SlideShare a Scribd company logo
1 of 90
Download to read offline
01
AGORAESTAMOSAQUI
Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORAESTAMOSAQUI
Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
ElenaWesley
AGORAESTAMOSAQUI
Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do título de ba-
charel em Comunicação Social - Jornalismo
IACS
Universidade
Federal
Fluminense
Livro ensaio de Elena Wesley
Orientação: Professora Doutora Denise Tavares
Projeto gráfico e diagramação: Caio Max
“Elesqueremquealguémquevem
Deondenós‘vem’
Sejamaishumilde,baixeacabeça
Nuncarevide,
finjaqueesqueceuacoisatoda
Euqueroéqueelesse…”
EMICIDA-Mandume
Sumário
10 Apresentação
13 Parte I - As cotas raciais na UFF
14 Introdução
19 Panorama Histórico
46 Ação afirmativa no Brasil e no Mundo
49 Fotos
52 Parte II - Eu, estudante Negro
53 Bernardo Affonso
57 Tainara Cardoso
62 Matheus Araújo
65 Luciana Silva
69 Considerações Finais
73 Referências
77 Memorial
Apresentação
11
	 Estetrabalho,comoseveráemseguida,éoresultadodiretodaaçãodemuitas
pessoasqueassumiramagigantetarefadetransformarumaculturaviolenta,excludente
edesumana.Porisso,elesópoderiacomeçarcomumabrevelistadeagradecimentosque
não vaicontemplartodos,porumaquestãodelimitedeespaço,masquepretende,ao
menos,nomearaquelesquesãodiretamenteresponsáveisporquemsouhojeeporesta
travessia.
	 Agradeçoaosmeuspais,ElianaeRosalvoWesley,pormeensinarematerorgu-
lho de quem eu sou e de onde vim: mulher negra, pobre, moradora da Zona Oeste do
Rio,filhadefuncionáriospúblicos,netadeempregadadoméstica.Somoaissooincentivo
constanteparaseguirmeussonhoseconfiaremmeusinstintos,pelapaciênciaemouvir
minhasdesilusõeseaconfiançadequecadacentavo,segundoelágrimainvestidosem
minhaformação,gerariamfrutos,aseutempo.AomeuavôGabrielBatistaque,mesmo
semcompreenderasnuancesdanegritude,sempremeincentivaapensaromundode
formacríticaeamantervivaaintençãodetransformá-lo.Refiro-meaindaaosavósMaria
e Geraldino Wesley, com os quais, infelizmente, não pude conversar sobre as questões
raciais;todavia,deixaram-meporherançaseusexemplosdeluta,emumtemponoqual,
semdúvida,acordapeleagregavaaindamaisobstáculos.Comsuoreesperançaemdias
melhores,vocêscalçaramocaminhoquetrilhohoje.E,nessesentido,meestendoaosan-
cestrais que a escravidão me impediu de saber quem são. Sua história não foi apagada.
Ela permanece em mim e nas histórias que trago nesse trabalho.Vocês resistiram e nós
seguiremosomesmoexemplo.
	 Meu muito obrigada aos jongueiros, às professoras Elaine Monteiro e Mônica
SacramentoeaosbolsistasdoPontãodeCulturadoJongo/Caxambu,projetodeextensão
quetantocontribuiucomreflexõesacercadarealidadedapopulaçãonegra,danegação
de direitos pelo Estado à dedicação em preservar um patrimônio de valor imensurável
paraopaís.
	 DedicoestetrabalhotambémàprofessoraCarlaBaiense,pelasensibilidadeem
meajudaraabordaraausênciadonegronasuniversidadespúblicasnaediçãonúmero
um do Jornal O Casarão; e à professora Denise Tavares que, ao ler a reportagem em
questão, profetizou o que seria o projeto de conclusão do curso. A vocês devo
12
nãosomenteagratidãopelasboasideias,comotambémpelospuxõesdeorelha
e pela confiança de que, em meio à inquietude do meu coração, poderia surgir,
ainda que de forma modesta, uma contribuição ao debate sobre as cotas raciais.
	 À Universidade Federal Fluminense, pela oportunidade de expandir
horizontes e adquirir conhecimentos que, infelizmente, ainda se configuram
como um privilégio de poucos. Obrigada aos professores e estudantes que se
dispuseram a somar nesse projeto e, sobretudo, a Bernardo Affonso, Luciana
Silva, Matheus Araújo e Tainara Cardoso, por compartilharem sua história, suas
dores e suas conquistas. Mais que estatísticas, sua presença e resistência são a
motivação para que nossos irmãos também acreditem que o ensino superior
público deve ser um lugar de todos. Através de nós e dos que ainda virão, a Uni-
versidade se pintará de preto.
UBUNTU.
13
ParteI
AsCotasRaciaisnaUFF
14
Introdução
15
	 Onde estão eles?
	 A pergunta martelava em minha mente como o tic tac de um relógio.
	 Ninguém nesta sala, nem nesta. Alguma coisa deve estar errada…
	 E estava.
	 Em uma turma de 25 alunos, eu era a única negra. Quando ingressei na
UFF em 2010, a Comunicação Social estava entre os cursos mais concorridos da
instituição e, consequentemente, um dos mais brancos também. Para constatar
isso não precisei de estimativas nem de pesquisas. Senti na pele. Eu era o núme-
ro, a exceção.
	 Perceber o quão excludente é o ensino superior público foi um choque
derealidade,porque,antesdevê-locommeusprópriosolhos,eunãoacreditava
no cenário que me contavam.
	 Entre quatro pessoas negras na família, eu era a única que discordava
das cotas raciais como medida necessária a mudar o perfil do estudante univer-
sitário. Criada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde o convívio entre brancos e
negros parecia igualitário, compreender as nuances do racismo, fosse nas vivên-
cias pessoais ou na estrutura social, se tornava uma tarefa difícil para mim.
	 Não por falta de conversa. Ao longo da adolescência, os‘papos cabeça’
que os adultos gostam de promover à mesa de jantar costumavam abordar os
desafios que, segundo meu pai, fariam parte de toda a minha trajetória.“A vida
vai exigir mais de você por três razões: porque você é negra, porque você é mu-
lher e porque você é pobre.Você precisa estar preparada para isso”, ele repetia.
	 O fator pobreza eu até entendia. Filha de funcionários públicos - um
bombeiro e uma professora da rede municipal -, eu conhecia os limites finan-
ceiros da família. Estudei em uma boa escola particular no Ensino Fundamental
graças a uma bolsa de estudos. Fui boa aluna, gostava muito de ler, tirava boas
notas (exceto em Matemática, apesar do esforço). Embora me destacasse, sabia
que nem todas as vivências escolares seriam possíveis para mim. Quando a mãe
16
diz que não tem dinheiro para o passeio x ou y, insistir é inútil. Hoje, anos depois,
tal definição de pobreza me parece estúpida e egoísta. É preciso abrir os olhos
para reconhecer o que a gente não vive.
