
esperança na amizade. Desde a adolescência, nunca acreditei no
amor apenas como expressão individual de bem-querer. Para mim, o amor é
um conjunto universal de sentimentos indissolúveis, cuja existência é intrin-
secamente coletiva. Não sobrevivem isolados. Esta compreensão, no entan-
to, não nos protege dos equívocos resultantes de nossas escolhas enviesadas.
Simples: somos humanos, demasiado humanos. Compreender esta verdade
em nós, e, principalmente nos outros, é o primeiro passo para minimizar os
impactos causados pelas decepções.
Quem se decepciona em demasia, é porque espera muito das pessoas. Ou,
exige demais de quem só pode dar menos. Eu nunca esperei muito – nem
pouco. Aliás, não esperei (nem espero) nada. Ainda assim, não estou comple -
tamente imune às desilusões. Tenho preferências, externo opiniões, defendo
opões político-ideológicas, manifesto crenças religiosas (ou, a ausência de-
las). E isso agrada ou desagrada os ouvintes, gerando demonstrações de apre-
ço ou repulsa. Procuro estar preparado para ambas, sem maior envolvimento.
A primeira, provoca contentamento; a segunda, indiferença. Nunca, rancor ou
mágoa.
Recentemente, li no Facebook um texto do amigo jornalista Euclides Mo-
raes. Combinava positivismo exacerbado, próprio dos otimistas contumazes,
e pessimismo conceitual, involuntariamente pinçado da filosofia pessimista e
irracionalista de Arthur Schopenhauer, cuja origem, segundo o filósofo brasi -
leiro Olavo de Carvalho, é deduzida dos postulados de Immanuel Kant. Oti-
mismo expresso no “(...) Um bom dia para começar tudo de novo. Reavaliar
projetos abandonados”. Subentende-se, nos contextos das frases, profundo
desejo de mudança a partir de projetos inconclusos ou mesmo nascituros.
Euclides Moraes quer mudar. Anseia por mudanças significativas. Contu-
do, para promover essas transformações na própria vida precisa, antes de qual -
quer decisão pessoal, “(...) Dimensionar os estragos dos equívocos. E, prin-
cipalmente, ser mais seletivo e cuidadoso com a escolha das pessoas (…)”.
Às vezes, os equívocos provocam estragos irremediáveis. Deixam marcas
indeléveis. Disso, surgem das profundezas da alma decepções em profusão.
Nessas circunstâncias, a relação com o “irremediável e indelével” deve ser de
Benditas
enfrentamento constante para que jamais suplantem a esperança na amizade.
Trivial Cotidiano
decepções
Trivial Cotidiano
Foi decepcionando-me que percebi a loucura em “querer agradar a todos”.
É impossível. Então, fiz o inverso. Passei a agradar-me. Conhecendo-me, re-
duzi sobremodo os impactos das decepções. Alcancei esse conhecimento in-
tensificando o convívio pessoal, nas diferentes esferas sociais, com pessoas de
níveis opostos. Nunca querendo ser igual a elas. Mas, tão somente aprendendo
com suas virtudes e vícios. Compreendendo-lhes as limitações e deficiências a
partir do entendimento de minhas próprias limitações e deficiências.
Quando o Euclides Moraes descortina o desejo em “(...) Dimensionar os
estragos dos equívocos (…)” está dizendo, simplesmente, que aprendeu ines-
timável lição de vida. Em resumo: vai demorar para cometer os mesmos erros.
Talvez, até volte a cometê-los. Mas, não com a mesma intensidade. Tampou -
co, desintencional. Certamente, sucumbirá a outros equívocos. Incorrerá em
outros erros. E daí? Humano, demasiado humano. Ao final, estará mais re-
sistente às decepções porque, intensificando o convívio social, terá aprendido
que somos todos passíveis dos equívocos mais comezinhos.
Quanto a “(...) ser mais seletivo e cuidadoso com a escolha das pesso-
as (...)” é um processo inerente às relações interpessoais que exige elevado
conhecimento da natureza humana. Isso demanda tempo e qualidades indis-
pensáveis como perspicácia e paciência monástica. E outras, naturais ou ad-
quiridas por meio de estudos permanentes, e observações acuradas do cotidia -
no. Nesse aspecto, ninguém está imune. Toma-se como exemplos Caio Júlio
César e Jesus Cristo. Ambos vítimas da traição cometida por amigos íntimos.
No caso de César, o traidor foi seu filho adotivo, Marcus Junius Brutus; no de
Jesus, o apóstolo chamado Judas Iscariotes.
Quão amargas foram as decepções desses dois homens. Infelizmente, não
sobreviveram a elas “(...) para reavaliar projetos abandonados, dimensionar
os estragos dos equívocos e começar tudo de novo”. Por isso, parei de “(...)
ser mais seletivo e cuidadoso com a escolha das pessoas (...)” com as quais
devo me relacionar. Primeiro, porque o mal é inerente e, por mais que tente
me proteger, estarei sempre suscetível a ele. É o humano, demasiado humano.
Segundo, “selecionar e escolher” me parece muito “charlesdarwiniano”. Algo
como almejar a amizade perfeita. Repito: é impossível. Assim, diante das im-
previsibilidades do convívio social, recomendo atenção redobrada. Afinal,
“cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém” não é, mesmo?!
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A
cordou sobressaltado na quinta-feira, tateando sobre o criado-mudo
em busca do relógio de pulso. “Já estou atrasado!”, pensou. Na
pressa, esbarrou no copo com água às proximidades do abajur, a
vasilha rolou de encontro à parede, bateu no rodapé e se espatifou na lajota.
Cacos de vidro tomaram conta de parte do aposento. A mulher ao lado res-
mungou alguns impropérios, condenou o desastrado, virou de costas e voltou
a ressonar. “E agora?!”, apalpou em volta, sobre o pequeno tapete, para en-
contrar o par de sandálias havaianas, mas (tremenda maçada!), recordou que o
deixara no outro lado da cama.
Lembrou da lanterninha do celular. “Cadê o celular?!” Vasculhou por entre
revistas e páginas de jornais, remexeu a bolsa de trabalho escorada na sapatei -
ra – e nada! Então, encontrou o caderno de anotações e sobre ele o aparelho
todo molhado. Praguejou em silêncio. Logo, se arrependeu. Estava amanhe-
cendo. Os pássaros celebravam o novo dia. Era preciso levantar. O quarto na
penumbra e os cacos de vidro no entorno da cama poderiam provocar algum
acidente.
Por isso, lentamente virou de bruços e ficou de quatro sobre o colchão.
Primeiro, passou braço e perna direita sobre a mulher, que dormia à sono
solto. A muito custo, fazendo um tremendo esforço para não acordá-la, con-
seguiu apoiar o pé sobre algo macio esquecido no piso, provavelmente uma
peça íntima. Com a respiração presa, impulsionou o corpanzil para levantar a
perna esquerda e finalmente alcançar o banheiro. Ao soltar o peso, a calcinha
deslizou e ele desabou sobre a cara-metade.
Um uivo ecoou pelo quarto. Repentinamente sufocada sob 93 quilos, a
mulher esbravejou e aplicou três sopapos no marido desajeitado. Ele grunhiu
arremedos de desculpas, mas, não convenceu; e ao vê-la segurando um frasco
com perfume entrou correndo no banheiro, bateu a porta. Quase era atingido
na cabeça. Repetiu “foi sem querer” sete vezes. Inútil. O estrago já estava fei -
to. Pegou um velho exemplar da revista “Minha Novela”, abaixou o assento
da privada e acomodou o enorme traseiro.
Dez minutos depois, ao olhar em volta, a maior das tragédias: faltava papel
higiênico. Primeiro, com a voz melosa: “Amooorrr, traz o papel higiênico!”
Aguardou a resposta. Nada. “Amorzinho, deixa disso e traz o papel!”, repetiu.
Nem rumor. Já desesperado: “Porra, mulher! Traz o papel!” Pior. Olhou a re -
vista, examinou uma página. Não. Papel couchê. Muito liso. “Não tem jeito!”.
Acorda,
Gumercindo!
Foi para o chuveiro, moveu a torneira e esperou o jato reconfortante. Fim da
picada. A caixa d’água estava vazia. “Não é possível! É um complô contra
mim! Só pode ser!”
Abriu lentamente a porta do banheiro, as luzes do quarto acesas, edredons
amarfanhados sobre a cama, TV ligada, a jornalista Tatiana Guedes apresen-
tando o “Bom Dia Amazônia”. Nem sinal da mulher. “Porra, e agora?!”, ex-
travasou a revolta. Pé ante pé alcançou a porta do corredor. “Alguém aí pode
ligar a caixa d’água?!”, gritou a plenos pulmões. Ouviu murmúrios para além
da sala. “O que está acontecendo?!” O burburinho aumentava. Volveu a cabe -
ça para a esquerda, aprumou a orelha direita e ouviu: “Foi ele!”, disse alguém.
Uma voz conhecida. “Foi ele, sim!”, repetiu outro. Era o vizinho. “Que con-
fusão é essa?!”, indagou em voz baixa.
Completamente pelado e melado, decidiu aproximar-se na ponta dos pés
para melhor entender a algazarra. “É dele, sim!”, era a voz da esposa, eufórica.
“Meu Deus, não é possível!”, gritou ela. Atônito diante do estranho aconte-
cido, começou a se interrogar: “O que eu fiz ontem à noite?!”, revirou a me-
mória embaçada pelas cervejas ingeridas durante o jogo do Flamengo. “Será
que importunei demais o vizinho botafoguense?! Não lembro!!”, conjeturava
escorado na parede do corredor, já próximo à cozinha.
De repente, ouviu passos casa à dentro, deu meia-volta e caminhou apres-
sado para o quarto. Os murmúrios se tornavam mais audíveis. “Gente, ele
está aí dentro!”, disse a mulher. “É, vamos lá pessoal!”, completou o vizinho.
Descontrolado, botou a mão esquerda sobre as nádegas e avançou célere em
direção à maçaneta. Primeiro, segundo, terceiro movimentos. Ficou nervoso.
“O que houve?!” Mais três movimentos. O trinco não funcionava. “Virgem de
Nazaré!! Emperrou!!”
Arrastar de sandálias, rumorejo, respirações ofegantes, farfalhar de roupas,
sacolejo de braços. Sete pessoas enfileiradas. A mulher à frente. Ele, com a
bunda grudada na porta, as duas mãos sobrepostas em conchas sob o avantaja -
do abdômen, suando às bicas, encurralado no próprio corredor. Com os olhos
esbugalhados e as mãos na cintura, ela disparou: “GUMERCIIIIINDO!!”. Foi
a gota d’água. Fragilizado por tantas desventuras matinais, caiu de joelhos:
“Eu só queria um rolo de papel de higiênico!”, choramingou. Então, a plateia
entreolha-se e a patroa esclarece: “Calma, amoreco! Não é nada disso! Achei
teu jogo da mega sena ao lado da TV, fui conferir e tu acertou as seis dezenas.
ESTAMOS RIIIICOOSS!!!”. Emocionado, Gumercindo começou a rolar so-
bre as próprias fezes.
Acordou embaixo do edredom, sufocado pelos puns da mulher amada. Era
só um sonho.
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atividade, disseminando a cizânia, inoculando a peçonha na veia dos incautos, di -
fundindo a perfídia para promover inimizades. Raramente - ou nunca - manifestam
gratidão, sequer reconhecem o bem recebido. Pior: ignoram a dádiva da reciproci -
dade.
Gosto muito da cena de abertura do magnífico filme O Poderoso Chefão, de
Francis Ford Coppola. É um retrato primoroso da reciprocidade em ação. É o dia do
casamento da filha de Don Vitor Corleone. Bonasera, imigrante italiano, um agente
funerário, vem lhe pedir um favor - ele quer vingar uma agressão e tentativa de estu
pro contra sua filha, que foi espancada pelo namorado e um outro jovem. Bonasera
descreve o assalto, a prisão e o julgamento dos dois rapazes. O juiz deixa-os sair
livres naquele mesmo dia. Bonasera fica furioso, sente-se humilhado, chora, e vem
a Don Corleone pedir que a justiça seja feita. Corleone pergunta o que exatamente
ele quer. Bonasera sussurra algo em seu ouvido, que podemos deduzir que é “Mate
-os.” Corleone se recusa, e lembra que Bonasera não foi um grande amigo até aquele
momento. Bonasera admite que tinha medo de arranjar “problemas”.
O diálogo prossegue:
Corleone - Eu entendo. Você encontrou o paraíso na América; tem um bom
comércio, fez uma boa vida. A polícia protegia você e havia tribunais de justiça. E
você não precisava de um amigo como eu. Mas agora você vem a mim e diz: ‘Don
Corleone, dá-me justiça’. Mas você não pede com respeito. Você não oferece ami -
zade. Nunca me convidou para um cafezinho. Nem pensa em me chamar de “Padri
nho”. Em vez disso, você entra em minha casa, no dia do casamento de minha filha,
e me pede que mate por dinheiro.
A cena é extraordinária. Intuitivamente, entendemos porque Bonasera quer os
rapazes mortos, e porque Corleone se recusa a fazê-lo. Trememos diante da tentati
va canhestra de Bonasera em oferecer dinheiro, quando o que está faltando é ami -
zade entre ambos. Entendemos que, ao aceitar um “presente” de um chefe da máfia,
uma corrente de aço - não apenas um cordão - prenderá Bonasera àquela relação.
Mas, é assim a dádiva da reciprocidade. Deve-se pagar um favor com outro
favor porque isso proporciona satisfação, resultando em fortalecimento das ami -
zades. Como alguém pode dizer que é meu amigo, se nunca me convidou para um
cafezinho?
Trivial Cotidiano Trivial Cotidiano
Q
uisera soubesse porque algumas pessoas nunca estão plenamente satis -
feitas. Mesmo no avançar dos anos, quando a esperança mitiga e resta
somente a proximdiade do fim inexorável, a insatisfação permeia pa -
lavras e ações, revolvendo antigas lembranças. Ainda que o momento mostre-se
mais condescendente e alvissareiro, as reclamações evidenciam-se em gemidos e
imprecações silenciosas. Em olhares ausentes. Muxoxos imprevisíveis. Inquieta -
ções mentais.
Refiro-me à insatisfação crônica, ocasionada pela malquerença e desconfiança
intrínsecas aos espíritos atormentados. Àqueles, identificados por Francisco Octa -
viano como “espectros de homem”, que “passam pela vida em brancas nuvens”. No
último capítulo de Eclesiastes, livro atribuído ao rei Salomão, encontra-se uma das
mais belas admoestações especialmente reservadas aos jovens.
Cameça com uma advertência basilar: “Lembra-te do teu Criador nos dias da tua
mocidade, antes que venham os maus dias e cheguem os anos em que dirás: ‘não
tenho neles prazer’”. A juventude é extremamente efêmera. Ainda no útero, ela
começa a desvanecer, processo inalterado após o nascimento. Contudo, “(...) antes
que o pó volte para a terra como era, e o espírito volte para Deus que o deu” (“Do
pó da terra formou YAHVEH ao homem, e soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida;
e o homem tornou-se alma vivente”. Gên. 2-7), é possível conduzir-se sem grandes
sobressaltos.
Não podemos esquecer que esta vida é única, em todos os sentidos. Nunca te -
remos outra igual. Em nenhum outro tempo ou dimensão. Jamais viveremos expe -
riências idênticas, tampouco voltaremos a usufruir da companhia dos bons amigos
presentes, nem amaremos as mesmas pessoas que amamos hoje. O tudo é agora.
Ou, o agora é tudo que temos. Então, se este tesouro tem prazo de validade, por que
desperdiçá-lo em futilidades?
Nos últimos anos, tenho perdido bons amigos. E isso me faz pensar mais e mais
na finitude da vida. Na temporalidade do ser. Eram boas pessoas. Repletas de planos
e esperanças. E embora tenha convivido com elas por breve tempo, deixaram mar -
cas indeléveis. Assim é com todos, independente se o desígnio foi ou não cumprido.
A verdade é que após morrermos ninguém viverá por nós a vida que vivíamos. Nem
realizará nossos planos, também não terá as mesmas esperanças. Somos únicos e
terrivelmente solitários por isso.
Apesar desta verdade inquestionável, resistem os insatisfeitos e rancorosos,
nascidos da amargura e refogados longamente em caldo de ódio. Estão em plena
Aceita um
cafezinho?
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Trivial Cotidiano
N
ós, paraenses, temos um jeito muito especial de nos relacionarmos com
Nossa Senhora de Nazaré. A chamamos de “Nazica”. Somente nós temos
tamanha intimidade. Para muitos, um tratamento estranhável, mas, nunca
desrespeitoso. Na verdade, expressa todo o bem-querer dos filhos que chegam de to -
das as partes para homenagear a Mãe querida. Cair aos seus pés, pedir-lhe a bênção,
reclinar a cabeça sobre seu colo, reverenciá-la, ouvir-lhes os conselhos e admoesta -
ções, ter os cabelos afagados por mãos abençoadas que nunca cansam de perdoar.
Por meio desse tratamento especial, os paraenses, sejam eles católicos
ou não, reencontram o caminho da religiosidade nas diversas manifesta-
ções de fé externadas nos dias que antecedem a grande festa em homena-
gem à Santa. Passando pelos rituais de preparação do almoço do Círio e cul-
minando com a participação nas cerimônias sacras pelas principais ruas de
Belém, numa procissão que reúne, no mesmo propósito, milhares de pessoas.
A fé em “Nazica” ultrapassa o limite do compreensível. Vai além das teses me -
ramente academicistas, dos conceitos pseudo religiosos, das explicações am -
paradas em argumentos racionais. Ela está arraigada no coração dos humil-
des, na certeza dos desvalidos, no clamor dos esquecidos e desesperados. É
sentimento próprio de quem mantém estreito relacionamento com o sagrado.
Tecnicamente, o vocábulo “Nazica” teve origem na etimologia popular, também
conhecida como pseudo etimologia ou ainda paretimologia. Não consta em ne -
nhum dicionário; nem mesmo no “Dicionário Papa-Chibé”, de autoria do jornalista
Raymundo Mário Sobral. Ou seja, fora dos limites de Belém não existe como ex -
pressão de domínio nacional. Trata-se de uma corruptela tipicamente belemense.
Assim como “Nazica” representa, no entendimento do romeiro de maior ou menor
lustre intelectual, profunda intimidade com Nossa Senhora de Nazaré, a palavra Círio
alcança igual significado no vernáculo pátrio quando etimologicamente interpretada.
Círio quer dizer “vela grande de cera”, ou seja, a luz no alpendre da casa que ilumina
a todos. A luz é “Nazica” e o Círio é a procissão reunindo milhares de peregrinos em
lento cortejo de quatro horas entre a Catedral Metropolitana e a Basílica de Nazaré.
Éoápicedasmanifestaçõesqueacontecemdurantequinzedias.Nesseperíodo,vive-se
um clima de confraternização e alegria que não chega a ser superado pela tradicional
festa natalina. Por isso, o belemense também chama o Círio de Nazaré de o “Natal dos
paraenses”, a maior festa religiosa do ano. Eis o profundo significado antropológico
de “Nazica”, o congraçamento pela fé como princípio básico da confraternização
cristã. Só esse entendimento é capaz de juntar na mesma mesa profano e religioso.
Sua bênção,
Nazica!
Eu vivo esse clima intensamente desde minha infância. Testemunhei pagadores de pro
messas percorrendo de joelhos os quase cinco quilômetros entre Catedral e Basílica.
Acompanhei assombrado mulheres grávidas transportando na cabeça pequenas casas,
rochas enormes, cruzes de madeira, berços ou mesmo camas. Observei aturdido homens
emboladosunssobreoutrosnacordaaoredordaBerlindaemsuplícioquaseinsuportável.
Econfesso:“(…)nunca[emminhavida]vitantafé,nemmesmoentreopovodeIsrael.”
E mesmo no exercício profissional, minha natureza judaico-cristã se sobressaia em
meio à multidão e invariavelmente seguia embalado pelos cânticos religiosos rumo
à Berlinda. Queria vê-la a qualquer custo, mesmo submetido às cotoveladas dos
demais fiéis e aos safanões dos guardas da Santa e dos policiais militares. Saía da
redação repórter e voltava romeiro com fitinhas atadas no braço esquerdo, leques
de papelão com imagens de “Nazica”, além de outros souvenir’s que fazia ques -
tão de dividir com os demais irmãos e irmãs, também filhos e filhas de “Nazica”.