	 Demorei muito para abrir os olhos em relação às questões raciais. O ra-
cismosempreestevepresente:naspiadascomnarizeboca,naobrigaçãode“dar
um jeito no cabelo rebelde” e até mesmo na dificuldade de conseguir um par
para umasimplesquadrilhadefestajunina.Eleestavaali,azombardemim,euque
nãosabiaenxergá-lo.
	 Quandochegou2009,oanodovestibular,eualmejavaestudarnadispu-
tada Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A Uerj era a única pública da região
que já havia aderido às cotas. A graduação de Jornalismo dispunha de 50 vagas,
sendo25reservadasacandidatosnegrosepobreseaoutrametadeàconcorrência
regular. Para meu pai, a medida representava uma vitória para a população preta,
uma conquista da qual eu deveria participar. Sob a minha ótica, uma ofensa à mi-
nhacapacidade.
	 -Dejeitonenhumvoumecandidatarporcotasraciais!Eunãoprecisodis-
so.Nãoqueroajudanenhuma,voupassarpelomeuprópriomérito-,argumentava,
sempreaborrecidacomamençãodoassunto.
	 Mais chateada ainda fiquei diante da reprovação. A Uerj liderava meu
ranking de preferência por ser a menos distante. Significava menos gastos. Porém,
obtive boas notas na UFF e na UFRJ e optei pela primeira devido às características
do curso. Em compensação, seria necessário me mudar para Niterói, pois as aulas
terminavamàs22htodososdias.
	 Embora tenha sonhado frequentar aquele local por anos, a sensação de
não-pertencimento se tornou uma constante. Todos os dias eu contava quantos
estudantesnegrosencontravanoscampi.Rarasforamasvezesemqueeucomple-
tavaumadasmãos.Umacontafácildefazer,masdifícildeaceitar.
	 ParaalémdosmurosdaUniversidade,ocenáriotambémsemostroubas-
tante hostil. Próximo à república onde eu morava, no coração de uma vizinhança
consideradanobrenacidade,adesigualdadesetornoulatenteparamim.Osúnicos
17
negros que eu encontrava eram os porteiros, as atendentes dos supermercados e
osmotoristasdeônibus.Profissõesdignas,porémdebaixaremuneração.
	 O estopim para que as escamas dos meus olhos se dissipassem foi um
tristeepisódionumônibus,quandoseguiadocampusparaarepública.Estavadis-
traídalendo,aofundodocoletivo,atéouvirasenhoraaomeuladoresmungar“que
cara estranho ali na frente, eu hein”. Olhei pra ela um tanto indiferente e na direção
que havia citado. Nada demais, avaliei. No ponto seguinte, reparei em quem de-
sembarcoueemquempermaneceu.Haviaumrapazempé,aparênciadeuns30e
poucosanos,vestindobermuda,chineloeboné.NaZonaOestedoRio,poderiaser
apenas um pai a caminho da escola do filho; na Zona Sul de Niterói, um assaltante
em potencial. É impressionante como os nossos traços e nossa cor são associados
facilmenteafatoresnegativos.Ocabelomuitodistantedospadrõesdaempresa,o
perfil de suspeito para a Polícia que proporciona constantes revistas vexatórias, o
bem-sucedido de terno e gravata que, aos olhos do racista, é cotado como o vigi-
lante,jamaisoexecutivo.Emqueestereótiposocialaquelasenhorameencaixaria?
	 Comecei a analisar os incentivos que recebi para chegar ao ensino su-
perior ao longo daqueles 19 anos: centenas de livros em casa à disposição, Ensino
Fundamental na rede privada, Ensino Médio em um instituto federal, condição de
pagar um curso preparatório, por mais simples e sem nome no mercado que ele
fosse. Eu era, de fato, a única negra da turma, porém sequer me encaixava na re-
alidade da maioria da população a qual pertenço. Pensei nos meus vizinhos e nos
alunosdaminhamãe,diariamentevulneráveisàstentaçõesdacriminalidadeepre-
judicados pelos confrontos entre o poder paralelo e o Estado, que suspendem as
aulasedemarcamasparedescomprojéteis.Criançasnegras,debaixaautoestimae
pouca perspectiva de futuro, fazendo jus aos índices de evasão escolar apontados
peloProgramadasNaçõesUnidasparaoDesenvolvimento(Pnud),segundooqual
um a cada quatro alunos do Ensino Fundamental abandona os estudos antes de
completaraúltimasérie.Cercade65%dessesdesistentessãonegros,eosprincipais
motivossãoanecessidadedetrabalhar,aviolênciaeoracismo.
	 As carências do ensino básico são refletidas no mercado de trabalho. Se-
18
1
O Jornal O Casarão é o jornal laboratório do curso de Comunicação Social da UFF, retomado em 2012 por
iniciativa dos estudantes.A edição número 01 está disponível no link
http://www.jornalocasarao.com/2013/03/o-casarao-n-um-cotas-nas-universidades.html
gundoapesquisaRetratodasDesigualdadesdeGêneroeRaça(Ipea-2015),mulhe-
res e homens negros ganham R$544,40 e R$833,50 em evidente desvantagem à
médiaderendadeR$957,00eR$1.491,00dasmulheresehomensbrancos,respec-
tivamente.Osnúmerossetornamaindamaisalarmantesàmedidaqueaanálisese
concentranosespaçosondenegrossãomaioria:aspenitenciáriaseosnecrotérios.
O Mapa daViolência 2016 estima que a cada 23 minutos um jovem negro de 15 a
29 anos é assassinado por arma de fogo. E de acordo com o Ministério da Justiça,
somos61%dapopulaçãocarceráriadopaís,quejáultrapassa620milpessoas.São
os engenheiros, advogados, arquitetos, médicos, com os quais nunca dividiremos
umasaladeaula.Oatestadodeóbitoquechegaantesdodiploma.Acruelresposta
para“Ondeestãoeles?”.
	 Canalizeiaindignaçãodiantedetaisdesigualdadesemumdebatesobre
o tema no meu campus, que culminou na publicação da reportagem“Onde estão
eles?”na edição um do Jornal O Casarão1
, no início de 2013. A matéria questiona-
va a ausência de negros nas universidades públicas e como, apesar dos números,
a opinião da mídia, dos intelectuais e da própria comunidade acadêmica ainda se
mostravatãoavessaapolíticasdeinclusão.
	 Ao me apontar como exceção, a UFF me pressionou a rever um posicio-
namentopessoalegoístaeretrógradosobreascotasraciais.Hoje,compreendoque
continuarei sendo exceção, a menos que políticas públicas efetivas sejam criadas
e executadas para modificar o cenário atual. É com base nesta tomada de posição
que nasce “Agora, estamos aqui”. O ingresso de estudantes negros desencadeia
uma série de demandas à Universidade. E, nós, alunos negros, sabemos que, inde-
pendentedasopiniõesqueacomunidadeacadêmicaaindacultive,temosumbo-
cadodeestatísticasparareverter.Eodesafiocomeçaemnossaprópriahistória.
19
Panorama
Histórico
20
	 No ano em que completa dez anos de adoção das primeiras políticas
de ação afirmativa, a Universidade Federal Fluminense dá mais um passo em di-
reção à inclusão social. Em 2017, cinco áreas de formação terão, pela primeira
vez, turmas formadas por alunos cotistas. Os Programas de Pós-Graduação da
Antropologia (PPGA), da História (PPGH), da Psicologia e em Sociologia e Direito
(PPGSD) terão asseguradas as medidas voltadas à entrada de negros, indígenas
epessoascomdeficiência,unindo-seàAdministração,queformatouturmacom
cotistas em meados de 2016. Assim como ocorreu na graduação, cujas cotas fo-
ram instituídas por lei em 2012, a Universidade aplica no Mestrado e no Dou-
torado as determinações do governo federal, divulgadas por meio da Portaria
Normativa nº 13, em maio de 2016.Todavia, o Ministério da Educação concedeu
autonomia às instituições quanto à porcentagem destinada aos grupos alcança-
dos.NaUFF,aPsicologiasedestacouaoassumirocompromissodereservar50%
das vagas e ainda estender a política à luta LGBTT, contemplando também as
travestis que realizarem a seleção.
	 Vinculado à Faculdade mais concorrida do vestibular tradicional, o Pro-
grama de Pós Graduação em Sociologia e Direito calcula a entrada de 16 novos
alunos com quesitos de igualdade racial e atenção a minorias sociais na próxima
turma. Doutor em Sociologia e Direito e Mestre em Antropologia pela UFF, Mar-
celinoContiexaltaodiferencialdacotanoPPGSD:aextinçãodanotadecortena
primeira etapa do processo seletivo.
	 “Odepartamentocogitoudefinirmédiacincoparaoscotistas,masesta
poderia ser uma alternativa ineficaz caso os organizadores aumentassem a difi-
culdade do conteúdo da prova. Por conta disso, preferimos suspender a nota de
corte e valorizar a subjetividade da apresentação das propostas de pesquisa. Se
este modelo resultar na aprovação de alunos que não estejam no mesmo ritmo
do restante da turma, é dever da universidade se adaptar para auxiliá-los. O do-
cente deve sair da zona de conforto não apenas na assistência ao cotista, mas
21
também se abrindo a autores e discussões que estes novos alunos vão trazer
devido à singularidade de suas vivências”, explica Conti, militante filiado ao Mo-
vimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978.
	 Um dos quatro negros em um corpo docente que ultrapassa cem pro-
fissionais, Conti ressalta que, apesar da breve aprovação da política no caso do
PPGSD, a comunidade acadêmica apresentou bastante resistência à adoção na
Pós. O professor afirma que até mesmo os argumentos que comprovam a efi-
cácia das cotas na graduação foram utilizados para invalidar a necessidade das
mesmas nas demais instâncias do ensino superior.
	 “Ao longo do processo de expansão e aprimoramento das cotas, ve-
rificou-se que o CR (coeficiente de rendimento) dos cotistas é equivalente ao
dos não-cotistas. Logo, se já não há diferença entre os egressos da graduação, as
cotas na pós seriam irrelevantes. É um argumento falho, já que desconsidera as
questõeseconômicas.Ohomembrancoaos30anospodeestarnacasadospais
esededicaràformaçãoacadêmica,enquantoohomemnegrode18anosjáestá
nomercadodetrabalho².Tambémdevemospontuaroracismoinstitucionalque
lêacandidatabrancaecomtraçoseuropeizadoscomoamaiscompatívelaocur-
so, em detrimento da candidata negra, de cabelos crespos, que, segundo nossa
sociedade, não aparenta atuar no ramo”, salienta.
	 Além dos fatores apontados por Conti, a própria portaria colabora para
a lentidão dos cursos em aderirem à norma. O MEC estabeleceu um prazo de
90 dias - já expirado - para o encaminhamento de propostas pelas instituições,
porém a data de implementação efetiva está a critério das universidades. Visto
que a UFF deu autonomia a cada colegiado, dos 80 programas de pós-gradua-
ção vigentes, apenas oito, vinculados às áreas citadas anteriormente, validaram
apolíticacomrapidez.AtémesmonaAntropologia,naqualapressãopopularjá
fomentava o debate em 2015, as discussões foram marcadas por opiniões diver-
² A pesquisa “Situação Social da População Negra por Estado”, elaborada pelo Ipea em 2014, revelou que,
entre os cidadãos com 12 anos ou mais de escolaridade, 22,2% são brancos e 9,4% negros. Em contrapartida,
negros são maioria entre aqueles com oito anos ou menos de estudo, somando 12,2% nos que possuem até
um ano na escola, enquanto brancos representam 6,6% na mesma categoria.
22
gentes e o receio iminente de não aprovar a medida a tempo do primeiro edital
válido para 2017. De acordo com o professor JulioTavares, integrante do depar-
tamento, teoria e prática são realidades bastante distintas também nas áreas
vinculadas às Ciências Humanas, consideradas as mais propensas à garantia de
direitos. ParaTavares, a morosidade em ampliar o acesso de camadas populares
na pós-graduação, de forma incisiva, é provocada pela falta de vontade da elite
intelectual que predomina no mercado de trabalho e na academia atualmente,
e que parece não desejar abrir mão de seus privilégios.
	 “A elite intelectual é branca e vê o negro como um objeto de estudo,
e não como um semelhante. A Antropologia, infelizmente, tem demonstrado o
mesmo pensamento, sem atentar às especificidades de quem queremos inse-
rir na universidade. O processo é lento como um todo, mas este é o caminho
para criar mecanismos de ruptura em uma sociedade que restringe os espaços
de conhecimento e poder. As cotas na Pós vão promover a médio e longo prazo
recursos humanos negros de alta qualificação para o mercado, incluindo-se, aí,
assalasdeaulauniversitárias,nasquaisosprofessoresnegrosaindasãominoria”,
avalia.