Tentei acompanhar o Círio de Nazaré com um olhar estritamente profis-
sional, sob a ótica do repórter setorizado, com pauta pré-elaborada, horá-
rio a cumprir e preocupação com o “fechamento” (encerramento) da edi-
ção do jornal que, em dias especiais como esses, é antecipada em agumas
horas. Um olhar forjado na práxis jornalística sempre em busca do inusitado.
Lamentoreconhecer:nãoconsegui.Comomanter-meisentodiantede“Nazica”?Ante
aquelecontagianteespetáculodefé?Impossível.Aovê-laimponente,naBerlinda,apro
ximando-sedaPraçaSantuário,algumasvezes,impelidopelaemoção,tambémtombei
de joelhos no asfalto quente, baixei a cabeça, estendi a mão direita para o alto e clamei:
- Sua bênção, Nazica!
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U
ma das experiências mais estranhas vividas por mim aconteceu na noite
de 23 para 24 de agosto de 1985. Dois dias antes, fora convidado para
participar das celebrações a Oxumaré, o orixá da riqueza cultuado pe -
los umbandistas. O convite fora formulado pela esposa do meu vizinho da esquer -
da, uma senhora bem-apanhada, de bochechas rosadas e sobremodo prestativa.
Cativava à primeira vista pelo sorriso largo e franco no rosto afilado e tratado
com zelo extremo. Seria uma cerimônia magnífica, garantiu-me ela, com cânticos,
danças, comidas e bebidas à vontade.
Na época, eu morava na Cidade Nova 6 numa casa bem localizada, com ponto
comercial, sala, dois quartos, cozinha, banheiro interno e uma boa área externa
recém-adquirida pela bagatela de 800 mil cruzeiros. Foi a minha primeira casa
própria. Meu vizinho da esquerda, um aposentado boa-praça, passava o tempo
ouvindo rádio, lendo jornal e, principalmente, proseando. Torcedor fanático do
Paysandu, gostava de falar sobre o futebol paraense do passado, nominava os
jogadores que haviam vestido a camisa alviceleste, discorria sobre os jogos dispu -
tados e relacionava as conquistas do clube preferido.
Naturalmente, fizemos uma boa amizade. Meu novo amigo era benquisto na
redondeza, mas a mulher dele o suplantava em benquerença pelos demais mora -
dores porque, além da profissão de enfermeira, era reconhecida filha-de-santo do
Centro Espírita de Umbanda Pai Bianor. E foi durante um dos muitos bate-papos
crepusculares, numa ensolarada semana de agosto, que recebi o convite formulado
pela vizinha bem-apessoada.
Não hesitei.
Na noite de sexta-feira, 23 de agosto de 1985, lá estava eu e mais seis pessoas
seguindo o casal em direção ao “Terreiro do Pai Bianor” devidamente orientados
pela sacerdotisa sobre rituais e cuidados que deveríamos ter enquanto estivés -
semos em solo sagrado. Passava das 23 horas quando avistei vários automóveis
estacionados no entorno do imóvel em alvenaria, e entre eles uma multidão ca -
minhava em êxtase. Homens, mulheres e crianças cantavam e saracoteavam com
desenvoltura. Outros, mais exaltados, rodopiavam sem parar.
Recepcionados pelo próprio babalorixá, que ministrou uma sequência de “pas -
ses para afastar os maus fluídos”, seguimos perfilados para o interior da nave em
penumbra onde outros filhos e filhas-de-santo indicavam os bancos da esquerda
aos homens e os da direita às mulheres. Como pretendia passar despercebido,
escolhi um assento nas últimas fileiras, porém, bem posicionado para melhor ob -
O Dia de
Oxumaré
servar os rituais. Uma das filhas-de-santo nos avisou que naquela noite sete de nós
seriam escolhidos para compor o staff do homenageado.
Realmente, a magnificência da cerimônia impressionava. O cenário no todo
era intimidante. Tornou-se mais intenso antes da meia-noite e depois, com a pre -
sença do principal personagem, o orixá Oxumaré todo ornamentado em vermelho,
posicionado na frente do gongá, sacolejando capa e tridente. Mais assombroso
ainda foi quando ele veio na minha direção com o dedo em riste e bradou: “Você!”
Rapidamente se virou e apontou mais seis sujeitos, dentre eles o meu vizinho, o
aposentado boa-praça.
Separados dos demais, seguimos em fila indiana pela espaço entre os bancos
para uma porta lateral toda iluminada com velas vermelhas. Ao ultrapassarmos o
batente, nos deparamos com um santuário construído em alvenaria habitado por
uma enorme imagem de Oxumaré, cercada por velas e muito dinheiro. A nossa
guia, uma bela filha-de-santo, nos repassou as orientações finais enquanto entre -
gava a cada um uma vela vermelha. Deveríamos ficar perfilados na entrada da
capelinha, assim que Oxumaré passasse por nós imediatamente acenderíamos as
velas, pediríamos em silêncio a realização de um desejo e aguardaríamos a saída
dele. Quando o orixá concluísse os rituais e deixasse o local, deveríamos segui-lo
para qualquer lugar. “Mas, cuidado! Não deixem a vela apagar ou o desejo não se
realizará!”, advertiu.
E era exatamente meia-noite quando ele saiu porta afora correndo em direção
à primeira encruzilhada, seguido por sete sujeitos com as mãos em conchas no
entorno das brasas das velas. Mal iniciamos a correria e meu vizinho da esquerda
já estava em dificuldades. Vinha atrás aos tropeções, sem saber se protegia a vela
ou se segurava as calças.
Ao ver a cena hilária, não segurei a gargalhada. Foi naquele instante que a
minha vela apagou. Imediatamente, meti a mão no bolso e peguei o isqueiro. Oxu -
maré, que seguia bem à frente sem olhar para trás, gritou tonitruante: “Não é mais
pra acender a vela que apagou!”
No círculo formado quando chegamos na encruzilha, a minha era a única vela
sem luz.
Ainda bem que o meu desejo não se realizou!
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A
os 58 anos, parecia mais sábio. Contudo, não estava muito satisfeito
com aquela sabedoria pré-sexagenária. Preferia a insensatez da juven -
tude em vez da cautela própria de quem está envelhecendo. Estranho,
não sentia-se velho. Era da Geração X, e tinha muito orgulho disso. Fazia questão
de demonstrar em conversas com amigos, nos bate-papos nas redes sociais, em
poesias cometidas às escondidas, para evitar as chacotas dos parentes mexeriquei -
ros.
Foi adolescente nos derradeiros anos da década de 1970, namorando de mãos
dadas, escorado no portão, e ouvindo “Kiss me quick, while we still have this
feeling” com Elvis Presley em long play rolando solto na vitrolinha. Amassos
inesquecíveis, tão intensos que às vezes parecia impossível conter os gametas em
efervescência vulcânica.
E agora, estava velho. Inexoravelmente velho. As rugas nos cantos dos olhos
e da boca tornavam-se mais vincadas. Os cabelos, embranqueciam. “Meu Deus,
estou velho!!!” Uma constatação já externada pelos parceiros de bar, nas rodadas
de fim de semana e, até mesmo em casa, entre uma pilhéria e outra da esposa.
“Quando isso começou a acontecer?” se questionou, enquanto bebericava uma
cervejota crepuscular no “Baré”, indiferente às sátiras e trocadilhos infames do
matusalênico proprietário.
Ao olhar-se no espelho, enxergou assustador “pescoço de peru”. Viu a flacidez
do tórax outrora vigoroso e — que horror!!! — percebeu a súbita indisposição
do inseparável companheiro, intrépido explorador de grutas e túneis femininos.
Ao vê-lo murcho e cabisbaixo, abriu os braços inquiridor: “Por que me abando -
naste?!” Absorto nessas divagações, não percebeu que a mulher o observava pela
entre abertura da porta do banheiro.
— Quáquáquáquáquá!!... — A gargalhada sarcástica fora como um jab na
alma, derrubando-a na lona da vida.
— Porra, Izaura!!! — vociferou, zangado. — Tu quer me matar do coração?!
— Quáquáquáquáquá!!! — A mulher saiu em disparada, pelo corredor, cha -
mando a atenção das filhas e filhos espalhados pela casa.
— O que foi, mãe? — perguntou um deles, com ar de espanto na cara sardenta.
— Teu pai ficou doido!!! Tá conversando com o “morto”!!! Quáquáquáquá -
quá!!!...
— Também não avacalha, né Izaura!!! — Gritou ele, da porta do quarto. — Que
droga! Agora, virei a piada da família!
O carro de
funerária
O filho mais velho foi o primeiro.
— Lá vem o “necrófilo”!!!
— Olha o respeito, “moleque”!!! — retrucou.
Um outro gritou do sofá:
— Nem encantador de serpente dá jeito!!!
— Tá vendo, Izaura?! Tá vendo o que tu fez?!
A demonstração de contrariedade desencadeou outra enxurrada de gracejos e risos
debochados. Trancou-se no banheiro. De repente, invade a memória antiga canção de
Cassiano: “Quando olho no espelho,/estou ficando velho e acabado”. Inadmissível!!!
Posta-se diante do espelho, aspira o ar para espremer a pança estilo “mangueira de ce -
mitério”, recurva braços e antebraços e fecha os punhos. Duas protuberâncias brotaram
tímidas no lugar dos dois potentes músculos da juventude. Sensação de desalento inva -
diu mente e coração.
Mas, reagiu bravamente. Jamais seria derrotado.
Saiu para o bar, onde encontrou (putz!!!) velho amigo. O cumprimentou, sorumbá -
tico.
— E aí?!
— Como vão as coisas?!
— Humm, assim assim!! — respondeu ele. — Mais levando do que empurrando!
— Que desânimo!! — retrucou o amigo.
— Bah!
Pediu a breja de sempre.
— Traz uma aí, Louro!
Em dois minutos, o octogenário botequineiro surgiu serelepe e pimpão com uma ge -
losa espumosa presa pelo gargalo. Aprumou a chave na tampa, fez o clássico movimento
que antecede o clique, e... parou. Curiosos, ambos olharam para o macetoso comerciante.
— Que foi, Louro?!
— Olha isso!! Olha isso!! — e apontou com o queixo para a rua em frente.
A mulata sacolejante, exibindo apetitosa bunda e belas pernas, encarapitada sobre
um salto plataforma, dentro de um minivestido, passava pela frente do bar como se des -
filasse sobre uma longa passarela imaginária. Formou o bonde. O Louro na condução,
seguro na manivela, extasiava.
— Bora, Louro! Abre logo a cerveja! “Isso” não é mais pra ti!
— O quê?! — replicou o Louro. — Tu tá é por fora!!!
— Deixa de conversa! Hahahahaha!...
— Ahhh!... Tu duvida?! — questionou, sardônico.
Pronto. Voltou tudo. Deu dois tragos no primeiro copo, meteu a mão no bolso da
calça jeans, sacou uma nota de R$ 5,00 e saiu sem ouvir a derradeira — e mais sacana
— pilhéria do comerciante.
— Lá vai o “Carro de Funerária”!!!
— Por que, Louro? — quis saber outro frequentador do bar.
— Pra onde vai, leva o “morto”!
E todos:
— Quáquáquáquáquá!!...
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N
o auge dos meus oito anos de idade (“Oh! que saudades que tenho/
Da aurora da minha vida,/Da minha infância querida/Que os anos não
trazem mais!”), minha mãe decidiu aplicar-me um castigo, digamos,
mais psicológico, após aprontar grave peraltice. Em vez das sovas com vara de
goiabeira ou dos “bolos” aplicados com a palmatória de acapu, sentou-me ao lado
dela, em derredor da mesa na cozinha de nossa casa, na passagem Bom Sossego,
sobrepôs à minha frente um grande livro, capa preta, páginas finas e transparentes,
determinou que eu rezasse um Pai-Nosso e em seguida que procurasse o Salmo 23
e o lesse em voz alta quantas vezes ela considerasse necessário. Mais não disse.
Fiquei atônito. Por onde começar? Apoiei o queixo na borda da mesa, entrelacei
as mãos, mantendo-as entre os joelhos, e quedei paralisado.
O antigo exemplar da Bíblia, livro sagrado da cristandade, pertencia ao meu
pai, herança do pai dele, meu avô Filomeno, nascido e criado em Igarapé-Miri,
município paraense da região guajarina. Era uma tradução Ferreira de Almeida, de
difícil entendimento devido a linguagem excessivamente rebuscada. Seu Manoel
guardava aquele exemplar com zelo extremado. Duas ou três vezes por semana o
manuseava, sentado no canto da cama, próximo à janela lateral. Fazia o sinal da
cruz e detinha-se em algum capítulo ou versículo.
Acostumado ao coloquialismo das revistas em quadrinhos do Walt Disney,
foi-me terrivelmente difícil localizar os Salmos naquela profusão de páginas. Fi -
nalmente, encontrei o Salmo 23. O problema foi entender o que lá estava escrito.
Certamente, David não falava com tanta eloquência vernácula: “Jehovah he meu
Pastor, nada me faltará. Em pastos ervosos me faz deitar: mansamente me leva a
aguas mui quietas. Refrigéra minha alma: guia-me por veredas de justiça, por seu
nome. Ainda que também andasse pelo valle da sombra de morte, não temeria
algum mal: porque estás comigo: tua vara e teu cajado me consolão.”
Mas os exegetas entediam David um filólogo renomado, tanto que capricha -
ram na tradução, dificultando o acesso dos pequenos ao extraordinário conteúdo
do Salmo 23. Mais de 40 anos se passaram e ainda guardo este episódio na memó -
ria. Aquela mãe, em sua sabedoria instintiva, promoveu mudança significativa na
vida do próprio filho. Despertou-lhe o interesse pelo sagrado, ensinando-o, através
do castigo, o caminho da iluminação espiritual.
Sem dúvida, o Salmo 23 é bastante conhecido em todo o mundo por ser um
idílio de grande beleza, elaborado a partir da paz e do equilíbrio que habitam na -
queles que creem na profunda interação com o infinito. A primeira frase apresenta
Encantos do
Salmo 23
o homem voltado para o espiritual, totalmente confiante no Altíssimo como guia
e provedor. É o homem que sabe que a inteligência infinita que há nele é Deus,
e que esta Presença corresponde aos seus chamados sempre que solicitada. “O
Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Exatamente porque todas as necessidades
são supridas de maneira compacta, unívoca e fluente.
É uma inigualável demonstração de confiança. Semelhante a outro clamor,
dessa vez advindo de Jesus, o Cristo, no desenrolar da crucificação. “Pai, em tuas
mãos entrego meu espírito”. Para mim, é outra oração de magnitude singular.
Vida: não existe bem mais valioso. Então, para proteger-me, e antes de sair às
ruas, clamo: “Jehovah, em tuas mãos entrego meu espírito”. Naquele dia, quando
minha mãe me fez sentar ao seu lado, na nossa mesa da cozinha, ensinou-me ines
timável lição. “Deus é o Senhor, então, peça e Ele o atenderá”. O conselho veio
de um pastor protestante da antiga (e venerável) Assembleia de Deus. “Faça ele
orar”, recomendou.
E orava, suplicando a Deus sabedoria e um coração tranquilo. “O Senhor é
meu pastor, nada me faltará”. Esta certeza me acompanha até os dias atuais, prin-
cipalmente nas adversidades, no enfrentamento dos problemas, nas marchas e
contramarchas da vida. Nunca sofri solidão, em nenhum momento, por mais ad -
verso que fosse o momento. Jamais desesperei. Tinha (e tenho) absoluta certeza de
que alcançaria (e alcanço) meus objetivos, realizaria (e realizo) meus propósitos.
É a fé inabalável na suprema sabedoria e em mim mesmo.
Ultimamente, tenho ouvido o chamamento em meu coração. É chegada a hora
de retomar o caminho da espiritualidade. Avizinha-se o instante da grande deci -
são. Sinto que “(...) A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo”, e que meus
dias de “(...) rodear a terra e passear por ela” estão chegando ao fim. É como
disse Shakespeare: “Tudo estará pronto se a mente estiver.” E a minha está quase
pronta.
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E
m meados dos anos 1970, o recém-criado Fantástico, programa domini -
cal da Rede Globo de Televisão, exibiu uma reportagem com o tema “O
que é felicidade?”. Eu tinha, na ocasião, 16 anos e ainda não havia pen -
sado sobre o assunto. Tampouco ousara criar algum conceito, por mais simplório,
sobre matéria tão vasta e abstrata. Aliás, naqueles tempos bicudos minha rotina
resumia-se aos estudos, ao trabalho, à Igreja Batista da Marambaia, ao bate-bola
improvisado no campinho de moinha e à companhia de minha mãe, dona Rosa.
Ora, para mim isso é que era felicidade!!!
Mas, a reportagem do Fantástico transmitida naquela noite de domingo após
ouvir vigoroso sermão do pastor e professor Ezequiel José de Freitas, me forçou
inconscientemente a formular as seguintes perguntas: “O que é felicidade?”. Eu
sou realmente feliz?”. Então, acompanhei atentamente as respostas. “Ah, felici -
dade é estar aqui, nesta praia maravilhosa!”. “Felicidade é estar com minha na -
morada!”. “Felicidade não existe, é momentânea!”. E assim por diante. Todas as
respostas conduziam a uma conclusão: felicidade é um momento. Uma sensação
volátil. Um estado de espírito.
Concluída com as clássicas opiniões dos especialistas, a reportagem do Fantás -
tico virou o assunto da semana. E sem que eu percebesse passei a perseguir uma
resposta plausível para aquela pergunta: Afinal, “o que é felicidade?”. Nos meses
seguintes fui colecionando respostas, das estapafúrdias às sofisticadas, filosóficas
e religiosas, triviais e profundas. Todas cuidadosamente catalogadas em volumoso
caderno (creio com mais de 100 páginas), com datas, nomes dos autores das res -
postas, localizações, etc.
Por quase três anos, coletei centenas de ideias armazenadas em dezenas de
cadernos. Eram opiniões coletadas em situações e locais diferentes (igrejas, gi -
násios, seminário, estádios de futebol, ruas, festas, velórios…), com pessoas em
diferentes níveis mentais e espirituais, analfabetas e cultas, graduadas e pós-gra -
duadas, ateias e crédulas. Eu tinha em mãos um manancial inestimável, montado a
partir de uma reportagem instigante, onde poderia estar a resposta definitiva para
o meu dilema.
Um trabalho todo motivado pela curiosidade, sem nenhuma metodologia aca -
dêmica, certamente não poderia ter valor científico. Somente anos mais tarde,
munido com as ferramentas adequadas, voltei a vasculhar aqueles cadernos. Foi
quando percebi uma estranha coincidência. A palavra “momentânea” estava pre -
sente em boa parte das respostas. Ou seja, para aquelas pessoas a felicidade plena
Pedaços de
felicidade
era inalcançável. Não existia absoluta. No entendimento delas, felicidade resumia -
-se a “momentos” agradáveis, sensações de bem-estar e contentamento.
Ora, se a felicidade é um momento ínfimo de satisfação, onde o indivíduo se
sente feliz e realizado, um momento onde não há nenhum tipo de sofrimento, en -
tão como torná-la plena? Analisando minuciosamente aquelas anotações concluí,
pesaroso, o quanto é impossível para nós, humanos demasiado humanos, conquis
tar a felicidade perfeita. Primeiro, porque nunca estamos plenamente satisfeitos
com o que temos. Sempre queremos algo mais. É próprio do ser, do humano ser.
Segundo, esse “querer algo mais” nos força a uma busca por sua obtenção. E esta
procura conduz invariavelmente a dois resultados: sucesso ou fracasso. E sendo
bem sincero com vocês, quem de nós está realmente preparado para o fracasso?
Ninguém se prepara para o fracasso. Por isso, sofremos quando não consegui -
mos realizar nossos sonhos. Quando aquele ente querido morre. Quando somos
reprovados naquele concurso. Quando um grande amor se vai. E às vezes, sofre -
mos mais por nossa incapacidade em extrair desses instantes de dor uma lição para
nossas vidas. Pela nossa inaptidão em transformar derrotas em vitórias. Quando
aprendemos isso, jamais nos sentiremos novamente derrotados, mesmo na adver -
sidade aparentemente intransponível ou na dor mais atroz.