	 Defato,apresençadenegros³nocorpodocentedaUFF,emtermosnu-
méricos, é desanimadora. Entre os 103 profissionais da graduação, do Mestrado
3
A exemplo do que ocorre na publicação “O Negro na Universidade: o direito à inclusão”, este trabalho uti-
liza o conceito negro para unir os referenciais preto e pardo somente quando se refere a dados oficiais do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.“Este instituto, aliás, historicamente o Estado brasileiro, desde o
período da escravidão, criou uma divisão no grupo negro que remetia para uma proximidade (desejável em
um inconsciente coletivo racista) com o grupo padrão-branco. Assim os mestiços já podiam apresentar-se
não mais como negros, mas ao serem incluídos no grupo‘pardo’, estavam, ao mesmo tempo, sendo estimu-
lados a sair de uma condição pior para uma nova que, não obstante fosse a origem do ‘mal’, a negra, nem a
do ‘bem’, a branca, reservada para os indivíduos com fenótipos predominantemente europeus, ainda assim
diminuía seu valor social quanto ao seu pertencimento racial. Note-se que essa padronização, até hoje, não é
auto-aplicável - as pessoas não dizem‘sou pardo’, apenas incluem-se nesse grupo como alternativa para não
se incluírem no grupo ‘preto’no qual ironicamente identifica-se cor e não grupo racial. Via de regra ‘mulato’,
‘moreno’ ou ‘brasileirinho’ são nomes mais utilizados na autoidentificação livre. Então, o movimento negro
nacional, de há muito, diante desse arranjo institucional e favorável ao movimento da ideologia racista no
inconsciente coletivo nacional, tem juntado os grupos preto e pardo da nomenclatura oficial na categoria
‘negro’. Assim, em uma linguagem racialmente consciente, branco designa os indivíduos nos quais os traços
europeus são predominantes. Negros são os indivíduos nos quais os traços negróides (africanos) são pre-
ponderantes e que são socialmente reconhecidos como pardos, mulatos, morenos ou pretos. (BERTULIO,
2007, págs. 53 e 54)
23
edoDoutoradonoDireito,somentequatrosãonegros.Istoé,apopulaçãonegra
não alcança 5% do corpo docente de um curso tradicional, mesmo sendo mais
da metade da população brasileira, conforme o censo 2010 do IBGE. Marcelino
Contipontuaqueobaixopercentualdepósgraduadosnegrosestáconcentrado
na Educação e é formado por mulheres, cuja atuação predomina no Ensino Mé-
dio,deixandooensinosuperiorsemreferências.Seoaspectoquantitativoapon-
ta a necessidade de políticas públicas, Julio Tavares destaca o caráter político e
subjetivo.Paraoprofessor,quetambémlecionanoProgramadePós-Graduação
da Antropologia (PPGA), a escassez reforça aos alunos a uniformidade de que
somenteobrancochegaàsaltasposições.Portanto,paraoantropólogo,diversi-
ficaroquadrodeprofessorespodemotivaroutrosnegrosaconquistaromesmo
espaço.
	 “Por muito tempo acreditou-se que a universidade não era o lugar do
negro.Ageraçãodosmeuspaispensavaassimereproduziaessediscurso.Oque
cabeaoensinosuperioréaplicaraPsicologiadoExemplo.Àmedidaquecriamos
uma identificação entre professor e aluno negro, ampliamos a possibilidade de
que outros acreditem ser possível participar deste espaço. Desconstruímos um
paradigma posto há séculos que diz que o negro não é capaz”, projetaTavares.
	 Cientes dos desafios que a implantação da política significaria, os es-
tudantes da graduação assumiram o papel de protagonistas na defesa de uma
universidade mais democrática. Foram eles, aliás, os precursores do I Seminário
Pró-Cotas, realizado duas semanas após a publicação da portaria e resultado da
parceria entre dois movimentos: o Coletivo de Estudantes Negros e Negras da
UFF Iolanda Oliveira e o Coletivo Pró-Cotas. Com o apoio do grupo“Pretos sem
Nome”e de outros estudantes independentes, os universitários negros se mobi-
lizam para pressionar os colegiados por meio da participação em reuniões inter-
nas, conversas com professores simpatizantes da causa e até mesmo protestos
emeventosacadêmicos.Emumdeles,naAntropologia,osalunoslevaramcarta-
zes com citações racistas de professores que buscavam inviabilizar as discussões
para adoção da política.
24
	 “Nenhum professor assume o posicionamento contrário às cotas, ele
prejudica a garantia de direitos à medida que cria uma série de burocracias. Dis-
cutirascotasnuncaéumaprioridadenareuniãodocolegiado,aindaqueotema
esteja na pauta.‘Fica para a próxima reunião’, eles anunciam,‘porque não pode-
mos instituir às pressas’; mas eu questiono a que pressa se referem. São 13 anos
devigênciadascotasnopaís.Apósgraduaçãoestá,naverdade,atrasada.Houve
muita dedicação dos graduandos em acompanhar discussões que sequer fa-
ziam parte de suas áreas de formação. Os mesmos que militavam na História,
articulavam na Antropologia, por exemplo, e compartilhavam informação para
difundir o debate em diferentes colegiados. A nossa presença causava constran-
gimento nos professores. Os contrários não queriam ser mal vistos, e os favorá-
veis precisavam mostrar, na prática, que realmente desejam ver diversidade na
Pós-graduação”, conta Aline Maia, mestranda em Antropologia.
	 No PPGA, os estudantes participaram da comissão que elaborou a pro-
posta de edital com ações afirmativas e, mesmo sem poder de voto, estiveram
presentes ao longo do extenso debate que definiu os parâmetros do programa,
reforçando a importância das medidas e fazendo o contraponto ao posiciona-
mento mais conservador de alguns professores. Como resultado, conquistaram
aaprovaçãode30%dereservadevagasparanegros,comadicionaldeumapara
deficientes e duas para indígenas (que terão direito à aplicação de prova oral),
além da suspensão da prova de idioma estrangeiro e a reformulação da conces-
sãodebolsas.Apartirde2017,haveráumnovoprocessoseletivoentreosclassi-
ficados para aquisição do auxílio, de acordo com critérios socioeconômicos.
	 Enquanto conciliam a comemoração das conquistas com o diálogo
junto a outros colegiados, os militantes das cotas na Pós-Graduação avaliam o
quanto ainda é preciso avançar. A falta de representatividade com a qual convi-
vem na comunidade acadêmica mostra-se desafiadora diante de números tão
excludentes. Negros representam 28,9% dos estudantes de Mestrado e Douto-
rado das universidades, o que equivale a 112 mil alunos. Os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013 revelam ainda que os es-
25
4
O Censo 2010 do IBGE aponta que pouco mais de 817 mil pessoas se autodeclararam indígenas, o equiva-
lente a 0,42% do total da população brasileira naquele ano, que somava 190,6 milhões de habitantes.
tudantes pretos somam apenas 18,8 mil, enquanto brancos são 270,6 mil. Um
levantamento divulgado em 2015 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
CientíficoeTecnológico(CNPq)apontaquedas91milbolsasdeformaçãoepes-
quisa do instituto em janeiro do mesmo ano, 26% eram destinadas a estudantes
negros,contra58%concedidasaosbrancos.Opercentualdeindígenasnãoatin-
ge 1%4
, e cerca de 11% dos bolsistas não declararam raça.
	 A Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (Proppi) estuda
a implantação das cotas por meio de um grupo de trabalho com o corpo do-
cente. O GT foi constituído como encaminhamento do Seminário “Política de
Ações Afirmativas”, promovido em julho, pela Proppi. Fundadora do Programa
de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) e integrante do GT,
a professora Iolanda de Oliveira explica que a equipe elabora um mapeamento
dos 80 programas de pós-graduação vigentes, a fim de identificar a presença do
negro nas turmas e entre os candidatos.
	 “Coletamos questionários em todos os 80 programas para, com base
nestes dados, compreender a particularidade de cada um e definir a porcenta-
gemideal,commaiorincentivoaoscursosnosquaisosnegrossãomaisescassos
ou sequer compõem as turmas ou até mesmo não se inscrevem. É possível que
a UFF aprove 80 editais diferentes, mas realmente eficazes em assegurar a igual-
dade de direitos”, conta.