Resumindo, guardei aqueles cadernos com extremado zelo por quase 12 anos.
Foram minhas fontes de consultas em muitos textos que produzi no começo de
minha carreira profissional. Cobiçados por amigos estudantes das “gias” bem co -
nhecidas (Psicologia, Sociologia, Teologia…). Manuseados por padres e pastores.
Umbandistas e espíritas. Maçons e rosa-cruzes.
Resumindo: ainda bem que a felicidade é momentânea, porque do contrário
jamais descobriríamos “(…) Que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o
riso constante é insano.”
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O
transeunte normalmente ignora um caco de tijolo ou um punhado de
pedregulhos esquecidos no meio-fio. O mesmo acontece com uma for -
miga, subindo cambaleante o galho seco de uma roseira encolhida no
canto de um jardim malcuidado. Raros passantes percebem o passarinho saltitando
nos galhos da mangueira, às vezes, nem enxergam a mangueira. Estão apressados
demais, por isso desatentos aos seres fervilhantes sob as folhas, embaixo dos ca -
cos ou pedregulhos, ou sobrevoando centímetros acima de suas próprias cabeças.
Quem filosofaria a partir de folhas secas, flores murchas, frutos estragados,
pipiras e bem-te-vis desafinados? Ou prantearia a morte de um mosquito? Na ver -
dade, temos um conceito de vida muito estranho. Valorizamos o cão beagle mas
esquecemos do rato, também usado como cobaia de laboratório. Nesse caso, os
ativistas são contraditórios quanto ao significado e a importância da vida.
A visão humana e suas conturbadas interpretações raramente conseguem ver
beleza num caco de tijolo ou significância teológica em pedregulhos abandonados
no meio-fio. Ainda hoje, há quem defenda Jesus Cristo louro, olhos azuis, pele
branca como a neve. Uma imposição da Igreja medieval que, por foça, queria um
deus anglo-saxão.
Mesmo séculos depois, as pessoas acreditam nessa versão enviesada ao reve -
larem preferências nada convencionais. Por exemplo, quem receberia mais afa -
gos? Um bebê branco, rechonchudo, olhos azuis, cabelos louros e encaracolados
ou um bebê negro, magro, olhos negros, carapinha, lábios protuberantes?
Os turvos de coração responderiam bem-intencionadamente, entremeando com
vigoroso discurso contra um suposto apartheid infantil, que seria o bebê branco.
Nada disso. Bebês são bebês. Em qualquer lugar, independente da raça, merecem
afeto e carinho. A visão distorcida, embasada por conceitos, dogmas ou doutrinas
confusas, conduz ao argumento falacioso de que beleza tem cor. É um tempo em
convulsão esse que vivemos. Temos muita modernidade mexendo com as pessoas
e exacerbando antigos pré-conceitos. Como na escolha equivocada dos bebês.
É preciso enfrentar as limitações sem traumas. E fundamental, viver as triviali -
dades cotidianas com extrema sabedoria. Extraindo dos objetos mais comezinhos
lições que possam melhorar a percepção do entorno, e ajudar a aperfeiçoar o auto -
-conhecimento. Mesmo um caco de tijolo ou qualquer punhado de pedregulhos
tornam-se relevantes quando aguçamos a visão do espírito.
O poeta Carlos Drummond de Andrade era um extraordinário observador de
minudências. Nada escapava à sua aguçada percepção. Vivia cada dia sem es -
Cacos e
pedregulhos
pasmos, porém, com assombrosa voracidade em captar os mínimos detalhes, as
reações mais imperceptíveis, os gestos ainda que extremamente comedidos. Qual -
quer anormalidade, embora diminuta, era cuidadosamente arquivada.
Foi assim com a inconveniente pedra. Alguém comum passaria ao largo, após
algumas imprecações, seguindo adiante o caminho traçado. Mas Carlos Drum -
mond de Andrade, experimentado observador de minudências, enxergou nas en -
trelinhas do tempo e da vida o portal para uma outra dimensão, somente acessado
com uma chave muito especial: a pedra no meio do caminho. “Nunca me es-
quecerei desse acontecimento/Na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca me
esquecerei que no meio do caminho/Tinha uma pedra.”
Uma obra-prima construída sobre o trivial cotidiano, resultado de singular ca -
pacidade em enxergar através das entrelinhas. Como Sidarta Gautama, cuja sabe -
doria foi aperfeiçoada em longas observações da natureza e do contínuo meditar
embaixo das árvores. Professor e filósofo, Sidarta lançou as bases do budismo
elevando o desapego como princípio basilar da simplicidade. Conceito experi -
mentado pelo poeta e naturalista Henry David Thoreau.
Segundo Thoreau, todo homem tem a tarefa de tornar sua vida, mesmo nos
detalhes, digna de ser contemplada, estando ele em sua hora mais crítica e ele -
vada. “Me isolei porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos
essenciais da vida e ver se poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de,
vindo a morrer, descobrir que não tinha vivido. Não queria viver o que não era
vida, tão caro é viver; tampouco queria praticar a resignação, a menos que fosse
absolutamente necessário.”
Eis aí o mistério da fé: total compreensão de si mesmo. Só possível alcançar
quando em absoluta sintonia com as minudências da vida. Na simbologia univer -
sal de um caco de tijolo ou na beleza abstrata contida nos pedregulhos adormeci -
dos no meio-fio.
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R
eza antigo dito popular de que uma andorinha não faz verão. Discor -
do. Uma andorinha esperta, e conhecedora das coisas deste e de outros
“mundos”, faz verão, sim, porque saberá como percorrer grandes dis -
tâncias se voar a favor do vento. Ou seja, se quiser (e souber) faz grande barulho
e não só provoca veranicos e verões avassaladores, como é capaz de fazer chover
no molhado.
Aliás, sobre este assunto quero esclarecer que cresci ouvindo ditos populares.
“Cavalo dado não se olha o rabo”, “quando a esmola é demais, até o santo des -
confia”. E assim por diante. As pessoas daquela época (anos 1960), apreciavam
essas citações. Minha mãe, então, era uma frasista inigualável, chegando a criar os
próprios ditos quando queria enriquecer uma ideia.
Eu mesmo inventei alguns, nem tão populares como os tradicionais. “Em anel
de gordo, magro não mete o dedo”, “Quem gasta demais, vira sócio de agiota”,
“Todo ‘comedor’ um dia também vira ‘comida’” (quando morre), e assim por
diante. São chistes que surgem ocasionalmente, por isso mesmo muitos não foram
catalogados.
Voltando às “vacas magras” (vejam só!), uma andorinha pode fazer verão. A
história está recheada de personagens que sozinhos inspiraram a construção de
impérios, mas, igualmente foram a ruína deles. Como a andorinha solitária so -
brevoando os céus nublados de Macapá e, de repente, ressurge o sol derramando
luminosidade.
Pois é, tudo poderia ser diferente. A andorinha “fazendo verão” nesses dias de
chuvas torrenciais. Meus ditos, mais populares, sucessos na boca do povão. Quem
dera fosse tudo mais fácil! Simples, como nos tempos de antanho, quando ouvia
minha mãe conversando com as irmãs (minhas tias), enquanto temperava o feijão
(ah, que cheiro bom!!!), entremeando os prazerosos bate-papos com os ditos da
moda.
À tardinha, estirada sobre o parapeito da janela, contemplava a paisagem à
frente formada por pequenas árvores frutíferas e vegetação rasteira, fundindo-se
com o céu em azul e branco, composto por estranhas figuras mitológicas criadas
pela imaginação.
Na frente de casa existia uma imensa campina, por onde ainda passavam cava -
los e bois para os terrenos próximos. A Belém dos anos 1960 só existia no entorno
do Forte do Castelo. Do Marco para trás era interior, bairros em formação como a
Marambaia compunham a área rural da cidade. Rios e riachos, lagos bons para o
O Verão da
Andorinha
banho, extensas matas onde se pescava e caçava.
A Marambaia era o interior de Belém. Tinha ônibus-lotação de manivela.
Entrocamento do Mercado Brilhante à Casa Navio. Seminário Teológico Batis -
ta Equatorial. Sede do “Pedro Barbeiro”, São Joaquim Eporte Clube, Clube dos
Médicos, Palhoça e Antonhão (Boate do Brasileirão), Merengue do Rasga Saia.
Feiras em profusão, mercadinhos e até cinema, caldo de cana com pastelão.
E depois dizem que uma andorinha não faz verão. Meu pai adorava aquele
“interior”. Foi morador pioneiro. Quando chegou lá (dizem) ainda se ouvia ronco
de onça braba e assovio de Matinta Pereira. Desbravador, chamou o cunhado, o tio
Eustáquio, e construiu uma bela casa de pau-a-pique, cavou poço, meteu bomba e
plantou cacau, cupuaçu, coco anão, abacate e popunha.
Mecânico e torneiro mecânico, meu pai construía as próprias ferramentas. Era
um sujeito bem criativo, e um apaixonado pelos ofícios que exercia. Tinha uma
caixa de ferramentas que tratava feito um baú repleto de ouro e prata. Só ele mexia
naquele “tesouro”. No tempo de colheita, as popunheiras ficavam “carregadas”.
Então, meu pai inventou uma “cortadeira” de cachos de popunha composta por um
cabo de três metros e uma espécie de foice.
Foi quando me tornei vendedor de popunha sazonal. Eu tinha dez anos. Até o
dia em que, passando na frente de um bar, no Mercado Brilhante, uns bebuns com
praram todo meu produto, comeram até as cascas e não quiseram pagar. Ahhh,
é assim?! Me armei com uma enorme pedra e a atirei no meio das garrafas de
cerveja. Depois, dei um carreirão rumo à nascente avenida Pedro Álvares Cabral,
atravessei a rua Capitão Braga e peguei a passagem Nossa Senhora de Fátima, até
chegar à passagem Bom Sussego (hoje, Bom Jesus).
Duvido que alguém, principalmente em elevado estado etílico, pega moleque
de rua, com peitoral de pipira e cambitos de bambu. Carre veloz como o vento,
ainda mais se deixou para trás um enorme cagalhão. Minha carreira de “microem -
preendedor individual” terminou precocemente com uns cascudos aplicados por
minha mãe no meio do cocuruto. “Pra deixar de arrumar confusão na rua!”
Doeu pra kauaka. Mas aprendi: uma andorinha faz verão, sim. Só precisa
acompanhar a meteorologia e voar a favor do vento.
44
Trivial Cotidiano
45
Trivial Cotidiano
O
número de escândalos recorrentes envolvendo figurões da política
em malversação, peculato, corrupção passiva e ativa, formação de
quadrilha e fraudes é assombroso. Mais surpreendente ainda é vê-
-los lépidos e pimpões a desfilar altaneiros em carrões importados pelas ruas
esburacadas e mal sinalizadas de Macapá, indiferentes à miséria no entorno,
às pessoas amontoadas em filas nos postos de saúde, às escolas em ruínas, à
falta de remédio e saneamento básico para quem precisa, com urgência, de
melhor qualidade de vida.
E o que mais indigna é saber que o próprio povo, aquele das baixadas e
periferias, é o principal responsável pela eleição e contínuas reeleições desses
figurões da política hoje encastelados nos Ministérios, no Senado, na Câmara
dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, Prefeituras e Câmaras de Vere -
adores, envolvidos até o tampo da cabeça em negociatas subterrâneas, escusas
e, por isso mesmo, criminosas. O que dizer a essas pessoas, geralmente hu-
mildes e por isso vulneráveis? O que falar para elas às proximidades de mais
um ano de eleições gerais?
Por favor, não vendam seus votos. Não os troquem por dentaduras, ces-
tas básicas, tampouco por aterro ou qualquer outro material de construção.
Não caiam na conversa dos políticos larápios (ou dos larápios que querem ser
políticos), dos lobos travestidos de ovelhas, que em período eleitoral estarão
rondando suas casas astutos e famintos. Fiquem atentos aos candidatos e can-
didatas. Procurem conhecer quem realmente é digno de seu voto.
Mas tanto conselho tem adiantado? Pelo que temos observado Brasil afo-
ra, pelos crescentes escândalos ocorridos de alto a baixo da República, têm
sido totalmente inúteis. Essas pessoas – jovens e adultos – estão realmente
preocupadas com o próprio futuro? Infelizmente, a maioria voltará a sucumbir
ao “canto da sereia” dos maus políticos nas eleições de 2014. É certo de que
trocarão seus votos por um punhado de moedas, algumas dúzias de telhas e
tábuas, pelo vil metal para gastar com cachaça, uma cesta básica ou simples-
mente por uma vã promessa.
E em 2014, novamente o Tribunal Superior Eleitoral estará gastando mi-
lhões do contribuinte com campanhas publicitárias, veiculadas nas emissoras
de rádio e televisão, jornais e revistas, blogs e sites, tentando conscientizar o
povo brasileiro da importância do voto. Nos últimos anos, milhões e milhões
de reais dos cofres públicos já foram investidos nesse projeto. Contudo, os
Escolhas erradas,
futuro ruim
resultados têm sido pífios diante do volume crescente de bandidos e bandidas
que são eleitas a cada dois anos.
O que vemos são autoridades envolvidas em tenebrosas transações trama-
das na “calada da noite”, enquanto a pátria mãe tão distraída, sem perceber,
é vorazmente subtraída. São ministros, senadores, deputados federais e esta-
duais, prefeitos e vereadores, secretários de estado e do município, superin-
tendentes de autarquias, gerentes, chefes e chefetes. Todo mundo querendo se
locupletar. É roubalheira para tudo quanto é lado desta pobre nação brasileira.
Enquanto os malversadores, defendidos por caríssimos causídicos, certa-
mente pagos com dinheiro fruto da corrupção deslavada, compungem a face,
arqueiam os sobrolhos, encolhem os ombros, curvam a espinha, aparecem
em entrevistas nas emissoras de TV negando, na maior cara de pau, qualquer
envolvimento em desvio de dinheiro público. E o pior – e apesar do desem-
penho canhestro – conseguem convencer os incautos de que são inocentes e
que foram vítimas de estrambóticas tramas políticas, de poderosos inimigos
invisíveis ou, como arguiu Jânio Quadros ao renunciar, de inexplicáveis “for-
ças ocultas”.
Tremenda conversa fiada, um engodo vernacular, mentira das mais desca-
radas. Ainda assim, mesmo com tantas evidências de picaretagem, conseguem
ludibriar milhares de homens e mulheres, brasileiros e brasileiras crédulas,
geralmente residentes nos alagados, nas ruas sem asfalto, sem meio-fio, sem
saneamento e esgotamento sanitário, sem unidade básica de saúde ou trans-
porte coletivo. São esses pobres, que sobrevivem com extrema dificuldade,
que enfrentam adversidades indescritíveis, que estarão frente às urnas no dia
da votação, apertando o número desses salafrários.
O que dizer a essas pessoas? Adverti-las?! Alertá-las sobre os malefícios
que estarão causando, não somente a si mesmas, mas a toda a sociedade?! Terá
algum resultado admoestá-las sobre o conhecido mau-caratismo da maioria
dos candidatos e candidatas?! De homens e mulheres mal-intencionadas?! Do
verdadeiro propósito deles e delas que é enriquecer ilicitamente com o di-
nheiro da Educação, da Saúde Pública, da Segurança, do Transporte?! Será
que eles estarão aptos para entender que somente com o voto responsável,
consciente e cidadão é possível garantir um futuro mais digno para nossos
filhos e netos?!
Confesso a vocês: tenho minhas dúvidas.
46
Trivial Cotidiano
47
Trivial Cotidiano
D
urante jantar, no Cantinho Baiano, minha mulher quis saber se eu
acreditava em reencarnação. Antes de responder, a felicitei efusi-
vamente: “Poxa, estou feliz em saber que você se tornou espírita!”.
Prontamente ela esclareceu: “Não, eu continuo católica”. Foi só um chiste
para descontrair. Afinal, o assunto versava sobre a finitude humana e a pos-
sibilidade da existência de vida após a morte. Aliás, a morte sempre foi (e é)
um grande mistério. Mais ainda vida após a morte num reino espiritual ou
imaterial como ensinam as grandes religiões cristãs.
Quanto a resposta à pergunta a mim formulada, lancei mão de um recurso
filosófico criado por Blaise Pascal. Trata-se de uma proposta argumentativa
de filosofia apologética que naquele momento adaptei para impressionar mi-
nha mulher: “(…) se você acredita em reencarnação e estiver certa, você terá
um ganho infinito; se você acredita em reencarnação e estiver errada, você
terá uma perda finita; se você não acredita em reencarnação e estiver certa,
você terá um ganho finito; se você não acredita em reencarnação e estiver
errada, você terá uma perda infinita.”
Não obstante, o que vem após a morte é um grande mistério. Creio, o maior
de todos. Muitos o rechaçam como princípio “filosófico-religioso”. Os ateus,
por exemplo, o tratam como “conto da carochinha”. Já os espíritas defendem
a doutrina da reencarnação como o renascimento em um novo corpo físico
após a morte, isto é, postulam um período de existência do ser em outros
planos, que ocorre entre duas existências físicas convertidas em sequentes
renascimentos para purificação eterna. Logo, para os espíritas existe vida após
a morte.
Desde minha adolescência, sou leitor contumaz das obras do rei Salomão
(Cantares, Provérbios, Eclesiastes). São ensinamentos imprescindíveis para
quem almeja entendimento espiritual. Recorro a eles quando preciso de acon-
selhamento e orientação, principalmente ao livro de Eclesiastes (ou qohelet
em hebraico, que significa “pregador”). Salomão discorre sobre a importância
da vida (“melhor é o cão vivo do que o leão morto”), e faz referência à ine-
xistência de vida após a morte (“porque os vivos sabem que hão de morrer,
mas os mortos não sabem coisa nenhuma, tampouco terão eles recompensa.
Também o seu amor, o seu ódio e a sua inveja já pereceram, e já não têm parte
alguma para sempre, em coisa alguma do que se faz debaixo do sol”).
Numa interpretação literal, para Salomão não existe vida após a morte por
O que virá
-
depois
que “os mortos não sabem coisa nenhuma”. Ou seja, “para quem está entre
os vivos há esperança” porque esses “sabem que hão de morrer”. Então, con-
forme o “pregador” só se nasce e morre uma vez. Nada de reino espiritual ou
imaterial, purgatórios ou paraísos, reencarnações ou ressuscitações. Morreu,
fim de papo. O corpo vai apodrecer até sobrarem só os ossos. Limbo total.
Será assim mesmo? Tenho acompanhado com relativo interesse os avan-
ços da Tanatologia (estudo da morte) e surpreso conclui que mesmo após
milhares de anos a humanidade ainda se queda perplexa ante a finitude. É
impressionante como, inusitadamente, o tema ressurge em conversas infor-
mais e desinteressadas. Nessas ocasiões surgem discussões éticas, filosóficas,
científicas e religiosas sobre início e fim da vida, aborto, eutanásia, luto em
qualquer etapa da vida, em razão da perda de pessoas queridas com qualquer
idade – inclusive no caso de abortos espontâneos, quando os pais sofrem com
a perda do que era esperado como celebração de uma vida e acaba trazendo a
realidade da morte.
Na verdade, nunca a morte obteve tamanha evidência. É assombroso ver o
tratamento da mídia e a forma como o público consome as notícias sobre cha -
cinas, latrocínios, guerras, tragédias naturais, atentados. A morte ocupa 99,9%
dos noticiários, diariamente é assistida por bilhões de pessoas ao redor do
mundo, e mesmo assim dizem que não têm tempo para pensar em coisas como
a morte. É uma visão irônica, a mesma externada por famoso personagem do
jornalista e escritor Luís Fernando Veríssimo: “a morte é a última coisa que
espero que me aconteça”.
Sabemos que não é bem assim. No fim das contas, não fomos feitos para
viver eternamente. No fim, o coração vai parar de bater, a respiração vai ces-
sar e, como uma lâmpada, o cérebro vai se apagar. A vida acaba aí. Mas a
morte, não. Ela apenas começa. Por isso, a morte que mais me assusta é aque -
la que aparece quando deixamos de sonhar; quando perdemos o caminho da
esperança; os laços de afeto com o ser humano; quando não reverenciamos a
natureza que nos rodeia, ou melhor, que nos abriga; quando esquecemos que o
mundo precisa de nós para fazermos as mudanças necessárias; que a vida co-
meça insistentemente todas as manhãs mesmo que não estejamos preparados
para apreciá-la na sua plenitude, magia e encantamento.
Amizades frágeis
Amizades frágeis
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Amizades frágeis

  • 1.
  • 2. 2 Editora Meta Comunicação 3 Av. Raimundo Álvares da Costa, 1122 CEP 68900-915 - Macapá - AP Telefones: (96) 99152.7365 - 98111.2230 Em várias circunstâncias, nas situ- ações mais atípicas, me habituei a ouvir o seguinte desabafo de angustiados interlocutores: “a minha história pessoal dá um livro”. Com o tempo, descobri que se trata de uma grande verdade. Partindo de experiências vivenciadas no dia a dia é possível, sim, construir histórias sensa- cionais. A vida de cada pessoa, por mais que possa parecer desenxabida, é extremamen - te rica em acontecimentos extraordinários. O problema é que como a maioria ainda não aprimorou a percepção, acaba desper- diçando essa inesgotável fonte de apren- dizado. O trivial cotidiano é esta fonte de sabe- doria. Está disponível para quem consegue ler nas minudências do dia a dia as mensa- gens cifradas da vida. É esta a fonte de inspiração de onde obtive a matéria-prima para produzir as crônicas publicadas neste livro. A propos- ta essencial é estimular a reflexão interior, partindo da observação de situações apa- rentemente corriqueiras, e extrair delas grandes lições de vida. O diplomata e jornalista Francisco Ota - viano tem uma frase que considero lapi- dar: “Quem passou pela vida em brancas nuvens e em plácido repouso adormeceu, quem nunca sentiu o frio da desgraca, quem passou pela vida e não sofreu foi es- pectro de homem, não foi homem, só pas- E sou pela vida e não viveu.” manoel Reis é jornalista, publicitário e teólogo. Trabalhou em alguns dos prin- cipais veículos de Comunicação da Amazônia como O Estado do Maranhão, Folha do Norte, Di- ário do Pará, O Liberal, Jornal do Dia (AP) e Diário do Ama- pá. Foi produtor na Rede Brasil Amazônia de Televisão (RBA), professor de Texto Científico e Acadêmico na Faculdade do IMMES (AP) e redator publici- tário nas agências Talento Pu- blicidade e Amazoom - Sistema de Comunicação. Conteúdo das orelhas
  • 3. 4 5 Copyright © Emanoel Reis, 2018 Não é permitida a reprodução desta obra, parcial ou integralmente, sem a autorização expressa da editora e do autor. Produção Editorial, Projeto Gráfico e Arte da Capa Emanoel Reis (A folha da árvore é o símbolo da vida) Reis, Emanoel, 1961 - Trivial Cotidiano (crônicas do caos sem fim) Emanoel Reis Macapá - Amapá: 2018 96p.; 21 x 30 cm. 1. Jornalismo 2. Teologia 3.Amazônia 4. Política CDU 82 - 1/-9 Os direitos para publicação desta obra em língua portuguesa estão reservados para: Editora Meta Comunicação Av. Raimundo Álvares da Costa, 1122 CEP 68900-915 - Macapá - AP Telefones: (96) 99167.3362 - 98111.2230 Emanoel Reis TRIVIAL COTIDIANO 2ª Edição Macapá - Amapá Edição do Autor (crônicas do caos sem fim) 2018
  • 4. 6 7 ÍNDICE Coração selvagem...................................................9 O castigo do magistrado......................................11 Benditasdecepções..............................................13 Acorda,Gumercindo!..........................................15 Otrambiquedocapiau.........................................17 O Dia de Oxumaré...............................................19 Encantos do Salmo 23.........................................21 Cacos e pedregulhos............................................23 Escolhas erradas, futuro ruim............................25 Uma nova disciplina............................................27 Vontade de vencer................................................29 As janelas da alma................................................31 Cantares matinais................................................33 Sentimentos natalinos.........................................35 Intolerânciaàsdiferenças....................................37 Walter,ocarpinteiro.............................................39 Sozinho,jamais.....................................................41 Liçõesdomestre...................................................43 O amigo da onça..................................................45 Angustiante nitude............................................47 AsrevistasdoJuvenal...........................................49 OdebochedoCasseta..........................................51 Educandovencedores..........................................53 Duascaixinhas e umciscante..............................55 Medo.Amigoouinimigo?...................................57 Vamosganhar?!....................................................59 SerraPeladasemCurió........................................61 O réveillon de nossas vidas.................................63 O grande mistério................................................65 O princípio da fé..................................................67 Deus, a base de tudo.............................................69 O que virá depois.................................................71 Overãodaandorinha...........................................73 Pedaços de felicidade...........................................75 O carro de funerária........................................... 77 Sua bênção, Nazica!.............................................79 Aceitaumcafezinho?...........................................81 Avingançadamulhertraída................................83 As duas moedas....................................................85 Odesabafodoescriba...........................................87 As irmãs siamesas................................................89 Nemgregosougoianos........................................91
  • 5. 8 9 APRESENTAÇÃO O cotidiano é inesgotável fonte de sabedoria. Em especial, quando a percepção está pre- parada para absorver as situações mais cor- riqueiras, que parecem intrinsecamente triviais, como uma pedra no caminho ou, seguindo nessa mesma linha de raciocínio, permite extrair conhecimento de cacos e pedregulhos encontrados em calçadas ou numa simples estrada de chão. O cotidiano ensina a tirar dos acontecimentos mais comezinhos lições enriquecedo - ras, essenciais para o desenvolvimento mental e espi- ritual. Contudo, existe algo mais trivial do que uma folha de árvore? Na maioria das cidades do mundo, inclusi - ve na mais distante e isolada, ela está presente na vida cotidiana das populações. É parte integrante do cená - rio, componente indispensável dos complexos urbanos e imprescindível na preservação do ambiente rural. A folha é o símbolo da vida, e (basta observar) cada uma reage diferente às lufadas do vento. “Somente a árvore seca ca imóvel entre borboletas e pássaros”, a rmava Cecília Meireles. É exatamente do trivial cotidiano, da mesmice apa - rente, das pedras, cacos e folhas de que trata este livro de crônicas do caos sem m no qual a humanidade está há muito submersa. São resultados de observações continuadas e experiências pessoais vivenciadas em di - ferentes épocas e lugares, absorvidas na convivência com as pessoas e suas idiossincrasias. Das 53 crônicas publicadas pelo autor deste livro no semanário amapaense FOLHA DO ESTADO, entre 2010 e 2014, 42 foram selecionadas seguindo o princí - pio da gênese existencial. Ou seja, a proposta basilar é provocar a re exão e, sem pretensões ou pedantismos, contribuir para o crescimento individual de cada ser que deseje transformar seu cotidiano numa inesgotável fonte de sabedoria. Por isso, aprecie sem moderação. Às minhas quatro mulheres: Rosa, Socorro Bessa, Tatiana e Sofia
  • 6. 10 A 11 gradar a “gregos e goianos” é o maior de todos os equívocos. As relações humanas são pautadas pelas diferenças; quem não conse- gue conviver com elas mente para si mesmo. E certamente, esta é a pior de todas as mentiras. Existem pessoas afinadas com seus pensamentos, ações e palavras. Outras, discordam e até o criticam com veemência, às vezes chegam ao extremo para demovê-lo de suas ideias e ideais como se fossem detentoras da verdade absoluta. Nesses momentos, quando parece que o caldo vai entornar, a melhor es- tratégia é recuar para evitar confrontos diretos. Concorde com elas mantendo certa autonomia para que não percebam que você está anuindo somente para evitar maiores chateações. Melhor manter um amigo ocasional do que criar um inimigo figadal. Claro que nem sempre isso é possível porque há quem antipatize com você logo de cara e faz questão de demonstrar essa ojeriza. A esses, o melhor remédio é a indiferença. Afinal, como uma onda no mar as amizades vêm e vão independente do tempo que faz. Existem os fingidores, aquelas pessoas habilidosas no engodo, na perfídia, na malícia, na dissimulação, na astúcia. Conheço algumas com essas “apti- dões”, e convivo com elas com relativa tranquilidade. Elas não sabem, dedu- zo, que eu sei que possuem essas características. Deixo que pensem que sou um néscio. Se eu as temo? Sim, tenho medo delas. São perigosas, sobretudo quando atacadas no que mais prezam em si mesmas: a vaidade. Com esses, eu literalmente piso em ovos. Procuro não ofuscá-los; tampouco, confrontá-los. Todo cuidado com eles é pouco, pois, são perscrutadores e dissecadores de almas. Eles conhecem profundamente os sinais formados a partir de trejeitos, muxoxos, gestos e movimentos de braços e pernas. São estudiosos, pesqui- sadores, perquiridores, experimentadores. Qualquer arquear de sobrolhos ou um cruzar e descruzar de braços ou pernas pode ser interpretado como gestos favoráveis ou desfavoráveis. Meu conselho é: mantenha-se impassível, ouça mais, fale menos e não se apresse em concordar ou discordar. Não existe nenhuma fórmula mágica para prolongar uma amizade. Mas, uma longa amizade pode ser desfeita em segundos. Basta uma contrariedade, um gesto impensado ou palavra malditosa e tudo vai por água abaixo. Expli- co: as relações são muito frágeis. As amizades, mesmo longas e firmes, são muito frágeis. O amor, por mais forte que seja, é muito frágil. Porque todo mundo se magoa, se fere, se atinge. Mesmo sem querer. O próprio Jesus, o Nem gregos Trivial Cotidiano ou goianos Trivial Cotidiano Cristo, estabeleceu parâmetros para quem quiser ser Seu amigo: “(…) se fizer - des o que eu vos mando” (João 15:14). Esta é a condição: SE. Há quem não compreenda o SE como medida para uma grande amizade e meta os pés pelas mãos ao confundir liberdade com libertinagem. Ignora os limites da boa convivência social invadindo privacidades e violando individu - alidades. É suscetível em demasia, desconhece o “deixa pra lá” como instru- mento de perdão, trama em silêncio pequenas vinganças, aplicaipsis litteris a “Lei de Gerson”, torna-se maledicente. Essas são as pessoas cujos perfis levaram Napoleão Bonaparte a pronunciar a famosa frase: “Deus me livre dos amigos que dos meus inimigos cuido eu.” Particularmente, não concordo com Napoleão. Prefiro “Deus proteja meus amigos e minha família que dos meus inimigos cuido eu”. Afinal, ninguém vive sozinho. Nem Zaratustra conseguiu tal feito. Tanto que após 30 anos ele saiu de sua caverna para proclamar a “morte de Deus” e decretar a supremacia do “super-homem”. Não do ridículo herói americano, mas, do homem “auto superável”. Ou seja, aquele que venceu suas fraquezas e conquistou a máxima liberdade ao prescindir de deuses. Infelizmente, este homem nunca existiu. E acredito, jamais existirá. Ao contrário de sua criatura, Friedrich Nietzsche era um grande conviva e antes de adoecer conquistou amigos e admiradores. Para o grande filósofo, somente dois sentimentos podem destruir uma amizade: desconfiança e inve- ja. “A falta de confiança entre amigos é erro que não pode ser repetido, sob pena de ser irremediável”, sentenciou, acrescentando que a falta de amigos faz pensar em inveja ou presunção. “Por isso, há pessoas que devem seus amigos à feliz circunstância de não ter motivo para a inveja.”
  • 7. 12 13 para mitigar as lembranças. Não foi fácil. Hoje, as tragédias se avolumam. Muita gente matando gente. Implacáveis como os nazistas em Auschwitz. Por isso, recomendo atenção redobrada. Há algum tempo, formulei a “Te- oria do Morcego Vermelho” (uma singela homenagem ao atrapalhado herói da HQ do Peninha, de Walt Disney). Vou explicar. A teoria é baseada no sistema de proteção natural desses mamíferos. Para evitar colisões durante o voo noturno, eles emitem sinais que identificam os obstáculos (árvores, torres, paredes…). Inspirado nesse princípio, construí a tese de que todo ser humano é dotado de um “sistema natural de segurança” idêntico. Um radar. Se você consegue desenvolvê-lo, observando os sinais de alerta lançados por ele, pode amenizar alguns problemas decorrentes das circunstância do cotidiano, também chama - dos contratempos. Porém, a maioria de nós tende a ignorar esses “bipes”. Embora tornem- -se percebíveis, com sinais claros da ocorrência futura, a tendência é consi- derarmos a improbabilidade do acontecimento e insistirmos na ação. A isso chamamos imprudência, que consiste em proceder sem a necessária cautela, deixando de empregar as precauções indicadas pela experiência como capazes de prevenir possíveis resultados lesivos. Acontece que antes da ação imprudente materializar-se, aquele “sistema natural de segurança”, ou bom-senso para muitos, sinaliza alertando sobre o perigo crescente. Essas sensações (também nominadas adrenalina) aumen- tam quando ocorrem situações de elevado risco à vida. Os “bipes” disparam. Alguns, cuja clarividência é altamente desenvolvida, percebem de imediato a anormalidade da situação. Esses, têm menos dificuldade em lidar com o inesperado. A maioria, contudo, desconhece a existência desse “sistema” e não consegue se antecipar aos fatos. Resumindo, para minimizar os pequenos e grandes deslizes cotidianos (e não se surpreendam, são cometidos até pelos mais sapientes), recomendável são doses frequentes de cautela e canja de galinha. Como diz este velho pro- Trivial Cotidiano V vérbio português, não fazem mal a ninguém. ida e morte são irmãs siamesas. Inseparáveis e atemporais. O que é a vida, senão a confirmação da morte. E o que é a morte, senão a certeza de que houve uma vida. Por que a morte infunde tanto medo? Todas as vezes em que fiz esta pergunta, escutei respostas diferentes. Quando disseram que sim, os medos mais comuns eram: sofrer uma dor in- controlável, ser humilhado, ficar dependente, separar-se de pessoas queridas ou sentir-se arrependido por ter vivido inutilmente. Mas o maior medo era o de sentir o próprio medo. Acompanhando o noticiário nas emissoras de rádio e TV, tenho testemu- nhado a banalização da morte. Será que a humanidade está em guerra fratri- cida? Dizem que nos últimos anos a violência virou epidemia. Não sei. Penso que há controvérsias. Na verdade, o homem sempre foi o lobo do homem (homo homini lupus). Vi muito isso nos meus anos dedicados à reportagem policial, primeiro na gloriosa FOLHA DO NORTE, reeditada pelo então Sis- tema Rômulo Maiorana de Comunicação entre 1990 e 1992. Depois, em O LIBERAL, de 1994 a 1998. Confesso a vocês que reportei casos horripilantes, assassinatos “cometidos com requintes de crueldade” e por pessoas “inofensi - vas e cordatas”, acima de qualquer suspeita. E isso diariamente, numa cidade pautada pela violência urbana em espiral crescente. Lembro-me de um avô, um senhor que conheci desde os remotos tempos de Marambaia, funcionário do extinto DNER, cuja sede localizava-se no En- troncamento, em Belém (PA). Sempre solícito, cordial, afável. De repente, durante um ataque de fúria, se armou com um formão e aplicou dezenas de golpes no neto, uma criança de cinco anos. Isso aconteceu em novembro de 1991. Fui vizinho daquela família. Ele era pai de uma amiga do bairro, a Edna, mãe do menino assassinado. Mesmo de folga, fui ao local do crime. Duas ce- nas guardo na memória até hoje: a mãe, debruçada numa cadeira, rodeada por pessoas amigas, e no mais profundo desespero; o avô, sentado no sofá, com as mãos ensanguentadas, cruzadas entre os joelhos, ombros arqueados, lívido, trêmulo, olhar vítreo, balbuciante. Um ser humano esfacelado. Na pequena casa em alvenaria, havia sangue da sala à cozinha. Ao lado da cama, no único quarto do imóvel, o corpo da criança jazia em pedaços. Aquele cenário suplantou em horror o que eu viveria em janeiro de 2002, durante o naufrágio do barco “Cidade de Óbitos I”, em que morreram sete pessoas num amanhecer chuvoso no rio Jari. Da mesma forma, precisei de um bom tempo As irmãs Trivial Cotidiano siamesas
  • 8. 14 Trivial Cotidiano E 15 stendido sobre o sofá alaska chenille marrom, Gumercindo acabara de ouvir antiga música do compositor cearense Belchior executa- da no Micro System sobreposto no hack cor de tabaco, portas em preto e puxadores pratas, reluzentes. Ainda sob o efeito dos últimos acordes, cantarolou em silêncio trecho de uma das músicas: “O que é que pode fazer o homem comum neste presente instante senão sangrar?/Tentar inaugurar/a vida comovida,/inteiramente livre e triunfante?” Naquele momento, sentiu saudades de Izaura. Fechou os olhos, reclinou a cabeça sobre a almofada e suspirou: “Ah, Izaura!!” A ausência da mulher amada, com quem divide “(...) dia e noite, sol e cama, cobertor, quarto e café”, tornara-se um tormento interior de proporções inimagináveis, principalmente nos fins de semana, quando mais sente falta da companheira, às voltas cuidando da mãe doente numa cidadezinha no interior do estado. “Minha sogra está mal”, resumiu, pesaroso, revolvendo-se sobre o sofá em busca dos controles remotos do som e da TV, perdidos entre páginas de jornais, capas de CDs e revistas esparramadas sobre a lajota. Desde a adolescência, Gumercindo inspira-se nas músicas de Belchior. Canções com letras enigmáticas, entremeadas com frases filosóficas e men- sagens esotéricas. Da safra de “Alucinação”, de 1976, “Ter ou não ter” é uma de suas preferidas: “Noite é vida e vida é jogo e jogo é sorte e a sorte é vária;/ coisa muito complicada: o amigo tem ou não tem./Quem não tem sucesso ou grana tem que ter sorte bastante,/para escapar salvo e são das balas de quem lhe quer bem.” A sala de visitas de Gumercindo e Izaura é do tipo modernosa, mas com leve toque retrô nas mesinhas cheias de fotografias, bibelôs, dois grandes vasos dispersos nos cantos, um imenso quadro pintado pelo artista plástico Wagner Ribeiro representando os antigos buritizais da Macapaba dos anos 1950, meados do Século XX. “Eu nem tinha nascido”, pensou Gumercindo, enquanto selecionava uma faixa de outro CD do excêntrico Belchior: “Cora- ção Selvagem”. Com as mãos cruzadas sob a nuca, grudou os olhos no forro lustroso de macacaúba e ficou esperando os primeiros acordes: “Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção/Esconda um beijo pra mim sob as dobras do blusão/Eu quero um gole de cerveja no seu copo no seu colo e nesse bar/ Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja/Não quero o que a cabeça Coração Trivial Cotidiano selvagem pensa eu quero o que a alma deseja/Arco-íris, anjo rebelde, eu quero o corpo tenho pressa de viver.” Foi nos anos 1970 que Gumercindo ouviu “Coração Selvagem” pela pri- meira vez. Ao passar em frente a uma loja de discos, na rua João Alfredo, anti - go centro comercial de Belém, repentinamente parou ao ouvir a voz roufenha do sobralense. As palavras e frases grudaram-lhe na mente, e não demorou para se flagrar repetindo “(...) Beijo.. Gole de cerveja... Bar... Pressa de viver”. É assim ainda hoje, mais de 35 anos após aquele encontro casual com a obra de Belchior. Claro, hoje longe da empolgação juvenil, contudo, com a mesma emoção. Sem Izaura, Gumercindo é um barco perdido num mar de tristeza. “Sem você comigo/a vida é castigo/tudo é solidão”, pensou, recitando em voz baixa e com os olhos lacrimejantes, a estrofe inicial da canção de Alceu Valença: “A solidão é fera, a solidão devora./É amiga das horas prima irmã do tempo,/E faz nossos relógios caminharem lentos,/Causando um descompasso no meu coração”. Novamente ressurgiu, vagando pelos neurônios: “(...) Beijo.. Gole de cerveja... Bar... Pressa de viver.” Não, não... Nem pensar!! A vida não pode ser feita de ilusão: — do con- trário, “pode[-se] até ficar maluco/ou morrer na solidão”. Isso é comigo, sim. E eu cumprimento o acaso com toda a ênfase patética. Faço questão de acenar para a vida com dois, três dedos, ou com a mão inteira. Depende do momento. É isso. Eis o que eu quero dizer: — quando alguém me pergunta — “Você é feliz?” — penso em Izaura e respondo: “Completamente!” Com essa profusão de pensamentos turvando-lhe o coração, Gumercindo sentou-se no sofá alaska chenille marrom, flexionou braços e pernas, exer- citou as mãos dormentes e ficou de pé sobre páginas de jornais, capas de CDs e revistas esparramadas. Ao olhar pela janela entreaberta, notou a tarde crepuscular. O dia aproximava-se, inexorável, da boca da noite. Dessa vez, aflorou na lembrança somente o “gole de cerveja” e outra canção povoou- -lhe o cérebro nervoso: “Naquela sombra vou armar a minha rede/E olhar os solitários viajantes/Beber, cantar e matar a minha sede/Lá longe, onde tudo é verdejante.” E saiu chispando rumo ao Bar Baré.