	 Segundo a pesquisadora, a UFF não pode cometer no Mestrado e no
Doutoradoosmesmoserrosverificadosnagraduaçãodevidoaostermosdefini-
dos pela Lei 12.711/12.
	 “A Lei de Cotas se mostrou um retrocesso para a população negra ao
condicionar a questão racial à escolaridade na rede pública, desconsiderando a
cota étnica constitucional como medida de reparação histórica. Por conta disso,
a UnB (Universidade de Brasília), por exemplo, reduziu de 20% para 5% a reserva
de vagas a negros. Classe e raça se cruzam, mas são fatores autônomos. O racis-
26
mo é vivenciado tanto pelo negro da rede pública quanto pelo da rede privada.
Queremos que na pós graduação a cota racial seja aplicada independente da
origem de ensino desse estudante e, por isso, me sinto orgulhosa de participar
da estruturação dessa política.Vemos hoje uma abertura ao tema que eu nunca
havia vivenciado em mais de 30 anos numa universidade que sempre demons-
trou uma posição mais conservadora”, pontua.
	 Sancionada pela presidente Dilma Rousseff em agosto de 2012, a Lei
de Cotas determinou a reserva de 50% das vagas ofertadas para as ações afir-
mativas em favor das populações negra e indígena no quesito étnico, de baixa
renda e oriunda do ensino básico na rede pública. O ajuste poderia ser feito de
forma gradativa, com a adesão inicial de 12,5%. A cada ano a instituição deve-
ria acrescentar este mesmo percentual ao cálculo. Seguindo este modelo, a UFF
realizou o ingresso de 2013 com o valor mínimo, passando aos 25% em 2014,
37,5% em 2015 e, finalmente, 50% em 2016 em todos os cursos da graduação.
Para concorrer pelas ações afirmativas, todos os candidatos devem ser egressos
do Ensino Médio na rede pública e podem optar por uma entre três ramifica-
ções (ver Figura 1): cota para ensino público, para o qual são destinadas metade
das vagas reservadas; cota social, que leva em conta os candidatos cuja renda
familiar é igual ou inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa (aproximadamente
R$1.320,00); e a cota racial, voltada a pretos, pardos e indígenas considerando
ounãoocritérioeconômico.Opercentualétnicoécalculadoconformeosdados
populacionais do IBGE na unidade federativa onde a instituição está situada. Se-
gundo o instituto, 79,2% dos estudantes de 15 a 17 anos do Rio de Janeiro estão
matriculados no ensino público, o que equivale a 530.374 jovens.
DistribuiçãodevagasreservadasconformeaLeide
Cotas
27
	 OscritériosdefinidospelaLeideCotasdividiramopiniõesatémesmoen-
tre os defensores da política. Por um lado, a determinação significava um avanço
histórico por tornar a adoção obrigatória, já que das 59 instituições federais, so-
mente 36 ofereciam algum tipo de ação afirmativa, entre as quais 25 considera-
vam o diferencial étnico para pretos, pardos ou indígenas. Em contrapartida, a lei
restringiu a aplicação da cota racial ao condicioná-la à origem na rede pública de
ensino.Esperava-sequealegislaçãoseguiriaoparecerdoSupremoTribunalFede-
ral (STF), o qual havia aprovado, meses antes e por unanimidade, a constituciona-
lidade das cotas raciais, com o objetivo de superar as desigualdades provocadas
peloracismo,tendoaUnBcomoreferênciaemodeloaserseguido.Adiscussãodo
tema começara em 2008 quando o Partido Democratas (DEM) recorreu à Justiça
sob o pretexto de que, ao diferenciar brancos e negros, a política feria a Constitui-
28
ção Brasileira, que versa a respeito da igualdade entre todos os cidadãos. O STF,
no entanto, se valeu da mesma legislação para julgar em favor da necessidade
de viabilizar condições para que a população negra também tenha garantido o
acesso à educação de qualidade.
	 AUFFteveachancedesetornarumreferencialquantoàinclusãoracial
em2004,pormeiodeumapropostadeimplementaçãodecotasraciaisformula-
da pelo Penesb. Ao realizar o primeiro Censo Étnico-Racial da história da institui-
ção no ano anterior, os pesquisadores constataram que, entre os 10.968 alunos
matriculados, somente 669 eram pretos. O Censo também revelou que 63,7% do
corpo discente era formado por brancos, seguidos dos pardos com 25,8% e dos
pretos com 4,3%. A partir daquele ano, a Federal Fluminense passou a perguntar
a etnia dos candidatos no momento da inscrição. De acordo com Iolanda de Oli-
veira, a análise racial dos vestibulandos, desde a candidatura até o resultado final,
indicou parcelas significativas de negros entre os aprovados não classificados, isto
é, aqueles que obtiveram notas válidas, porém não suficientes para a quantidade
de vagas em cursos bem disputados, como Medicina e algumas Engenharias. A
proposta recebeu parecer favorável da algumas instâncias administrativas, porém
encontrouresistênciajuntoaoConselhodeEnsinoePesquisa.
	 “A ausência de negros na sala de aula era gritante, como comprovado
no Censo, porém as estatísticas sinalizavam que a reserva de vagas daria conta de
absorverestepotencialnegro.Preferimoscongelaraideiadoquesubmetê-laàre-
provação. Caso tivéssemos obtido sucesso, a discrepância entre brancos e negros
naUFFaindanãoseriatãoacentuadamaisdedezanosdepois”,lamentaIolanda.
	 Uma pesquisa realizada em 2012, último vestibular sem cotas na UFF,
levantou os cursos em que a população negra supera a branca em interesse e
aprovação. São eles Administração (Itaperuna), Enfermagem (Niterói), Pedagogia
(Angra, Pádua e Niterói), Produção Cultural (Rio das Ostras) e Serviço Social (Cam-
pos,RiodasOstraseNiterói).Apresençasereduzàmedidaqueoscandidatossão
aprovados. A Pedagogia lidera (Angra dos Reis e Niterói), seguida pela Psicologia
(RiodasOstras)eoServiçoSocial(CamposeNiterói).Oestudoafirmaqueasáreas
29
Distribuiçãodeingressantesnoprimeirovestibular
comCotasdaUerj
têm em comum a maior empregabilidade, predominante no setor público, cujos
processosdeconcorrênciatêmpotencialdepreconceitoreduzidos.
	 Iolanda colabora com o levantamento ao afirmar que alguns cursos não
registramprocuradapopulaçãonegraporqueaprópriaseleçãoéumapolíticade
discriminação.
	 “O estudante desiste da carreira dos sonhos à medida que avalia a rea-
lidade do curso. A Odontologia, por exemplo, exige aquisição de kit, um material
com itens caros. Os cursos integrais também comprovam isso, já que o candidato
precisaestarnomercadodetrabalhoparasustentarasimesmoouàfamília.Todos
estesfatoresprecisamseravaliadosquandosefalaempolíticadeaçãoafirmativa”,
reforçaIolanda.