  • 9. 16 Trivial Cotidiano 17 Trivial Cotidiano e bela, com incontáveis bens e uma legião de amigos, que de repente perde tudo. No meu humilde entendimento, Jó é um exemplo universal de superação. Mesmo na pobreza extrema, e pranteando a morte dos filhos e filhas, manteve- -se fiel. “Nu saí do ventre de minha mãe, e nu tornarei para lá. YAHVEH deu, e YAHVEH tirou. Bendito seja o nome de YAHVEH.” O que sucedeu a Jó confirma uma certeza absoluta: a adversidade é inerente à vida. Ela nos empurra para um turbilhão de sentimentos controversos porque nunca estamos preparados para o sofrimento. Tendemos a acreditar numa supos - ta imunidade à dor. Ou seja, que “o inferno são os outros”. E se não fossem os outros, a vida seria mais fácil. Não é nada disso. Se não fossem os outros, não po - deríamos compartilhar nossas vitórias e nos faltaria um ombro amigo para buscar apoio e conselhos. Sem os outros, não teríamos nenhum motivo para trabalhar. Para que fazer algo de excepcional se não serve para nada? Grandes ou pequenos, os problemas estarão sempre presentes em nossas exis - tências. Independentemente de quão animado, inteligente ou contente estejamos no momento todos seremos confrontados com desafios e dificuldades. É como se fossemos postos à prova, para vermos de que fibra somos feitos, como é que conseguimos enfrentar algumas situações catastróficas e angustiantes. Claro, “(…) ninguém quer a morte/só saúde e sorte”. Porém, as boas ou más notícias independem de nossas vontades. Assim sendo, diante das tormentas da vida os pequenos homens desmoronam feito a casa construída sobre a areia: e “(…) desceu a chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos e bateram com ím - peto contra aquela casa, e ela caiu; e foi grande a sua ruína”. Por isso, penso que os grandes problemas são reservados aos homens extraordinários. E você, caro Humberto Moreira, está entre estes. S ou um madrugador contumaz desde a pré-adolescência. Naquela épo- ca, acordava cedo para atualizar os estudos. Mais tarde, no seminário, para orar, fazer o desjejum e seguir para o curso de Teologia. Depois, por necessidade madrugava para percorrer a pé a avenida Almirante Barroso, da Marambaia à Travessa Castelo Branco (São Braz), onde trafegava os ônibus da “Viação Rio Guamá”, única empresa de transporte urbano na Belém dos anos 1980 que fazia linha para o campus da Universidade Federal do Pará. Tempos difíceis aqueles. Continuo madrugando, por hábito e dever de ofício. Cedo passo a vista nos jornais, acompanho a programação das emissoras de rádio e TV e vasculho as redes sociais. Verdadeira maratona pela informação cotidiana. Busca incessante pela notícia. E foi numa dessas manhãs, ao acessar o Facebook, que me depa- rei com o desabafo do jornalista Humberto Moreira. Em questão de semanas, sucedeu-lhe uma espantosa sequência de infortúnios vivenciada por ele e seus familiares. Problemas graves de doenças e acidente gerando incertezas e temores. Como são misteriosos os desígnios de Deus! Em nossas vidas continuamen- te nos defrontamos com desafios, problemas, dificuldades, lutas, obstáculos que parecem grandes demais para serem vencidos. Quando nos deparamos com cir- cunstâncias desse tipo, a forma como reagimos vai fazer toda a diferença entre a vitória e o fracasso. Uns reagem com medo, recuam, não conseguem seguir em frente, ficam paralisados, não vislumbram saída e se entregam. Outros, olhando não para o tamanho do obstáculo, mas para o Deus Altíssimo, seguem em frente de forma confiante, e alcançam vitória em meio às adversidades. Meu caro Humberto Moreira, também passei por grandes tribulações em mi- nha vida. A morte de meu pai, quando eu tinha apenas 15 anos de idade, foi a maior de todas. “Num dia de tristeza me faltou o velho/(…) então fui crescendo, me criando sozinho./Aprendendo na rua, na escola e no lar./E falta lhe confesso que ainda hoje faz”. O significado da palavra adversidade é contrariedade, infor- túnio, infelicidade, tormento, amargura. Neste sentido, todos, de alguma forma, passam ou já passaram por momentos de vicissitudes. É verdade que às vezes dá vontade de desistir. Afinal, somos humanos dema- siado humanos. Mas o espelho da maravilhosa canção dos sambistas João Noguei - ra e Paulo César Pinheiro, que por muito tempo me levou às lágrimas, também faz refletir a história de um personagem bíblico de transcendental significância. Trata-se de Jó, um homem muito piedoso e bem-sucedido, com família saudável O desabafo do escriba
  • 10. 18 Trivial Cotidiano 19 Trivial Cotidiano O dom da caridade está disponível, mas, poucos conseguem alcançá- -lo. Falta à maioria desapego, o mesmo mal identificado por Jesus no jovem rico, cuja dúvida atroz o perseguia desde a meninice: Que farei para herdar a vida eterna? Livre-se da avareza, respondeu o Rabi de Na- zaré. Apesar do estrito cumprimento da lei mosaica, da religiosidade exacer- bada, do caráter irretocável, o jovem afeiçoara-se aos bens materiais e sentia neles prazer indescritível. Acostumara-se às subserviências e obsequiosidades advindas da condição de homem rico. É muito bom quando podemos ajudar alguém. Ou, mesmo sem condições, ainda assim ajudar. É o pouco, ou nada, fazendo milagre. Sim, o nada também pode ser convertido em tudo se existe pré-disposição à caridade. É o caso da viúva pobre que, somente com duas moedas – era tudo o que tinha -, promo- veu profunda transformação na própria vida ao doá-las às obras sociais da sinagoga. Aquele era o único dinheiro disponível, o recurso derradeiro para comprar pão, alguma comida barata, remédio para curar uma moléstia. No entanto, ela não titubeou em desfazer-se delas para algo infinitamente maior, mais abrangente, porque atenderia outras pessoas iguais, ou mesmo em pior situação. Posso até imaginar tudo o que aconteceu naquele dia em que Jesus, jun- tamente com os discípulos, encontrava-se sentado no templo. Chego quase a ouvir o tilintar de cada moeda que era colocada no gazofilácio por homens ricos, homens que se orgulhavam de poder colocar “tantas moedas”! A multi - dão entrava e saía mas os olhos do Mestre voltaram-se para uma pobre viúva que se encontrava junto a um destes treze gazofilácios em forma de trombeta que pendiam das paredes. Observando-a atentamente, Jesus percebeu que ela havia colocado, no re- ceptáculo, apenas duas moedas que representavam tudo que ela tinha. Ele viu naquela pobre mulher o que os outros, ao redor, jamais poderiam ver: o amor em doar e a confiança que Deus supriria todas a suas necessidades. Enquanto os outros davam do que sobrava, ela deu tudo que possuía. Atualmente, esse sentimento anda escasso. Também, motivos sobram para comportamento tão avaro. Os próprios miseráveis estão mais desonestos. Fin - gem indigência para arrancar dinheiro dos incautos. Eu mesmo já fui vítima dos trambiqueiros travestidos de mendigos que bateram à minha porta fingin- do abandono ou doença incurável para arrancar-me as “duas moedinhas”. E As duas moedas são golpistas de todas as idades, naturalidades e nacionalidades. As diferenças param nesse ponto. Todos usam a mesma estratégia: comover pela exposição da dor. Mesmo simulada. Chegam solícitos e cheios de mesuras. Às vezes, são tão convincentes que nos levam à relutância. Nessas ocasiões, o esmoler em mim aflora vigoroso, certamente resultado de minha formação judaico-cristã, herança das incursões coloniais dos jesuí- tas nos amálgamas amazônicos. Temo que aquele interlocutor mal-ajambrado, petrificado à minha frente, possa ser a encarnação do próprio Cristo que, sob disfarce de gente, esteja naquele local para medir o nível de minha caridade. Quanta sandice! Imagina se Cristo, que trabalha há dois mil anos sem tirar férias, perderia alguns milésimos medindo o tamanho da minha fé. Ele sabe: Homem de pouCA FÉ! Troveje repetidamente da nuvem mais alva e alta sem - pre quando ouve minhas respostas aos esmoleiros. Ele conhece as profundezas de minha alma. Invariavelmente, estou mais propenso à caridade. Num rompante franciscano, já cheguei a repassar R$ 20,00 para uma pedinte useira e vezeira das grades do portão de minha casa. Fui censurado por familiares, amigos e até “inimigos”. Está endinheirado! Comentaram, em tom de pilhéria. Um otário! Fustigou certo malquerente. A verdade é que a mulher pegou a nota e chispou sem sequer murmurar um muito obrigado! Ou um Deus lhe pague! Nada! Desapareceu na esquina do Hemoap, mergulhando nas profundezas do cruzamento da rua Jovino Dinoá com a avenida Ernestino Borges. Estes comentários foram sobremodo desagradáveis. Não estava endinhei- rado (como não estou), tampouco fui um néscio. Algo invisível conduziu minha mão ao bolso onde encontrava-se a única nota que eu tinha naquele momento. E eu pensei que estava doando R$ 2,00. Quando todos perceberam o “engano”, ocorreu um estupor generalizante. Despertei com os olhos arre- galados da mulher sobre as vinte pratas. No mesmo instante, a voz rouquenha do maledicente retumbou nos meus ouvidos: Um otário! E fui invadido por um maremoto de dúvidas. Mas, logo percebi o efeito das “duas moedinhas” e lembrei-me do professor Ezequiel José de Freitas dedo em riste atrás do púlpito, um grande sorriso sob olhos fulgurantes, a sentenciar peremptório: A dúvida é o princípio da fé! “Porque todos aqueles deitaram para as ofertas de Deus do que lhes sobeja; mas esta, da sua pobreza, deitou todo o sustento que tinha”. Realmente, Deus escreve certo por linhas tortas.
  • 11. 20 21 F oi uma tarde de fortes emoções. Mostrou para o mundo a vastidão de sua cultura jurídica. “Sou um astro!!!”, festejou, ufanado de si. Finalmente (oh, glória!!), garantira seu espaço no panteão da História. Por isso, ao acordar naquela ensolarada manhã, no majestoso quarto de sua mansão de magistrado, con - versou com o próprio Deus, de igual para igual: “Graças te dou porque não sou como os demais homens: roubadores, injustos, adúlteros; tampouco sou como este publica - no (e pensou em Joaquim Barbosa). Jejuo duas vezes na semana, e dou o dízimo de tudo quanto ganho.” Após reconfortante banho, vestiu o roupão cotelê marfim, espargiu a rala cabelei - ra ariana, untou os sovacos, perfumou-se e desceu as escadarias, cantarolando uma ária. “Que dia maravilhoso!”, pensou ao aproximar-se da enorme mesa de carvalho, luxuosamente posta para o lauto desjejum. Às vésperas de completar 70 anos, sentia - -se portentoso César em sua magnificência romana. Com requinte, derramou o suco de laranja no copo de cristal e olhou em volta, admirando as obras de arte simetrica - mente expostas, as esculturas, os móveis italianos, o tapete persa, os vasos chineses da Dinastia Shang. Com seu terno escuro e luvas brancas, o mordomo aproximou-se discreto trans - portando uma cesta em vime recoberta com pedras preciosas contendo revistas e jornais. — Suas revistas e jornais do dia, excelência — disse o serviçal. — Todos falam sobre o senhor. Ele sorriu imperceptível, balançando o copo com suco de um lado a outro, fi - xando o olhar nas capas dos periódicos sem se deter nas principais manchetes. “Cer - tamente, enaltecem meu extraordinário saber jurídico!”, deduziu, exagerando nos trejeitos caricaturais. Aleatoriamente, escolheu um dos periódicos para folhear. Uma enorme sensação de dever cumprido inundou-lhe a alma. “Ora, o povo – essa ralé – queria a condena - ção daquelas autoridades! Mas, sinceramente aqueles sujeitos não merecem mofar na cadeia. São homens dignos que, por excesso de zelo, cometeram pequenos deslizes. Fiz bem em propiciar-lhes os embargos infringentes!”, raciocinou enquanto desdo - brava o exemplar de O Globo. Mas, logo contraiu a mandíbula e arqueou o sobrolho ao ler a manchete em letras garrafais na primeira página do jornal: “A justiça tarda: STF mantém impunidade de mensaleiros até 2014”. — Não é possível!! — pensou o ministro — folheando a publicação aos safanões. Em seguida, sob o olhar impassível do mordomo em pé, às proximidades, sentiu como O castigo do Trivial Cotidiano magistrado Trivial Cotidiano se um tornado o devastasse por dentro ao ler a manchete do Correio Braziliense: “Aos ven cedores, a pizza”. Percebeu repentina vertigem a turvar-lhe os pensamentos. “Meu Deus, estão conspurcando meu magnífico trabalho!”, externou queixoso, com o braço direito cur vado para cima e a mão fechada em punho. — Ah! – interrompeu o mordomo. – O senhor esta se sentindo bem?! Precisa de algo, senhor?! Alheio às perguntas e com os olhos esbugalhados, amassou os jornais, transformando as folhas em bolas de papel e as atirando para longe aos pontapés. Depois, voltou a sacolejar os braços em atos contínuos próprios de quem perdera o controle emocional. Os tremores aumentaram, calafrios, sensação de desespero, dificuldade em respirar, palpitações, náuse as, tontura, dor aguda no peito. Cambaleante, dobrou os joelhos e tombou nos braços do mordomo. Naquele mesmo instante, a alma do magistrado chega na porta do céu e é recebida pelo anjo recepcionista. — Quem é o senhor? — perguntou o ser celestial — alisando uma pequena ficha de inscrição. “Ora, quanta petulância!! Este lambaio divino não sabe quem eu sou?!”, resmungou o ministro e vociferou, bem zangado: — Você me ofende ao desconhecer minha importância — disse a excelência. — Mi - nha vasta sabedoria resplandece. As pessoas me ouvem em obsequioso silêncio. No Brasil, meu poder incomensurável mudou o destino de milhões. Provei que Justiça, de fato, não é feita para pobres ou prostitutas. Portanto, me trate com respeito e me deixe entrar! Nisso, uma voz cavernosa ecoa de um tenebroso portal, de onde surge um ser alado envolto em enxofre. — Você é o Celso de Mello? — Sim, sou eu! Por que?! — perguntou o magistrado — arrumando os óculos sobre o nariz semi adunco para melhor visualizar o interlocutor. — Eu sou Lúcifer — disse o ex-querubim. — Quero te fazer uma proposta irrecusável. Celso de Mello aperta os olhinhos e pergunta a meio-tom: — O que queres? Sem salamaleques ou rapapés protocolares, o Capeta o abraça: — Aê, Celsão!! Eu vi o que tu fez pelos caras. Pô, livrou meus camaradas do PT de uma tremenda cana dura!! Tu é muito bom de papo, mermão! Agora, tu é meu advogado e vai me tirar desse buraco quente onde tô há milhares de anos. — Mas, como?! — reagiu o ex-ministro. — É simples: tu chega junto ao Senhor e apresenta um desses teus embargos infrin gentes a meu favor. — Jamais farei isso!!! — retrucou Celso de Mello. — Ah, é?! — bramiu Satanás. — Então, vou te jogar no meio dos sodomitas!! — POR FAVOR, NÃÃÃÕO!!! ISSO NÃOOOOOOoooooooooooo!!!!
  • 12. 22 Trivial Cotidiano 23 Trivial Cotidiano T empos atrás, durante conversa em balcão de bar sobre os encon- tros e desencontros do casamento, um amigo sessentão segredou- -me estar muito preocupado com o comportamento da esposa dele. Como havia mudado?! Desabafou, desolado e inquieto. Antes questionadora, desconfiada, rixosa; agora, cordata, simplória, pacífica. Que transformação!! Uma outra mulher. Ele me pareceu realmente assombrado com a abrupta me- tamorfose da cônjuge. Observei-o de soslaio e percebi no olhar do meu interlocutor a sombra devastadora da dúvida. Um turbilhão de sentimentos a convulsionar-lhe a alma. “O que dizer para este sujeito?”, questionei-me enquanto vasculhava na memória algumas palavras adequadas ao momento inquietante, para ele, que confidenciara-me um segredo de alcova, e para mim, que encontrava-me naquele local apenas para degustar minha bebida, ouvir uma boa música, jogar conversa fora e torcer pelo Mengão. O encontro começou descontraído, em meio a chistes e anedotas, mas, ter- minou descambando para o aspecto surrealista do casamento. Esse ângulo nada engraçado das relações homem-mulher: o do desgaste, do desinteresse e do distanciamento. É quando o fim deixa de ser ectoplasmático e aos poucos materializa-se nas contínuas discordâncias. Enfim, muitas são as causas dessa avalanche de más sensações. Porém, só um é o resultado: o rompimento inva - riavelmente traumático. Às vezes, imperceptível porque bem dissimulado. No entanto, sempre traumático. Naquele momento, embora esforçando-se para disfarçar, o amigo de bal- cão vivenciava um grande drama conjugal, e certamente sem que tenha per- cebido, inspirado em outro grande drama, este ficcional vivido pelo mouro Otelo, personagem universal de conhecida obra shakespeariana. “O que dizer para este sujeito?”, pensei novamente em busca de uma resposta razoavelmen - te interessante. Queria ajudá-lo sem maior envolvimento. “Talvez não tenha ocorrido nenhuma mudança. Quem sabe ela sempre foi essa mulher maravi- lhosa e só agora você a percebeu!”, comentei em tom filosófico, mais para contemporizar e esfriar o assunto. Contudo, o amigo estava disposto a desabafar. Confidenciou-me que as mudanças na cara-metade foram percebidas após ela descobrir o caso extra- conjugal dele com uma bela estudante do Colégio Amapaense, mantido às custas de presentes caros e volumosas quantias semanalmente depositadas na A vingança da mulher traída conta bancária da amante. “Eu me apaixonei!”, falou-me, desesperado. “Que loucura, parceiro!!” – comentei. “E como tua mulher descobriu?”, quis saber. “Ora, ela me viu com a pequena!”, e bateu sobre o balcão com a mão espal- mada. Deslize imperdoável, sem dúvida. Mas, que reação estranha!! Uma mulher traída é um vulcão em erupção. Capaz de loucuras inenarráveis e disposta a vinganças indescritíveis. A do amigo namorador, em vez dessas reações convencionais, preferiu a conversão em dona de casa extremada. Em vez de “devolver o chifre na mesma medida”, voltou-se para o lar, redobrando o zelo pelo bem-estar do marido amado, preparando comidinhas e bebidinhas espe- ciais, esmerando-se na cama, fazendo com ele coisas que até Deus duvida. E ele gostando, querendo mais, esbaldando-se. “E isso não é bom?!”, questionei. “É, sim!” – respondeu-me. “Claro que é. Mas, não sei. Ela está mais vaidosa, voltou a frequentar a academia. Perdeu uns quilos, melhorou a aparência. Mudou o guarda-roupa!”. Mudanças im- pressionantes, e sobremodo reveladoras. À primeira vista, a mulher parecia disposta a reconquistar o espaço invadido pela rival mais nova. Então, deci- dira lutar pelo amor quase perdido utilizando as mesmas armas. Fazendo-se sedutora, amante irresistível, desejada. Mostrando ao marido infiel que ela, aos quarenta e tantos, ainda conseguia fazer um homem gemer sem sentir dor. Realmente, a preocupação dele procedia. Para uma mulher antes “questio- nadora, desconfiada, rixosa” aceitar tamanha traição sem descer do salto pa- recia impensável. Surrar a amante ou cortar o pênis do marido traidor seriam reações insanas, é verdade, mas plenamente compreensíveis e até aceitáveis pela sociedade. Mas em vez de atos extremos, ela preferiu vingar-se à moda Agatha Christie. Revelando surpreendente talento para a gastronomia, a mulher ampliou as opções do cardápio doméstico incluindo rabada, sopa de mocotó, carne de peito para assado de panela, maniçoba, vatapá, torresmo, churrasco, pi- zzas, hambúrgueres, refrigerantes e muita, mas muita cerveja. Todo um menu exclusivo para o maridinho. E ele temendo contrariá-la, comia mesmo sem vontade. Em 32 semanas, saltou de 72 para 124 quilos. Quatro meses depois, pesava espantosos 142 quilos. Embora com tanta gordura nas coronárias, não recusou convite da esposa para “umazinha” de leve após degustar suculenta rabada. Morreu fulminado por um ataque cardíaco durante o ato sexual. O assassinato perfeito.
  • 13. 24 H 25 á três décadas, venho tentando driblar as decepções. E não tem sido fácil. Embora consciente da complexa natureza humana, resiste a esperança na amizade. Desde a adolescência, nunca acreditei no amor apenas como expressão individual de bem-querer. Para mim, o amor é um conjunto universal de sentimentos indissolúveis, cuja existência é intrin- secamente coletiva. Não sobrevivem isolados. Esta compreensão, no entan- to, não nos protege dos equívocos resultantes de nossas escolhas enviesadas. Simples: somos humanos, demasiado humanos. Compreender esta verdade em nós, e, principalmente nos outros, é o primeiro passo para minimizar os impactos causados pelas decepções. Quem se decepciona em demasia, é porque espera muito das pessoas. Ou, exige demais de quem só pode dar menos. Eu nunca esperei muito – nem pouco. Aliás, não esperei (nem espero) nada. Ainda assim, não estou comple - tamente imune às desilusões. Tenho preferências, externo opiniões, defendo opões político-ideológicas, manifesto crenças religiosas (ou, a ausência de- las). E isso agrada ou desagrada os ouvintes, gerando demonstrações de apre- ço ou repulsa. Procuro estar preparado para ambas, sem maior envolvimento. A primeira, provoca contentamento; a segunda, indiferença. Nunca, rancor ou mágoa. Recentemente, li no Facebook um texto do amigo jornalista Euclides Mo- raes. Combinava positivismo exacerbado, próprio dos otimistas contumazes, e pessimismo conceitual, involuntariamente pinçado da filosofia pessimista e irracionalista de Arthur Schopenhauer, cuja origem, segundo o filósofo brasi - leiro Olavo de Carvalho, é deduzida dos postulados de Immanuel Kant. Oti- mismo expresso no “(...) Um bom dia para começar tudo de novo. Reavaliar projetos abandonados”. Subentende-se, nos contextos das frases, profundo desejo de mudança a partir de projetos inconclusos ou mesmo nascituros. Euclides Moraes quer mudar. Anseia por mudanças significativas. Contu- do, para promover essas transformações na própria vida precisa, antes de qual - quer decisão pessoal, “(...) Dimensionar os estragos dos equívocos. E, prin- cipalmente, ser mais seletivo e cuidadoso com a escolha das pessoas (…)”. Às vezes, os equívocos provocam estragos irremediáveis. Deixam marcas indeléveis. Disso, surgem das profundezas da alma decepções em profusão. Nessas circunstâncias, a relação com o “irremediável e indelével” deve ser de Benditas enfrentamento constante para que jamais suplantem a esperança na amizade. Trivial Cotidiano decepções Trivial Cotidiano Foi decepcionando-me que percebi a loucura em “querer agradar a todos”. É impossível. Então, fiz o inverso. Passei a agradar-me. Conhecendo-me, re- duzi sobremodo os impactos das decepções. Alcancei esse conhecimento in- tensificando o convívio pessoal, nas diferentes esferas sociais, com pessoas de níveis opostos. Nunca querendo ser igual a elas. Mas, tão somente aprendendo com suas virtudes e vícios. Compreendendo-lhes as limitações e deficiências a partir do entendimento de minhas próprias limitações e deficiências. Quando o Euclides Moraes descortina o desejo em “(...) Dimensionar os estragos dos equívocos (…)” está dizendo, simplesmente, que aprendeu ines- timável lição de vida. Em resumo: vai demorar para cometer os mesmos erros. Talvez, até volte a cometê-los. Mas, não com a mesma intensidade. Tampou - co, desintencional. Certamente, sucumbirá a outros equívocos. Incorrerá em outros erros. E daí? Humano, demasiado humano. Ao final, estará mais re- sistente às decepções porque, intensificando o convívio social, terá aprendido que somos todos passíveis dos equívocos mais comezinhos. Quanto a “(...) ser mais seletivo e cuidadoso com a escolha das pesso- as (...)” é um processo inerente às relações interpessoais que exige elevado conhecimento da natureza humana. Isso demanda tempo e qualidades indis- pensáveis como perspicácia e paciência monástica. E outras, naturais ou ad- quiridas por meio de estudos permanentes, e observações acuradas do cotidia - no. Nesse aspecto, ninguém está imune. Toma-se como exemplos Caio Júlio César e Jesus Cristo. Ambos vítimas da traição cometida por amigos íntimos. No caso de César, o traidor foi seu filho adotivo, Marcus Junius Brutus; no de Jesus, o apóstolo chamado Judas Iscariotes. Quão amargas foram as decepções desses dois homens. Infelizmente, não sobreviveram a elas “(...) para reavaliar projetos abandonados, dimensionar os estragos dos equívocos e começar tudo de novo”. Por isso, parei de “(...) ser mais seletivo e cuidadoso com a escolha das pessoas (...)” com as quais devo me relacionar. Primeiro, porque o mal é inerente e, por mais que tente me proteger, estarei sempre suscetível a ele. É o humano, demasiado humano. Segundo, “selecionar e escolher” me parece muito “charlesdarwiniano”. Algo como almejar a amizade perfeita. Repito: é impossível. Assim, diante das im- previsibilidades do convívio social, recomendo atenção redobrada. Afinal, “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém” não é, mesmo?!
  • 14. 26 Trivial Cotidiano 27 Trivial Cotidiano A cordou sobressaltado na quinta-feira, tateando sobre o criado-mudo em busca do relógio de pulso. “Já estou atrasado!”, pensou. Na pressa, esbarrou no copo com água às proximidades do abajur, a vasilha rolou de encontro à parede, bateu no rodapé e se espatifou na lajota. Cacos de vidro tomaram conta de parte do aposento. A mulher ao lado res- mungou alguns impropérios, condenou o desastrado, virou de costas e voltou a ressonar. “E agora?!”, apalpou em volta, sobre o pequeno tapete, para en- contrar o par de sandálias havaianas, mas (tremenda maçada!), recordou que o deixara no outro lado da cama. Lembrou da lanterninha do celular. “Cadê o celular?!” Vasculhou por entre revistas e páginas de jornais, remexeu a bolsa de trabalho escorada na sapatei - ra – e nada! Então, encontrou o caderno de anotações e sobre ele o aparelho todo molhado. Praguejou em silêncio. Logo, se arrependeu. Estava amanhe- cendo. Os pássaros celebravam o novo dia. Era preciso levantar. O quarto na penumbra e os cacos de vidro no entorno da cama poderiam provocar algum acidente. Por isso, lentamente virou de bruços e ficou de quatro sobre o colchão. Primeiro, passou braço e perna direita sobre a mulher, que dormia à sono solto. A muito custo, fazendo um tremendo esforço para não acordá-la, con- seguiu apoiar o pé sobre algo macio esquecido no piso, provavelmente uma peça íntima. Com a respiração presa, impulsionou o corpanzil para levantar a perna esquerda e finalmente alcançar o banheiro. Ao soltar o peso, a calcinha deslizou e ele desabou sobre a cara-metade. Um uivo ecoou pelo quarto. Repentinamente sufocada sob 93 quilos, a mulher esbravejou e aplicou três sopapos no marido desajeitado. Ele grunhiu arremedos de desculpas, mas, não convenceu; e ao vê-la segurando um frasco com perfume entrou correndo no banheiro, bateu a porta. Quase era atingido na cabeça. Repetiu “foi sem querer” sete vezes. Inútil. O estrago já estava fei - to. Pegou um velho exemplar da revista “Minha Novela”, abaixou o assento da privada e acomodou o enorme traseiro. Dez minutos depois, ao olhar em volta, a maior das tragédias: faltava papel higiênico. Primeiro, com a voz melosa: “Amooorrr, traz o papel higiênico!” Aguardou a resposta. Nada. “Amorzinho, deixa disso e traz o papel!”, repetiu. Nem rumor. Já desesperado: “Porra, mulher! Traz o papel!” Pior. Olhou a re - vista, examinou uma página. Não. Papel couchê. Muito liso. “Não tem jeito!”. Acorda, Gumercindo! Foi para o chuveiro, moveu a torneira e esperou o jato reconfortante. Fim da picada. A caixa d’água estava vazia. “Não é possível! É um complô contra mim! Só pode ser!” Abriu lentamente a porta do banheiro, as luzes do quarto acesas, edredons amarfanhados sobre a cama, TV ligada, a jornalista Tatiana Guedes apresen- tando o “Bom Dia Amazônia”. Nem sinal da mulher. “Porra, e agora?!”, ex- travasou a revolta. Pé ante pé alcançou a porta do corredor. “Alguém aí pode ligar a caixa d’água?!”, gritou a plenos pulmões. Ouviu murmúrios para além da sala. “O que está acontecendo?!” O burburinho aumentava. Volveu a cabe - ça para a esquerda, aprumou a orelha direita e ouviu: “Foi ele!”, disse alguém. Uma voz conhecida. “Foi ele, sim!”, repetiu outro. Era o vizinho. “Que con- fusão é essa?!”, indagou em voz baixa. Completamente pelado e melado, decidiu aproximar-se na ponta dos pés para melhor entender a algazarra. “É dele, sim!”, era a voz da esposa, eufórica. “Meu Deus, não é possível!”, gritou ela. Atônito diante do estranho aconte- cido, começou a se interrogar: “O que eu fiz ontem à noite?!”, revirou a me- mória embaçada pelas cervejas ingeridas durante o jogo do Flamengo. “Será que importunei demais o vizinho botafoguense?! Não lembro!!”, conjeturava escorado na parede do corredor, já próximo à cozinha. De repente, ouviu passos casa à dentro, deu meia-volta e caminhou apres- sado para o quarto. Os murmúrios se tornavam mais audíveis. “Gente, ele está aí dentro!”, disse a mulher. “É, vamos lá pessoal!”, completou o vizinho. Descontrolado, botou a mão esquerda sobre as nádegas e avançou célere em direção à maçaneta. Primeiro, segundo, terceiro movimentos. Ficou nervoso. “O que houve?!” Mais três movimentos. O trinco não funcionava. “Virgem de Nazaré!! Emperrou!!” Arrastar de sandálias, rumorejo, respirações ofegantes, farfalhar de roupas, sacolejo de braços. Sete pessoas enfileiradas. A mulher à frente. Ele, com a bunda grudada na porta, as duas mãos sobrepostas em conchas sob o avantaja - do abdômen, suando às bicas, encurralado no próprio corredor. Com os olhos esbugalhados e as mãos na cintura, ela disparou: “GUMERCIIIIINDO!!”. Foi a gota d’água. Fragilizado por tantas desventuras matinais, caiu de joelhos: “Eu só queria um rolo de papel de higiênico!”, choramingou. Então, a plateia entreolha-se e a patroa esclarece: “Calma, amoreco! Não é nada disso! Achei teu jogo da mega sena ao lado da TV, fui conferir e tu acertou as seis dezenas. ESTAMOS RIIIICOOSS!!!”. Emocionado, Gumercindo começou a rolar so- bre as próprias fezes. Acordou embaixo do edredom, sufocado pelos puns da mulher amada. Era só um sonho.
  • 15. 28 29 atividade, disseminando a cizânia, inoculando a peçonha na veia dos incautos, di - fundindo a perfídia para promover inimizades. Raramente - ou nunca - manifestam gratidão, sequer reconhecem o bem recebido. Pior: ignoram a dádiva da reciproci - dade. Gosto muito da cena de abertura do magnífico filme O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. É um retrato primoroso da reciprocidade em ação. É o dia do casamento da filha de Don Vitor Corleone. Bonasera, imigrante italiano, um agente funerário, vem lhe pedir um favor - ele quer vingar uma agressão e tentativa de estu pro contra sua filha, que foi espancada pelo namorado e um outro jovem. Bonasera descreve o assalto, a prisão e o julgamento dos dois rapazes. O juiz deixa-os sair livres naquele mesmo dia. Bonasera fica furioso, sente-se humilhado, chora, e vem a Don Corleone pedir que a justiça seja feita. Corleone pergunta o que exatamente ele quer. Bonasera sussurra algo em seu ouvido, que podemos deduzir que é “Mate -os.” Corleone se recusa, e lembra que Bonasera não foi um grande amigo até aquele momento. Bonasera admite que tinha medo de arranjar “problemas”. O diálogo prossegue: Corleone - Eu entendo. Você encontrou o paraíso na América; tem um bom comércio, fez uma boa vida. A polícia protegia você e havia tribunais de justiça. E você não precisava de um amigo como eu. Mas agora você vem a mim e diz: ‘Don Corleone, dá-me justiça’. Mas você não pede com respeito. Você não oferece ami - zade. Nunca me convidou para um cafezinho. Nem pensa em me chamar de “Padri nho”. Em vez disso, você entra em minha casa, no dia do casamento de minha filha, e me pede que mate por dinheiro. A cena é extraordinária. Intuitivamente, entendemos porque Bonasera quer os rapazes mortos, e porque Corleone se recusa a fazê-lo. Trememos diante da tentati va canhestra de Bonasera em oferecer dinheiro, quando o que está faltando é ami - zade entre ambos. Entendemos que, ao aceitar um “presente” de um chefe da máfia, uma corrente de aço - não apenas um cordão - prenderá Bonasera àquela relação. Mas, é assim a dádiva da reciprocidade. Deve-se pagar um favor com outro favor porque isso proporciona satisfação, resultando em fortalecimento das ami - zades. Como alguém pode dizer que é meu amigo, se nunca me convidou para um cafezinho? Trivial Cotidiano Trivial Cotidiano Q uisera soubesse porque algumas pessoas nunca estão plenamente satis - feitas. Mesmo no avançar dos anos, quando a esperança mitiga e resta somente a proximdiade do fim inexorável, a insatisfação permeia pa - lavras e ações, revolvendo antigas lembranças. Ainda que o momento mostre-se mais condescendente e alvissareiro, as reclamações evidenciam-se em gemidos e imprecações silenciosas. Em olhares ausentes. Muxoxos imprevisíveis. Inquieta - ções mentais. Refiro-me à insatisfação crônica, ocasionada pela malquerença e desconfiança intrínsecas aos espíritos atormentados. Àqueles, identificados por Francisco Octa - viano como “espectros de homem”, que “passam pela vida em brancas nuvens”. No último capítulo de Eclesiastes, livro atribuído ao rei Salomão, encontra-se uma das mais belas admoestações especialmente reservadas aos jovens. Cameça com uma advertência basilar: “Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias e cheguem os anos em que dirás: ‘não tenho neles prazer’”. A juventude é extremamente efêmera. Ainda no útero, ela começa a desvanecer, processo inalterado após o nascimento. Contudo, “(...) antes que o pó volte para a terra como era, e o espírito volte para Deus que o deu” (“Do pó da terra formou YAHVEH ao homem, e soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida; e o homem tornou-se alma vivente”. Gên. 2-7), é possível conduzir-se sem grandes sobressaltos. Não podemos esquecer que esta vida é única, em todos os sentidos. Nunca te - remos outra igual. Em nenhum outro tempo ou dimensão. Jamais viveremos expe - riências idênticas, tampouco voltaremos a usufruir da companhia dos bons amigos presentes, nem amaremos as mesmas pessoas que amamos hoje. O tudo é agora. Ou, o agora é tudo que temos. Então, se este tesouro tem prazo de validade, por que desperdiçá-lo em futilidades? Nos últimos anos, tenho perdido bons amigos. E isso me faz pensar mais e mais na finitude da vida. Na temporalidade do ser. Eram boas pessoas. Repletas de planos e esperanças. E embora tenha convivido com elas por breve tempo, deixaram mar - cas indeléveis. Assim é com todos, independente se o desígnio foi ou não cumprido. A verdade é que após morrermos ninguém viverá por nós a vida que vivíamos. Nem realizará nossos planos, também não terá as mesmas esperanças. Somos únicos e terrivelmente solitários por isso. Apesar desta verdade inquestionável, resistem os insatisfeitos e rancorosos, nascidos da amargura e refogados longamente em caldo de ódio. Estão em plena Aceita um cafezinho?
  • 16. 30 Trivial Cotidiano 31 Trivial Cotidiano N ós, paraenses, temos um jeito muito especial de nos relacionarmos com Nossa Senhora de Nazaré. A chamamos de “Nazica”. Somente nós temos tamanha intimidade. Para muitos, um tratamento estranhável, mas, nunca desrespeitoso. Na verdade, expressa todo o bem-querer dos filhos que chegam de to - das as partes para homenagear a Mãe querida. Cair aos seus pés, pedir-lhe a bênção, reclinar a cabeça sobre seu colo, reverenciá-la, ouvir-lhes os conselhos e admoesta - ções, ter os cabelos afagados por mãos abençoadas que nunca cansam de perdoar. Por meio desse tratamento especial, os paraenses, sejam eles católicos ou não, reencontram o caminho da religiosidade nas diversas manifesta- ções de fé externadas nos dias que antecedem a grande festa em homena- gem à Santa. Passando pelos rituais de preparação do almoço do Círio e cul- minando com a participação nas cerimônias sacras pelas principais ruas de Belém, numa procissão que reúne, no mesmo propósito, milhares de pessoas. A fé em “Nazica” ultrapassa o limite do compreensível. Vai além das teses me - ramente academicistas, dos conceitos pseudo religiosos, das explicações am - paradas em argumentos racionais. Ela está arraigada no coração dos humil- des, na certeza dos desvalidos, no clamor dos esquecidos e desesperados. É sentimento próprio de quem mantém estreito relacionamento com o sagrado. Tecnicamente, o vocábulo “Nazica” teve origem na etimologia popular, também conhecida como pseudo etimologia ou ainda paretimologia. Não consta em ne - nhum dicionário; nem mesmo no “Dicionário Papa-Chibé”, de autoria do jornalista Raymundo Mário Sobral. Ou seja, fora dos limites de Belém não existe como ex - pressão de domínio nacional. Trata-se de uma corruptela tipicamente belemense. Assim como “Nazica” representa, no entendimento do romeiro de maior ou menor lustre intelectual, profunda intimidade com Nossa Senhora de Nazaré, a palavra Círio alcança igual significado no vernáculo pátrio quando etimologicamente interpretada. Círio quer dizer “vela grande de cera”, ou seja, a luz no alpendre da casa que ilumina a todos. A luz é “Nazica” e o Círio é a procissão reunindo milhares de peregrinos em lento cortejo de quatro horas entre a Catedral Metropolitana e a Basílica de Nazaré. Éoápicedasmanifestaçõesqueacontecemdurantequinzedias.Nesseperíodo,vive-se um clima de confraternização e alegria que não chega a ser superado pela tradicional festa natalina. Por isso, o belemense também chama o Círio de Nazaré de o “Natal dos paraenses”, a maior festa religiosa do ano. Eis o profundo significado antropológico de “Nazica”, o congraçamento pela fé como princípio básico da confraternização cristã. Só esse entendimento é capaz de juntar na mesma mesa profano e religioso. Sua bênção, Nazica! Eu vivo esse clima intensamente desde minha infância. Testemunhei pagadores de pro messas percorrendo de joelhos os quase cinco quilômetros entre Catedral e Basílica. Acompanhei assombrado mulheres grávidas transportando na cabeça pequenas casas, rochas enormes, cruzes de madeira, berços ou mesmo camas. Observei aturdido homens emboladosunssobreoutrosnacordaaoredordaBerlindaemsuplícioquaseinsuportável. Econfesso:“(…)nunca[emminhavida]vitantafé,nemmesmoentreopovodeIsrael.” E mesmo no exercício profissional, minha natureza judaico-cristã se sobressaia em meio à multidão e invariavelmente seguia embalado pelos cânticos religiosos rumo à Berlinda. Queria vê-la a qualquer custo, mesmo submetido às cotoveladas dos demais fiéis e aos safanões dos guardas da Santa e dos policiais militares. Saía da redação repórter e voltava romeiro com fitinhas atadas no braço esquerdo, leques de papelão com imagens de “Nazica”, além de outros souvenir’s que fazia ques - tão de dividir com os demais irmãos e irmãs, também filhos e filhas de “Nazica”. Tentei acompanhar o Círio de Nazaré com um olhar estritamente profis- sional, sob a ótica do repórter setorizado, com pauta pré-elaborada, horá- rio a cumprir e preocupação com o “fechamento” (encerramento) da edi- ção do jornal que, em dias especiais como esses, é antecipada em agumas horas. Um olhar forjado na práxis jornalística sempre em busca do inusitado. Lamentoreconhecer:nãoconsegui.Comomanter-meisentodiantede“Nazica”?Ante aquelecontagianteespetáculodefé?Impossível.Aovê-laimponente,naBerlinda,apro ximando-sedaPraçaSantuário,algumasvezes,impelidopelaemoção,tambémtombei de joelhos no asfalto quente, baixei a cabeça, estendi a mão direita para o alto e clamei: - Sua bênção, Nazica!