	 Referência na região e alvo de inúmeras críticas à semelhança da UnB, a
Universidade Estadual do Rio de Janeiro se tornou a pioneira na adoção de cotas
no ensino superior do país com a aprovação de leis estaduais sob forte ação dos
movimentos sociais. A Lei 3.524/00 destinou 50% das vagas a egressos do ensino
médio na rede pública, e a Lei 3.708/01 instituiu, pela primeira vez, as cotas raciais,
estabelecendo que 40% das oportunidades seriam preenchidas pela população
negra. Com base nessa legislação, em 2003, a Uerj distribuiu a oferta de vagas em
dois vestibulares: um destinado aos candidatos que cumpriram o Ensino Médio
públicoeoutroparaamplaconcorrência.Ascotasraciaisseriamaplicadasemam-
bos.Nestemodelo,63,4%dosaprovadosingressarampelascotas,oquerepresen-
tou 3.116 estudantes. Os demais 36,6%, sem cotas, totalizaram 1.793 alunos (Ver
Figura2).
30
2.114 (43,7% do total) estudantes de escolas públicas
972 (19,7% do total) pretos e pardos que não estudaram em escolas públicas
(atendem apenas ao requisito racial)
1.147 (23,4% do total) outros estudantes da rede pública (atendem apenas
ao requisito da escola pública)
997 (20,3% do total) pretos e pardos oriundos da rede pública (atendem aos
dois requisitos)
Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação
	 Após a primeira seleção inclusiva, a Lei 4.151/03 trouxe modificações
aoestabelecerarendafamiliarcomocritérioparacandidaturaaquaisquertipos
de cotas5
. A alteração também definiu uma nova divisão: 45% de vagas reser-
vadas, sendo 20% para estudantes oriundos da rede pública desde o segundo
ciclo do Ensino Fundamental até a conclusão do Ensino Médio; 20% para ne-
gros; e 5% para pessoas com deficiência e minorias étnicas. Quando as cotas
completaram dez anos, a Uerj registrava a entrada de 15 mil cotistas, entre eles
quase sete mil negros (Ver Figura 3).
31
	 “Alémdesteacompanhamentonoaprendizado,aassistênciaabrangeas
bolsas de incentivo à manutenção do estudo, que pode se estender até a forma-
turacasooalunomantenhaacondiçãofinanceiradesfavorável.Ocotistatambém
tem direito, anualmente, a um auxílio no material didático, garantido por meio de
dotação orçamentária específica para este fim. Medidas como essas contribuíram
para que a evasão entre os cotistas seja menor do que entre os não-cotistas. O sis-
Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação
* Dados relativos ao primeiro semestre de 2012
5
Em 2016, o corte socioeconômico socioeconômico da Uerj equivalia a R$ 960,00 mensais per capita.
	 Autora de uma tese de doutorado a respeito das cotas na Uerj, a profes-
soraTeresaCaminha,daFaculdadedeAdministraçãoeCiênciasContábeisdaUFF,
afirmaqueosucessodapolíticanainstituiçãoestadualsedeveadoisfatoresprin-
cipais: a criação de mecanismos em prol da melhoria das condições de estudo do
estudanteeoesforçodocotistaemalcançarresultadosdeumaconquistacustosa.
Através do Programa de Iniciação Acadêmica - o PROINICIAR, a Uerj começou a
ofereceroficinasemdiversasáreasdeconhecimento,comoPortuguês,Inglês,Ita-
liano, Alemão, Informática, além de atividades culturais. Até 2008, a participação
doscotistaseraobrigatória.Atualmente,asoficinasestãoacessíveisatodososalu-
nos de graduação, porém cerca de 60% são destinadas aos alunos da reserva de
vagas.Nosegundosemestrede2014,1.413estudantesparticiparamdasoficinas.
32
temadecotas,semumapolíticadepermanência,corresériosriscos”,avaliaTeresa.
	 O rendimento dos estudantes cotistas derrubou fortes argumentos utili-
zadosparadeslegitimarasaçõesafirmativasnaeducaçãosuperior,comoaqueda
na qualidade do ensino devido à entrada de alunos‘menos preparados’e a pers-
pectiva de que, por não conseguirem acompanhar o ritmo da turma, os cotistas
desistiriam do curso. ParaTeresa, a assistência estudantil aliada ao esforço pessoal
dosalunostêmcomprovado em números por que motivos a Uerj é reconhecida
como referência (Ver Figura 4).
Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação
	 Embora reconheça o indício de sucesso da política na pioneira Uerj, o
professor JulioTavares lembra que o processo se mostrou gradativo na UFF, devi-
doàresistênciaaumsistema‘maisradical’.Asaçõesafirmativascomeçamaganhar
formanaUniversidadeem2007comaimplantaçãodaPolíticadeAssistênciaEstu-
dantil(PAS)edoProgramaNacionaldeAssistênciaEstudantil(PNAES),queregula-
mentaram a concessão de bolsas de alimentação, apoio emergencial, treinamen-
33
to, auxílio-creche, auxílio-moradia e auxílio-alimentação. Somente em 2009, a UFF
consolidaabonificaçãonanotadoscandidatosegressosdoEnsinoMédionarede
pública, modelo aplicado até hoje na Universidade de São Paulo e (USP) e na de
Campinas (Unicamp). Segundo o regulamento, o aluno deveria acertar ao menos
50%dasquestõesdaprimeirafasedovestibularparaganhar10%debônussobre
ocálculodasduasetapasdoconcurso.Assim,aturmadeMedicinade2011setor-
nou a primeira entre as federais do Rio de Janeiro a contar com dez alunos oriun-
dosdaredepúblicadeensino.Em2012opercentualdabonificaçãoduplicou.
	 “A Universidade reuniu uma equipe de matemáticos em busca de uma
porcentagem ideal. No entanto, os estudos relacionados às ações afirmativas no
Brasilenoexterioracenavamemdireçãoàrelevânciadosvaloresqualitativos.Nos
Estados Unidos, por exemplo, a prioridade não é o número exato de negros que
vão ingressar, e sim a importância da presença do negro na universidade, quais
saberes e valores culturais ele trará. Da forma como adotamos, houve mudanças,
porémsemaautorreflexão.Elatemseformadorecentemente,comascotas”,conta
Julio. Estudos da Unicamp verificaram uma distribuição desigual dos candidatos
beneficiados pela bonificação: os cursos menos concorridos apresentam maior
quantidade de ingressantes, enquanto as graduações mais disputadas permane-
cemintactas.
Essa assimetria é fácil de entender. Imaginemos que o
bônus consiste em adicionar 20 pontos a alunos oriun-
dos da escola pública e que para o curso de Pedagogia a
nota de corte no vestibular (acima da qual o candidato é
aprovado) seja 100 e para o curso de Medicina seja 400. O
bônus de 20 pontos confere ao candidato ao curso de Pe-
dagogia uma vantagem muito maior, 20% da nota de cor-
te, do que ao candidato ao curso de Medicina, para o qual
o bônus corresponde apenas a 5% da nota de corte. Isso
não ocorre nos sistemas de cotas em que as reservas são
aplicadas a cada curso e turno, pois nesse caso a presença
do grupo de beneficiários é nominalmente garantida pelo
procedimento, a despeito das notas e outros procedimen-
tos de entrada (DAFLON & FERES JUNIOR, 2014, pág. 37).