  • 17. 32 Trivial Cotidiano 33 Trivial Cotidiano U ma das experiências mais estranhas vividas por mim aconteceu na noite de 23 para 24 de agosto de 1985. Dois dias antes, fora convidado para participar das celebrações a Oxumaré, o orixá da riqueza cultuado pe - los umbandistas. O convite fora formulado pela esposa do meu vizinho da esquer - da, uma senhora bem-apanhada, de bochechas rosadas e sobremodo prestativa. Cativava à primeira vista pelo sorriso largo e franco no rosto afilado e tratado com zelo extremo. Seria uma cerimônia magnífica, garantiu-me ela, com cânticos, danças, comidas e bebidas à vontade. Na época, eu morava na Cidade Nova 6 numa casa bem localizada, com ponto comercial, sala, dois quartos, cozinha, banheiro interno e uma boa área externa recém-adquirida pela bagatela de 800 mil cruzeiros. Foi a minha primeira casa própria. Meu vizinho da esquerda, um aposentado boa-praça, passava o tempo ouvindo rádio, lendo jornal e, principalmente, proseando. Torcedor fanático do Paysandu, gostava de falar sobre o futebol paraense do passado, nominava os jogadores que haviam vestido a camisa alviceleste, discorria sobre os jogos dispu - tados e relacionava as conquistas do clube preferido. Naturalmente, fizemos uma boa amizade. Meu novo amigo era benquisto na redondeza, mas a mulher dele o suplantava em benquerença pelos demais mora - dores porque, além da profissão de enfermeira, era reconhecida filha-de-santo do Centro Espírita de Umbanda Pai Bianor. E foi durante um dos muitos bate-papos crepusculares, numa ensolarada semana de agosto, que recebi o convite formulado pela vizinha bem-apessoada. Não hesitei. Na noite de sexta-feira, 23 de agosto de 1985, lá estava eu e mais seis pessoas seguindo o casal em direção ao “Terreiro do Pai Bianor” devidamente orientados pela sacerdotisa sobre rituais e cuidados que deveríamos ter enquanto estivés - semos em solo sagrado. Passava das 23 horas quando avistei vários automóveis estacionados no entorno do imóvel em alvenaria, e entre eles uma multidão ca - minhava em êxtase. Homens, mulheres e crianças cantavam e saracoteavam com desenvoltura. Outros, mais exaltados, rodopiavam sem parar. Recepcionados pelo próprio babalorixá, que ministrou uma sequência de “pas - ses para afastar os maus fluídos”, seguimos perfilados para o interior da nave em penumbra onde outros filhos e filhas-de-santo indicavam os bancos da esquerda aos homens e os da direita às mulheres. Como pretendia passar despercebido, escolhi um assento nas últimas fileiras, porém, bem posicionado para melhor ob - O Dia de Oxumaré servar os rituais. Uma das filhas-de-santo nos avisou que naquela noite sete de nós seriam escolhidos para compor o staff do homenageado. Realmente, a magnificência da cerimônia impressionava. O cenário no todo era intimidante. Tornou-se mais intenso antes da meia-noite e depois, com a pre - sença do principal personagem, o orixá Oxumaré todo ornamentado em vermelho, posicionado na frente do gongá, sacolejando capa e tridente. Mais assombroso ainda foi quando ele veio na minha direção com o dedo em riste e bradou: “Você!” Rapidamente se virou e apontou mais seis sujeitos, dentre eles o meu vizinho, o aposentado boa-praça. Separados dos demais, seguimos em fila indiana pela espaço entre os bancos para uma porta lateral toda iluminada com velas vermelhas. Ao ultrapassarmos o batente, nos deparamos com um santuário construído em alvenaria habitado por uma enorme imagem de Oxumaré, cercada por velas e muito dinheiro. A nossa guia, uma bela filha-de-santo, nos repassou as orientações finais enquanto entre - gava a cada um uma vela vermelha. Deveríamos ficar perfilados na entrada da capelinha, assim que Oxumaré passasse por nós imediatamente acenderíamos as velas, pediríamos em silêncio a realização de um desejo e aguardaríamos a saída dele. Quando o orixá concluísse os rituais e deixasse o local, deveríamos segui-lo para qualquer lugar. “Mas, cuidado! Não deixem a vela apagar ou o desejo não se realizará!”, advertiu. E era exatamente meia-noite quando ele saiu porta afora correndo em direção à primeira encruzilhada, seguido por sete sujeitos com as mãos em conchas no entorno das brasas das velas. Mal iniciamos a correria e meu vizinho da esquerda já estava em dificuldades. Vinha atrás aos tropeções, sem saber se protegia a vela ou se segurava as calças. Ao ver a cena hilária, não segurei a gargalhada. Foi naquele instante que a minha vela apagou. Imediatamente, meti a mão no bolso e peguei o isqueiro. Oxu - maré, que seguia bem à frente sem olhar para trás, gritou tonitruante: “Não é mais pra acender a vela que apagou!” No círculo formado quando chegamos na encruzilha, a minha era a única vela sem luz. Ainda bem que o meu desejo não se realizou!
  • 18. 34 Trivial Cotidiano 35 Trivial Cotidiano A os 58 anos, parecia mais sábio. Contudo, não estava muito satisfeito com aquela sabedoria pré-sexagenária. Preferia a insensatez da juven - tude em vez da cautela própria de quem está envelhecendo. Estranho, não sentia-se velho. Era da Geração X, e tinha muito orgulho disso. Fazia questão de demonstrar em conversas com amigos, nos bate-papos nas redes sociais, em poesias cometidas às escondidas, para evitar as chacotas dos parentes mexeriquei - ros. Foi adolescente nos derradeiros anos da década de 1970, namorando de mãos dadas, escorado no portão, e ouvindo “Kiss me quick, while we still have this feeling” com Elvis Presley em long play rolando solto na vitrolinha. Amassos inesquecíveis, tão intensos que às vezes parecia impossível conter os gametas em efervescência vulcânica. E agora, estava velho. Inexoravelmente velho. As rugas nos cantos dos olhos e da boca tornavam-se mais vincadas. Os cabelos, embranqueciam. “Meu Deus, estou velho!!!” Uma constatação já externada pelos parceiros de bar, nas rodadas de fim de semana e, até mesmo em casa, entre uma pilhéria e outra da esposa. “Quando isso começou a acontecer?” se questionou, enquanto bebericava uma cervejota crepuscular no “Baré”, indiferente às sátiras e trocadilhos infames do matusalênico proprietário. Ao olhar-se no espelho, enxergou assustador “pescoço de peru”. Viu a flacidez do tórax outrora vigoroso e — que horror!!! — percebeu a súbita indisposição do inseparável companheiro, intrépido explorador de grutas e túneis femininos. Ao vê-lo murcho e cabisbaixo, abriu os braços inquiridor: “Por que me abando - naste?!” Absorto nessas divagações, não percebeu que a mulher o observava pela entre abertura da porta do banheiro. — Quáquáquáquáquá!!... — A gargalhada sarcástica fora como um jab na alma, derrubando-a na lona da vida. — Porra, Izaura!!! — vociferou, zangado. — Tu quer me matar do coração?! — Quáquáquáquáquá!!! — A mulher saiu em disparada, pelo corredor, cha - mando a atenção das filhas e filhos espalhados pela casa. — O que foi, mãe? — perguntou um deles, com ar de espanto na cara sardenta. — Teu pai ficou doido!!! Tá conversando com o “morto”!!! Quáquáquáquá - quá!!!... — Também não avacalha, né Izaura!!! — Gritou ele, da porta do quarto. — Que droga! Agora, virei a piada da família! O carro de funerária O filho mais velho foi o primeiro. — Lá vem o “necrófilo”!!! — Olha o respeito, “moleque”!!! — retrucou. Um outro gritou do sofá: — Nem encantador de serpente dá jeito!!! — Tá vendo, Izaura?! Tá vendo o que tu fez?! A demonstração de contrariedade desencadeou outra enxurrada de gracejos e risos debochados. Trancou-se no banheiro. De repente, invade a memória antiga canção de Cassiano: “Quando olho no espelho,/estou ficando velho e acabado”. Inadmissível!!! Posta-se diante do espelho, aspira o ar para espremer a pança estilo “mangueira de ce - mitério”, recurva braços e antebraços e fecha os punhos. Duas protuberâncias brotaram tímidas no lugar dos dois potentes músculos da juventude. Sensação de desalento inva - diu mente e coração. Mas, reagiu bravamente. Jamais seria derrotado. Saiu para o bar, onde encontrou (putz!!!) velho amigo. O cumprimentou, sorumbá - tico. — E aí?! — Como vão as coisas?! — Humm, assim assim!! — respondeu ele. — Mais levando do que empurrando! — Que desânimo!! — retrucou o amigo. — Bah! Pediu a breja de sempre. — Traz uma aí, Louro! Em dois minutos, o octogenário botequineiro surgiu serelepe e pimpão com uma ge - losa espumosa presa pelo gargalo. Aprumou a chave na tampa, fez o clássico movimento que antecede o clique, e... parou. Curiosos, ambos olharam para o macetoso comerciante. — Que foi, Louro?! — Olha isso!! Olha isso!! — e apontou com o queixo para a rua em frente. A mulata sacolejante, exibindo apetitosa bunda e belas pernas, encarapitada sobre um salto plataforma, dentro de um minivestido, passava pela frente do bar como se des - filasse sobre uma longa passarela imaginária. Formou o bonde. O Louro na condução, seguro na manivela, extasiava. — Bora, Louro! Abre logo a cerveja! “Isso” não é mais pra ti! — O quê?! — replicou o Louro. — Tu tá é por fora!!! — Deixa de conversa! Hahahahaha!... — Ahhh!... Tu duvida?! — questionou, sardônico. Pronto. Voltou tudo. Deu dois tragos no primeiro copo, meteu a mão no bolso da calça jeans, sacou uma nota de R$ 5,00 e saiu sem ouvir a derradeira — e mais sacana — pilhéria do comerciante. — Lá vai o “Carro de Funerária”!!! — Por que, Louro? — quis saber outro frequentador do bar. — Pra onde vai, leva o “morto”! E todos: — Quáquáquáquáquá!!...
  • 19. 36 Trivial Cotidiano 37 Trivial Cotidiano N o auge dos meus oito anos de idade (“Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais!”), minha mãe decidiu aplicar-me um castigo, digamos, mais psicológico, após aprontar grave peraltice. Em vez das sovas com vara de goiabeira ou dos “bolos” aplicados com a palmatória de acapu, sentou-me ao lado dela, em derredor da mesa na cozinha de nossa casa, na passagem Bom Sossego, sobrepôs à minha frente um grande livro, capa preta, páginas finas e transparentes, determinou que eu rezasse um Pai-Nosso e em seguida que procurasse o Salmo 23 e o lesse em voz alta quantas vezes ela considerasse necessário. Mais não disse. Fiquei atônito. Por onde começar? Apoiei o queixo na borda da mesa, entrelacei as mãos, mantendo-as entre os joelhos, e quedei paralisado. O antigo exemplar da Bíblia, livro sagrado da cristandade, pertencia ao meu pai, herança do pai dele, meu avô Filomeno, nascido e criado em Igarapé-Miri, município paraense da região guajarina. Era uma tradução Ferreira de Almeida, de difícil entendimento devido a linguagem excessivamente rebuscada. Seu Manoel guardava aquele exemplar com zelo extremado. Duas ou três vezes por semana o manuseava, sentado no canto da cama, próximo à janela lateral. Fazia o sinal da cruz e detinha-se em algum capítulo ou versículo. Acostumado ao coloquialismo das revistas em quadrinhos do Walt Disney, foi-me terrivelmente difícil localizar os Salmos naquela profusão de páginas. Fi - nalmente, encontrei o Salmo 23. O problema foi entender o que lá estava escrito. Certamente, David não falava com tanta eloquência vernácula: “Jehovah he meu Pastor, nada me faltará. Em pastos ervosos me faz deitar: mansamente me leva a aguas mui quietas. Refrigéra minha alma: guia-me por veredas de justiça, por seu nome. Ainda que também andasse pelo valle da sombra de morte, não temeria algum mal: porque estás comigo: tua vara e teu cajado me consolão.” Mas os exegetas entediam David um filólogo renomado, tanto que capricha - ram na tradução, dificultando o acesso dos pequenos ao extraordinário conteúdo do Salmo 23. Mais de 40 anos se passaram e ainda guardo este episódio na memó - ria. Aquela mãe, em sua sabedoria instintiva, promoveu mudança significativa na vida do próprio filho. Despertou-lhe o interesse pelo sagrado, ensinando-o, através do castigo, o caminho da iluminação espiritual. Sem dúvida, o Salmo 23 é bastante conhecido em todo o mundo por ser um idílio de grande beleza, elaborado a partir da paz e do equilíbrio que habitam na - queles que creem na profunda interação com o infinito. A primeira frase apresenta Encantos do Salmo 23 o homem voltado para o espiritual, totalmente confiante no Altíssimo como guia e provedor. É o homem que sabe que a inteligência infinita que há nele é Deus, e que esta Presença corresponde aos seus chamados sempre que solicitada. “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Exatamente porque todas as necessidades são supridas de maneira compacta, unívoca e fluente. É uma inigualável demonstração de confiança. Semelhante a outro clamor, dessa vez advindo de Jesus, o Cristo, no desenrolar da crucificação. “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito”. Para mim, é outra oração de magnitude singular. Vida: não existe bem mais valioso. Então, para proteger-me, e antes de sair às ruas, clamo: “Jehovah, em tuas mãos entrego meu espírito”. Naquele dia, quando minha mãe me fez sentar ao seu lado, na nossa mesa da cozinha, ensinou-me ines timável lição. “Deus é o Senhor, então, peça e Ele o atenderá”. O conselho veio de um pastor protestante da antiga (e venerável) Assembleia de Deus. “Faça ele orar”, recomendou. E orava, suplicando a Deus sabedoria e um coração tranquilo. “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Esta certeza me acompanha até os dias atuais, prin- cipalmente nas adversidades, no enfrentamento dos problemas, nas marchas e contramarchas da vida. Nunca sofri solidão, em nenhum momento, por mais ad - verso que fosse o momento. Jamais desesperei. Tinha (e tenho) absoluta certeza de que alcançaria (e alcanço) meus objetivos, realizaria (e realizo) meus propósitos. É a fé inabalável na suprema sabedoria e em mim mesmo. Ultimamente, tenho ouvido o chamamento em meu coração. É chegada a hora de retomar o caminho da espiritualidade. Avizinha-se o instante da grande deci - são. Sinto que “(...) A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo”, e que meus dias de “(...) rodear a terra e passear por ela” estão chegando ao fim. É como disse Shakespeare: “Tudo estará pronto se a mente estiver.” E a minha está quase pronta.
  • 20. 38 Trivial Cotidiano 39 Trivial Cotidiano E m meados dos anos 1970, o recém-criado Fantástico, programa domini - cal da Rede Globo de Televisão, exibiu uma reportagem com o tema “O que é felicidade?”. Eu tinha, na ocasião, 16 anos e ainda não havia pen - sado sobre o assunto. Tampouco ousara criar algum conceito, por mais simplório, sobre matéria tão vasta e abstrata. Aliás, naqueles tempos bicudos minha rotina resumia-se aos estudos, ao trabalho, à Igreja Batista da Marambaia, ao bate-bola improvisado no campinho de moinha e à companhia de minha mãe, dona Rosa. Ora, para mim isso é que era felicidade!!! Mas, a reportagem do Fantástico transmitida naquela noite de domingo após ouvir vigoroso sermão do pastor e professor Ezequiel José de Freitas, me forçou inconscientemente a formular as seguintes perguntas: “O que é felicidade?”. Eu sou realmente feliz?”. Então, acompanhei atentamente as respostas. “Ah, felici - dade é estar aqui, nesta praia maravilhosa!”. “Felicidade é estar com minha na - morada!”. “Felicidade não existe, é momentânea!”. E assim por diante. Todas as respostas conduziam a uma conclusão: felicidade é um momento. Uma sensação volátil. Um estado de espírito. Concluída com as clássicas opiniões dos especialistas, a reportagem do Fantás - tico virou o assunto da semana. E sem que eu percebesse passei a perseguir uma resposta plausível para aquela pergunta: Afinal, “o que é felicidade?”. Nos meses seguintes fui colecionando respostas, das estapafúrdias às sofisticadas, filosóficas e religiosas, triviais e profundas. Todas cuidadosamente catalogadas em volumoso caderno (creio com mais de 100 páginas), com datas, nomes dos autores das res - postas, localizações, etc. Por quase três anos, coletei centenas de ideias armazenadas em dezenas de cadernos. Eram opiniões coletadas em situações e locais diferentes (igrejas, gi - násios, seminário, estádios de futebol, ruas, festas, velórios…), com pessoas em diferentes níveis mentais e espirituais, analfabetas e cultas, graduadas e pós-gra - duadas, ateias e crédulas. Eu tinha em mãos um manancial inestimável, montado a partir de uma reportagem instigante, onde poderia estar a resposta definitiva para o meu dilema. Um trabalho todo motivado pela curiosidade, sem nenhuma metodologia aca - dêmica, certamente não poderia ter valor científico. Somente anos mais tarde, munido com as ferramentas adequadas, voltei a vasculhar aqueles cadernos. Foi quando percebi uma estranha coincidência. A palavra “momentânea” estava pre - sente em boa parte das respostas. Ou seja, para aquelas pessoas a felicidade plena Pedaços de felicidade era inalcançável. Não existia absoluta. No entendimento delas, felicidade resumia - -se a “momentos” agradáveis, sensações de bem-estar e contentamento. Ora, se a felicidade é um momento ínfimo de satisfação, onde o indivíduo se sente feliz e realizado, um momento onde não há nenhum tipo de sofrimento, en - tão como torná-la plena? Analisando minuciosamente aquelas anotações concluí, pesaroso, o quanto é impossível para nós, humanos demasiado humanos, conquis tar a felicidade perfeita. Primeiro, porque nunca estamos plenamente satisfeitos com o que temos. Sempre queremos algo mais. É próprio do ser, do humano ser. Segundo, esse “querer algo mais” nos força a uma busca por sua obtenção. E esta procura conduz invariavelmente a dois resultados: sucesso ou fracasso. E sendo bem sincero com vocês, quem de nós está realmente preparado para o fracasso? Ninguém se prepara para o fracasso. Por isso, sofremos quando não consegui - mos realizar nossos sonhos. Quando aquele ente querido morre. Quando somos reprovados naquele concurso. Quando um grande amor se vai. E às vezes, sofre - mos mais por nossa incapacidade em extrair desses instantes de dor uma lição para nossas vidas. Pela nossa inaptidão em transformar derrotas em vitórias. Quando aprendemos isso, jamais nos sentiremos novamente derrotados, mesmo na adver - sidade aparentemente intransponível ou na dor mais atroz. Resumindo, guardei aqueles cadernos com extremado zelo por quase 12 anos. Foram minhas fontes de consultas em muitos textos que produzi no começo de minha carreira profissional. Cobiçados por amigos estudantes das “gias” bem co - nhecidas (Psicologia, Sociologia, Teologia…). Manuseados por padres e pastores. Umbandistas e espíritas. Maçons e rosa-cruzes. Resumindo: ainda bem que a felicidade é momentânea, porque do contrário jamais descobriríamos “(…) Que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.”