34
	 Para Teresa Caminha, a bonificação apresenta resultados tímidos, sem
asseguraroacesso,poisnãonãoexisteumadeficiênciadeaprendizadopadrão.
	 “A defasagem é herdada de diferentes ofertas de ensino, que têm, igual-
mente, graus de problema distintos. Do mesmo modo, as condições das famílias.
A reserva de uma quantidade de vagas, ainda que não elimine essas diferenças,
oferece melhores condições da proposta de inclusão. Por hipótese, podemos ter
umabonificaçãoqueserásuperadaportodososcandidatosnãobeneficiados,in-
viabilizando a inclusão. Isto me parece matematicamente possível”, analisaTeresa,
que fará, a partir de 2017, pesquisa semelhante definindo a UFF como objeto de
estudo. De pronto, a especialista assevera que ainda é cedo para apontar grandes
resultadosnaFederalFluminense,vistoqueasprimeirasturmasformadaspelare-
servadevagasconcluemagraduaçãonosegundosemestrede2016. “Sãotrajetó-
rias muito distintas.Vamos analisar como a UFF se comporta com a Lei de Cotas e
comotemformuladoaassistênciaestudantil”,acrescenta.
	 Osnúmerosacenamqueapopulaçãonegraeapopulaçãodebaixaren-
da devem crescer de forma efetiva à medida que as universidades federais cum-
pram o valor máximo delimitado às cotas. Ou seja, se o percentual de 50% na re-
servadevagaspassouaseraplicadoemtodasasfederaisem2016,asturmascom
formatura prevista para 2019 terão o reflexo idealizado. Isso porque, mesmo com
políticasisoladas,asaçõesafirmativastêmproporcionadooaumentodarepresen-
tatividade da população negra na graduação. Em 1997, o Ministério da Educação
contabilizava apenas 1,8% de jovens pretos e 2,2% de pardos entre 18 e 24 anos
cursando ou com diploma universitário. De acordo com levantamento divulgado
emagostode2016pelaAssociaçãoNacionaldosDirigentesdasInstituiçõesFede-
raisdeEnsinoSuperior(Andifes),operfildoestudanteuniversitáriotemsemodifi-
cado(VerFigura5).
35
	 Na UFF, a disposição dos dados raciais mais recentes dificulta uma ava-
liação mais conclusiva sobre a distribuição populacional, visto que os percen-
tuais de aluno que não informam ou não declaram a que etnia pertencem são
bastante altos. Apesar desse fator, a comparação entre o Censo Étnico de 2003 e
os dados do Sistema de Informação referentes a 2016 indica alteração no perfil
do graduando nos cursos tidos como os mais concorridos da universidade no
ano base: Medicina, Comunicação, Biomedicina e Direito, respectivamente (Ver
Figuras 6, 7, 8 e 9).
RepresentatividadeÉtnico-RacialnoCursodeMedicina
Perfil do Universitário entre 2003 a 2014
36
RepresentatividadeÉtnico-RacialnoCursodeBiomedi-
cina
RepresentatividadeÉtnico-RacialnoCursode
ComunicaçãoSocial
37
RepresentatividadeÉtnico-RacialnoCursodeDireito
*O curso de Direito, em 2016, também é oferecido em Macaé e Volta Redonda
	 Tendo como base os números relacionados aos cotistas, a instituição
também demonstra crescimento da população preta e parda. De 2014 para
2015, a UFF apresentou um salto quantitativo de 460 para 6.192 alunos cadas-
trados na política, sendo que a maioria está inserida no recorte racial (Ver Figura
10).
TotaldeAlunosnosProgramasdeReservadeVagas
Fonte: IdUFF- Sistema Acadêmico de Graduação da UFF
38
ComunicaçãoSocial
	 Secompararmosoingressodecotistasentre2013,anodeaplicaçãode
12,5% de cotas, e em 2016 com 50%, poderemos analisar um crescimento que
tende a se intensificar (Ver Figuras 11, 12, 13 e 14).
Distribuiçãodevagasdeacordocomaaplicação
daLeideCotas
Medicina
39
Biomedicina
Direito
AC: Vagas preenchidas por ampla concorrência;
Cota Social 1 = Ensino Médio cursado integralmente em escolas públicas e renda
familiar inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa;
Cota Racial 1 = Pretos, pardos e indígenas com Ensino Médio cursado integral-
mente em escolas públicas e renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo por pes-
soa;
CotaEscolaPública1=EnsinoMédiocursadointegralmenteemescolaspúblicas,
Legenda:
40
	 Mais do que uma transformação quantitativa, os estudantes negros da
UFFtêmampliadosuarepresentatividadecominiciativasquebuscamdarvisibi-
lidadeademandasprópriase agregarindivíduos.Nessesentido,2016setornou
um marco com a realização da I Calourada Preta, durante a Semana de Acolhi-
mento Estudantil do primeiro semestre letivo. Com mostras de filmes, rodas de
conversa, oficinas e palestras, os participantes discutiram temas como a saúde
da população negra, a estética como empoderamento, a realidade da mulher e
do LGBTT negro.
	 “Foi uma iniciativa para dar boas vindas ao estudante preto e alterar
esta primeira impressão da universidade como um ambiente excludente. Re-
sultou em uma oportunidade de trocar experiências. Pudemos conversar sobre
nossavidaecriarvínculos.Havianegrosnauniversidade,masquenãoseconhe-
ciam. A partir dali, passamos a andar mais juntos, a nos comunicar a respeito dos
nossos desafios e nos articular politicamente”, conta Matheus Cabral, aluno da
História e integrante do Pretos Sem Nome.
	 Diante das manifestações de repúdio à PEC, que pretende congelar os
investimentos do Estado em educação e saúde pelos próximos 20 anos, o gru-
po criou, em novembro, a Ocupação Preta, com a apropriação de uma estrutura
abandonada no campus do Gragoatá, ao lado da livraria. Os estudantes trans-
formaram a construção em um espaço de convivência onde dormem, fazem
refeições e promovem atividades culturais, entre elas oficinas de pintura e con-
tação de história sobre mitologia africana com crianças da creche universitária
FONTE: Coordenação de Seleção Acadêmica (COSEAC-UFF)
sem recorte de renda;
Cota Racial 2 = Pretos, pardos e indígenas com Ensino Médio cursado integral-
mente em escolas públicas, sem recorte de renda;
CotaEscolaPública2=EnsinoMédiocursadointegralmenteemescolapública,à
exceçãodasunidadesfederais,militares,deaplicaçãoeuniversitárias.Estaopção
equivalia à bonificação aplicada pela UFF antes da Lei de Cotas e foi suspensa a
partir do processo seletivo de 2015.