  • 21. 40 Trivial Cotidiano 41 Trivial Cotidiano O transeunte normalmente ignora um caco de tijolo ou um punhado de pedregulhos esquecidos no meio-fio. O mesmo acontece com uma for - miga, subindo cambaleante o galho seco de uma roseira encolhida no canto de um jardim malcuidado. Raros passantes percebem o passarinho saltitando nos galhos da mangueira, às vezes, nem enxergam a mangueira. Estão apressados demais, por isso desatentos aos seres fervilhantes sob as folhas, embaixo dos ca - cos ou pedregulhos, ou sobrevoando centímetros acima de suas próprias cabeças. Quem filosofaria a partir de folhas secas, flores murchas, frutos estragados, pipiras e bem-te-vis desafinados? Ou prantearia a morte de um mosquito? Na ver - dade, temos um conceito de vida muito estranho. Valorizamos o cão beagle mas esquecemos do rato, também usado como cobaia de laboratório. Nesse caso, os ativistas são contraditórios quanto ao significado e a importância da vida. A visão humana e suas conturbadas interpretações raramente conseguem ver beleza num caco de tijolo ou significância teológica em pedregulhos abandonados no meio-fio. Ainda hoje, há quem defenda Jesus Cristo louro, olhos azuis, pele branca como a neve. Uma imposição da Igreja medieval que, por foça, queria um deus anglo-saxão. Mesmo séculos depois, as pessoas acreditam nessa versão enviesada ao reve - larem preferências nada convencionais. Por exemplo, quem receberia mais afa - gos? Um bebê branco, rechonchudo, olhos azuis, cabelos louros e encaracolados ou um bebê negro, magro, olhos negros, carapinha, lábios protuberantes? Os turvos de coração responderiam bem-intencionadamente, entremeando com vigoroso discurso contra um suposto apartheid infantil, que seria o bebê branco. Nada disso. Bebês são bebês. Em qualquer lugar, independente da raça, merecem afeto e carinho. A visão distorcida, embasada por conceitos, dogmas ou doutrinas confusas, conduz ao argumento falacioso de que beleza tem cor. É um tempo em convulsão esse que vivemos. Temos muita modernidade mexendo com as pessoas e exacerbando antigos pré-conceitos. Como na escolha equivocada dos bebês. É preciso enfrentar as limitações sem traumas. E fundamental, viver as triviali - dades cotidianas com extrema sabedoria. Extraindo dos objetos mais comezinhos lições que possam melhorar a percepção do entorno, e ajudar a aperfeiçoar o auto - -conhecimento. Mesmo um caco de tijolo ou qualquer punhado de pedregulhos tornam-se relevantes quando aguçamos a visão do espírito. O poeta Carlos Drummond de Andrade era um extraordinário observador de minudências. Nada escapava à sua aguçada percepção. Vivia cada dia sem es - Cacos e pedregulhos pasmos, porém, com assombrosa voracidade em captar os mínimos detalhes, as reações mais imperceptíveis, os gestos ainda que extremamente comedidos. Qual - quer anormalidade, embora diminuta, era cuidadosamente arquivada. Foi assim com a inconveniente pedra. Alguém comum passaria ao largo, após algumas imprecações, seguindo adiante o caminho traçado. Mas Carlos Drum - mond de Andrade, experimentado observador de minudências, enxergou nas en - trelinhas do tempo e da vida o portal para uma outra dimensão, somente acessado com uma chave muito especial: a pedra no meio do caminho. “Nunca me es- quecerei desse acontecimento/Na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca me esquecerei que no meio do caminho/Tinha uma pedra.” Uma obra-prima construída sobre o trivial cotidiano, resultado de singular ca - pacidade em enxergar através das entrelinhas. Como Sidarta Gautama, cuja sabe - doria foi aperfeiçoada em longas observações da natureza e do contínuo meditar embaixo das árvores. Professor e filósofo, Sidarta lançou as bases do budismo elevando o desapego como princípio basilar da simplicidade. Conceito experi - mentado pelo poeta e naturalista Henry David Thoreau. Segundo Thoreau, todo homem tem a tarefa de tornar sua vida, mesmo nos detalhes, digna de ser contemplada, estando ele em sua hora mais crítica e ele - vada. “Me isolei porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de, vindo a morrer, descobrir que não tinha vivido. Não queria viver o que não era vida, tão caro é viver; tampouco queria praticar a resignação, a menos que fosse absolutamente necessário.” Eis aí o mistério da fé: total compreensão de si mesmo. Só possível alcançar quando em absoluta sintonia com as minudências da vida. Na simbologia univer - sal de um caco de tijolo ou na beleza abstrata contida nos pedregulhos adormeci - dos no meio-fio.
  • 22. 42 Trivial Cotidiano 43 Trivial Cotidiano R eza antigo dito popular de que uma andorinha não faz verão. Discor - do. Uma andorinha esperta, e conhecedora das coisas deste e de outros “mundos”, faz verão, sim, porque saberá como percorrer grandes dis - tâncias se voar a favor do vento. Ou seja, se quiser (e souber) faz grande barulho e não só provoca veranicos e verões avassaladores, como é capaz de fazer chover no molhado. Aliás, sobre este assunto quero esclarecer que cresci ouvindo ditos populares. “Cavalo dado não se olha o rabo”, “quando a esmola é demais, até o santo des - confia”. E assim por diante. As pessoas daquela época (anos 1960), apreciavam essas citações. Minha mãe, então, era uma frasista inigualável, chegando a criar os próprios ditos quando queria enriquecer uma ideia. Eu mesmo inventei alguns, nem tão populares como os tradicionais. “Em anel de gordo, magro não mete o dedo”, “Quem gasta demais, vira sócio de agiota”, “Todo ‘comedor’ um dia também vira ‘comida’” (quando morre), e assim por diante. São chistes que surgem ocasionalmente, por isso mesmo muitos não foram catalogados. Voltando às “vacas magras” (vejam só!), uma andorinha pode fazer verão. A história está recheada de personagens que sozinhos inspiraram a construção de impérios, mas, igualmente foram a ruína deles. Como a andorinha solitária so - brevoando os céus nublados de Macapá e, de repente, ressurge o sol derramando luminosidade. Pois é, tudo poderia ser diferente. A andorinha “fazendo verão” nesses dias de chuvas torrenciais. Meus ditos, mais populares, sucessos na boca do povão. Quem dera fosse tudo mais fácil! Simples, como nos tempos de antanho, quando ouvia minha mãe conversando com as irmãs (minhas tias), enquanto temperava o feijão (ah, que cheiro bom!!!), entremeando os prazerosos bate-papos com os ditos da moda. À tardinha, estirada sobre o parapeito da janela, contemplava a paisagem à frente formada por pequenas árvores frutíferas e vegetação rasteira, fundindo-se com o céu em azul e branco, composto por estranhas figuras mitológicas criadas pela imaginação. Na frente de casa existia uma imensa campina, por onde ainda passavam cava - los e bois para os terrenos próximos. A Belém dos anos 1960 só existia no entorno do Forte do Castelo. Do Marco para trás era interior, bairros em formação como a Marambaia compunham a área rural da cidade. Rios e riachos, lagos bons para o O Verão da Andorinha banho, extensas matas onde se pescava e caçava. A Marambaia era o interior de Belém. Tinha ônibus-lotação de manivela. Entrocamento do Mercado Brilhante à Casa Navio. Seminário Teológico Batis - ta Equatorial. Sede do “Pedro Barbeiro”, São Joaquim Eporte Clube, Clube dos Médicos, Palhoça e Antonhão (Boate do Brasileirão), Merengue do Rasga Saia. Feiras em profusão, mercadinhos e até cinema, caldo de cana com pastelão. E depois dizem que uma andorinha não faz verão. Meu pai adorava aquele “interior”. Foi morador pioneiro. Quando chegou lá (dizem) ainda se ouvia ronco de onça braba e assovio de Matinta Pereira. Desbravador, chamou o cunhado, o tio Eustáquio, e construiu uma bela casa de pau-a-pique, cavou poço, meteu bomba e plantou cacau, cupuaçu, coco anão, abacate e popunha. Mecânico e torneiro mecânico, meu pai construía as próprias ferramentas. Era um sujeito bem criativo, e um apaixonado pelos ofícios que exercia. Tinha uma caixa de ferramentas que tratava feito um baú repleto de ouro e prata. Só ele mexia naquele “tesouro”. No tempo de colheita, as popunheiras ficavam “carregadas”. Então, meu pai inventou uma “cortadeira” de cachos de popunha composta por um cabo de três metros e uma espécie de foice. Foi quando me tornei vendedor de popunha sazonal. Eu tinha dez anos. Até o dia em que, passando na frente de um bar, no Mercado Brilhante, uns bebuns com praram todo meu produto, comeram até as cascas e não quiseram pagar. Ahhh, é assim?! Me armei com uma enorme pedra e a atirei no meio das garrafas de cerveja. Depois, dei um carreirão rumo à nascente avenida Pedro Álvares Cabral, atravessei a rua Capitão Braga e peguei a passagem Nossa Senhora de Fátima, até chegar à passagem Bom Sussego (hoje, Bom Jesus). Duvido que alguém, principalmente em elevado estado etílico, pega moleque de rua, com peitoral de pipira e cambitos de bambu. Carre veloz como o vento, ainda mais se deixou para trás um enorme cagalhão. Minha carreira de “microem - preendedor individual” terminou precocemente com uns cascudos aplicados por minha mãe no meio do cocuruto. “Pra deixar de arrumar confusão na rua!” Doeu pra kauaka. Mas aprendi: uma andorinha faz verão, sim. Só precisa acompanhar a meteorologia e voar a favor do vento.
  • 23. 44 Trivial Cotidiano 45 Trivial Cotidiano O número de escândalos recorrentes envolvendo figurões da política em malversação, peculato, corrupção passiva e ativa, formação de quadrilha e fraudes é assombroso. Mais surpreendente ainda é vê- -los lépidos e pimpões a desfilar altaneiros em carrões importados pelas ruas esburacadas e mal sinalizadas de Macapá, indiferentes à miséria no entorno, às pessoas amontoadas em filas nos postos de saúde, às escolas em ruínas, à falta de remédio e saneamento básico para quem precisa, com urgência, de melhor qualidade de vida. E o que mais indigna é saber que o próprio povo, aquele das baixadas e periferias, é o principal responsável pela eleição e contínuas reeleições desses figurões da política hoje encastelados nos Ministérios, no Senado, na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, Prefeituras e Câmaras de Vere - adores, envolvidos até o tampo da cabeça em negociatas subterrâneas, escusas e, por isso mesmo, criminosas. O que dizer a essas pessoas, geralmente hu- mildes e por isso vulneráveis? O que falar para elas às proximidades de mais um ano de eleições gerais? Por favor, não vendam seus votos. Não os troquem por dentaduras, ces- tas básicas, tampouco por aterro ou qualquer outro material de construção. Não caiam na conversa dos políticos larápios (ou dos larápios que querem ser políticos), dos lobos travestidos de ovelhas, que em período eleitoral estarão rondando suas casas astutos e famintos. Fiquem atentos aos candidatos e can- didatas. Procurem conhecer quem realmente é digno de seu voto. Mas tanto conselho tem adiantado? Pelo que temos observado Brasil afo- ra, pelos crescentes escândalos ocorridos de alto a baixo da República, têm sido totalmente inúteis. Essas pessoas – jovens e adultos – estão realmente preocupadas com o próprio futuro? Infelizmente, a maioria voltará a sucumbir ao “canto da sereia” dos maus políticos nas eleições de 2014. É certo de que trocarão seus votos por um punhado de moedas, algumas dúzias de telhas e tábuas, pelo vil metal para gastar com cachaça, uma cesta básica ou simples- mente por uma vã promessa. E em 2014, novamente o Tribunal Superior Eleitoral estará gastando mi- lhões do contribuinte com campanhas publicitárias, veiculadas nas emissoras de rádio e televisão, jornais e revistas, blogs e sites, tentando conscientizar o povo brasileiro da importância do voto. Nos últimos anos, milhões e milhões de reais dos cofres públicos já foram investidos nesse projeto. Contudo, os Escolhas erradas, futuro ruim resultados têm sido pífios diante do volume crescente de bandidos e bandidas que são eleitas a cada dois anos. O que vemos são autoridades envolvidas em tenebrosas transações trama- das na “calada da noite”, enquanto a pátria mãe tão distraída, sem perceber, é vorazmente subtraída. São ministros, senadores, deputados federais e esta- duais, prefeitos e vereadores, secretários de estado e do município, superin- tendentes de autarquias, gerentes, chefes e chefetes. Todo mundo querendo se locupletar. É roubalheira para tudo quanto é lado desta pobre nação brasileira. Enquanto os malversadores, defendidos por caríssimos causídicos, certa- mente pagos com dinheiro fruto da corrupção deslavada, compungem a face, arqueiam os sobrolhos, encolhem os ombros, curvam a espinha, aparecem em entrevistas nas emissoras de TV negando, na maior cara de pau, qualquer envolvimento em desvio de dinheiro público. E o pior – e apesar do desem- penho canhestro – conseguem convencer os incautos de que são inocentes e que foram vítimas de estrambóticas tramas políticas, de poderosos inimigos invisíveis ou, como arguiu Jânio Quadros ao renunciar, de inexplicáveis “for- ças ocultas”. Tremenda conversa fiada, um engodo vernacular, mentira das mais desca- radas. Ainda assim, mesmo com tantas evidências de picaretagem, conseguem ludibriar milhares de homens e mulheres, brasileiros e brasileiras crédulas, geralmente residentes nos alagados, nas ruas sem asfalto, sem meio-fio, sem saneamento e esgotamento sanitário, sem unidade básica de saúde ou trans- porte coletivo. São esses pobres, que sobrevivem com extrema dificuldade, que enfrentam adversidades indescritíveis, que estarão frente às urnas no dia da votação, apertando o número desses salafrários. O que dizer a essas pessoas? Adverti-las?! Alertá-las sobre os malefícios que estarão causando, não somente a si mesmas, mas a toda a sociedade?! Terá algum resultado admoestá-las sobre o conhecido mau-caratismo da maioria dos candidatos e candidatas?! De homens e mulheres mal-intencionadas?! Do verdadeiro propósito deles e delas que é enriquecer ilicitamente com o di- nheiro da Educação, da Saúde Pública, da Segurança, do Transporte?! Será que eles estarão aptos para entender que somente com o voto responsável, consciente e cidadão é possível garantir um futuro mais digno para nossos filhos e netos?! Confesso a vocês: tenho minhas dúvidas.
  • 24. 46 Trivial Cotidiano 47 Trivial Cotidiano D urante jantar, no Cantinho Baiano, minha mulher quis saber se eu acreditava em reencarnação. Antes de responder, a felicitei efusi- vamente: “Poxa, estou feliz em saber que você se tornou espírita!”. Prontamente ela esclareceu: “Não, eu continuo católica”. Foi só um chiste para descontrair. Afinal, o assunto versava sobre a finitude humana e a pos- sibilidade da existência de vida após a morte. Aliás, a morte sempre foi (e é) um grande mistério. Mais ainda vida após a morte num reino espiritual ou imaterial como ensinam as grandes religiões cristãs. Quanto a resposta à pergunta a mim formulada, lancei mão de um recurso filosófico criado por Blaise Pascal. Trata-se de uma proposta argumentativa de filosofia apologética que naquele momento adaptei para impressionar mi- nha mulher: “(…) se você acredita em reencarnação e estiver certa, você terá um ganho infinito; se você acredita em reencarnação e estiver errada, você terá uma perda finita; se você não acredita em reencarnação e estiver certa, você terá um ganho finito; se você não acredita em reencarnação e estiver errada, você terá uma perda infinita.” Não obstante, o que vem após a morte é um grande mistério. Creio, o maior de todos. Muitos o rechaçam como princípio “filosófico-religioso”. Os ateus, por exemplo, o tratam como “conto da carochinha”. Já os espíritas defendem a doutrina da reencarnação como o renascimento em um novo corpo físico após a morte, isto é, postulam um período de existência do ser em outros planos, que ocorre entre duas existências físicas convertidas em sequentes renascimentos para purificação eterna. Logo, para os espíritas existe vida após a morte. Desde minha adolescência, sou leitor contumaz das obras do rei Salomão (Cantares, Provérbios, Eclesiastes). São ensinamentos imprescindíveis para quem almeja entendimento espiritual. Recorro a eles quando preciso de acon- selhamento e orientação, principalmente ao livro de Eclesiastes (ou qohelet em hebraico, que significa “pregador”). Salomão discorre sobre a importância da vida (“melhor é o cão vivo do que o leão morto”), e faz referência à ine- xistência de vida após a morte (“porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, tampouco terão eles recompensa. Também o seu amor, o seu ódio e a sua inveja já pereceram, e já não têm parte alguma para sempre, em coisa alguma do que se faz debaixo do sol”). Numa interpretação literal, para Salomão não existe vida após a morte por O que virá - depois que “os mortos não sabem coisa nenhuma”. Ou seja, “para quem está entre os vivos há esperança” porque esses “sabem que hão de morrer”. Então, con- forme o “pregador” só se nasce e morre uma vez. Nada de reino espiritual ou imaterial, purgatórios ou paraísos, reencarnações ou ressuscitações. Morreu, fim de papo. O corpo vai apodrecer até sobrarem só os ossos. Limbo total. Será assim mesmo? Tenho acompanhado com relativo interesse os avan- ços da Tanatologia (estudo da morte) e surpreso conclui que mesmo após milhares de anos a humanidade ainda se queda perplexa ante a finitude. É impressionante como, inusitadamente, o tema ressurge em conversas infor- mais e desinteressadas. Nessas ocasiões surgem discussões éticas, filosóficas, científicas e religiosas sobre início e fim da vida, aborto, eutanásia, luto em qualquer etapa da vida, em razão da perda de pessoas queridas com qualquer idade – inclusive no caso de abortos espontâneos, quando os pais sofrem com a perda do que era esperado como celebração de uma vida e acaba trazendo a realidade da morte. Na verdade, nunca a morte obteve tamanha evidência. É assombroso ver o tratamento da mídia e a forma como o público consome as notícias sobre cha - cinas, latrocínios, guerras, tragédias naturais, atentados. A morte ocupa 99,9% dos noticiários, diariamente é assistida por bilhões de pessoas ao redor do mundo, e mesmo assim dizem que não têm tempo para pensar em coisas como a morte. É uma visão irônica, a mesma externada por famoso personagem do jornalista e escritor Luís Fernando Veríssimo: “a morte é a última coisa que espero que me aconteça”. Sabemos que não é bem assim. No fim das contas, não fomos feitos para viver eternamente. No fim, o coração vai parar de bater, a respiração vai ces- sar e, como uma lâmpada, o cérebro vai se apagar. A vida acaba aí. Mas a morte, não. Ela apenas começa. Por isso, a morte que mais me assusta é aque - la que aparece quando deixamos de sonhar; quando perdemos o caminho da esperança; os laços de afeto com o ser humano; quando não reverenciamos a natureza que nos rodeia, ou melhor, que nos abriga; quando esquecemos que o mundo precisa de nós para fazermos as mudanças necessárias; que a vida co- meça insistentemente todas as manhãs mesmo que não estejamos preparados para apreciá-la na sua plenitude, magia e encantamento.