41
e comunidades adjacentes, rodas de leitura de autores negros, aulas com pro-
fessores que apoiam o movimento, encontro de poesia com artistas negros, etc.
Valendo-se do conceito de“aquilombar-se”6
trabalhado por Abdias Nascimento,
enxergam a ocupação como um“espaço de cura”, onde podem compartilhar ex-
periências e ajudarem-se uns aos outros.
	 Desde a reunião que desencadeou a ocupação, os estudantes proje-
tam a permanência no local, com a aquisição definitiva junto à Universidade. O
grupo já deu início a estudos para aprimorar as condições de salubridade, devi-
do à inexistência de banheiros e à escassez de água, e está esperançoso quan-
to à resposta da UFF em favor da manutenção do espaço com os estudantes. A
expectativa é expandir as ações aos funcionários terceirizados e a moradores de
áreaspróximas,comaulasdereforçoescolar,oficinasdemúsicae,alongoprazo,
um pré vestibular comunitário. Mesmo em pouco tempo, a Ocupação recebeu
representantes do movimento Black Lives Matter, que denuncia a violência poli-
cial contra a juventude negra nos Estados Unidos.
	 “Sabemos que a população preta será a mais afetada pelas consequ-
ências da PEC, dentro e fora da universidade. Independente da resolução que
tivermos em nível nacional e da retomada das aulas, vamos manter a Ocupação.
Ela nos é necessária como espaço onde podemos falar de vivências não con-
templadas pelas ementas das disciplinas, onde encontramos quem nos ouça e
compreenda sem debochar dos nossos problemas ou nos acusar de ver racismo
em tudo. Estamos aqui para falar dele sim, porque não queremos que ele exista.
Quem se incomoda com o nosso discurso provavelmente é beneficiado por ele.
Temos muito a dizer e contamos com os estudantes não negros nesse processo.
Queremos que eles saibam o porquê de estarmos aqui”, enfatiza Lorena Gomes,
de Ciências Sociais.
6
Aquilombar-se é, portanto, uma ação contínua de existência autônoma frente aos antagonismos que se
caracterizam de diferentes formas ao longo da história dessas comunidades, e que demandam ações de luta
ao longo das gerações para que esses sujeitos tenham o direito fundamental a resistirem e existirem com
seus usos e costumes. Esse existir tem um movimento fortemente voltado para a coletividade, para os laços
que unem os quilombolas entre si e que, num movimento mais amplo, une as comunidades de distintas
regiões. (SOUZA, Barbara Oliveira, 2008, pág. 11)
42
	 MesmocomtantosdesafiosdiáriosnosespaçosdaUniversidade,oses-
tudantes negros buscam aplicar o ideal de coletividade em defesa daqueles que
ainda sonham e lutam por uma vaga no ensino superior público. Isso porque
as fraudes nas cotas têm colocado em risco o cumprimento das ações afirma-
tivas em favor do público ao qual se destinam. Instituições renomadas como a
Uerj e as federais do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Espírito Santo (UFES) regis-
tram, desde 2014, denúncias de uso da medida por candidatos que se autode-
claram negros durante a seleção, contudo não pertencem a tal grupo social. A
repercussão em nível nacional acentuou os debates sobre a autodeclaração se
mostrar um critério insuficiente para a ocupação das vagas reservadas, quando
aplicada de forma exclusiva. Durante a votação de 2012, o STF considerou que o
candidato deveria ter aparência de negro para concorrer às cotas raciais, ou seja,
apresentarcaracterísticasdefenótiponegro,comocordapele,texturadocabelo
e traços físicos, em detrimento do genótipo, que leva em conta a composição
genética.Contudo,aLeideCotasnãoincluiemseutextocritériosacercadafisca-
lização.Sendoassim,cadauniversidadetemoptadopelométodoquejulgamais
adequado para avaliar ou não os candidatos.
	 ApóssernotificadapeloMinistérioPúblicosobre27casosdefraudeno
cursodeMedicina,aUniversidadeFederaldePelotas(UFPel),instituiuumgrupo
formado por professores, alunos e militantes do movimento negro para levantar
informações e entrevistar os acusados, o que resultou na redução do número
de denúncias. A comissão comprovou o uso indevido da cota por candidatos
brancos, todos expulsos da instituição no final de dezembro. A Reitoria da UFPel
secomprometeuaabrirumnovoeditalparareocuparasvagas,direcionando-as
a estudantes negros que chegaram a iniciar uma Faculdade de Medicina, mas
que precisaram abandonar as aulas devido a dificuldades financeiras, deixando
o exemplo de que, além de combater a fraude, a Universidade deve reparar os
danos causados por ela. Os coletivos negros da UFF formularam proposta se-
melhante, após constatarem turmas de 2015 e 2016 que não apresentam qual-
queringressantenegroouaindapossuemalunosnegros,porémaprovadossem
43
A discussão de ações afirmativas para a população negra
tem criado certa mudança comportamental nos indivídu-
os com ascendência negra, mas socialmente identificados
como brancos, quer pela distância entre eles e seus ascen-
dentes negros, quer pela famosa obra da natureza que
permite, a uma família mista, ter filhos brancos ou negros.
Todos esses fenômenos no contexto do racismo estrutural,
que permeia as relações sociais, permitem a alguns indi-
víduos sentir ou entender que, no momento de programas
positivos, seu recalque ou desespero, por terem na família
membros negros ou por estarem em constante alerta para
apresentarem-se socialmente como brancos, agora deve ser
considerado para uma, talvez, compensação de dores (BER-
TULIO, 2007, pág. 54)
	 Como esperado, divulgar o cenário de fraudes não desencadeou o
apoio da comunidade acadêmica em coibir os brancos praticantes de falsidade
ideológica, e sim acarretou mais desgaste aos militantes negros. Opositores às
utilizar a cota racial. Somente no curso de Relações Internacionais, um dos mais
visados, o grupo apurou 12 pessoas brancas beneficiadas de forma indevida
pela cota racial. Até dezembro de 2016, a contagem de fraudes se aproximava
dos 100 casos. O movimento pretende levar as denúncias à Reitoria e sugere a
formação de uma comissão de aferição, composta por professores, técnico-ad-
ministrativos e estudantes, que farão entrevistas com os ingressantes cotistas no
momento da matrícula.
	 Para os coletivos, o fenômeno explicita as nuances do racismo brasilei-
ro. Num primeiro momento, a sociedade desprezou a necessidade de políticas
públicas destinadas à população negra, valendo-se de argumentos como a ine-
xistência de racismo no país, o mito da democracia racial ou até mesmo a difi-
culdade de definir quem é ou não negro por conta da miscigenação. À medida
que as cotas raciais se consolidam através da lei, outros artifícios passam a ser
utilizados para inviabilizá-la, entre eles a alegação de ascendência familiar, como
comenta Dora Lucia Bertulio.
44
ações afirmativas étnicas chegaram a acusá-los de querer estabelecer um“tribu-
nal racial”no processo seletivo, argumento recorrente nos debates pró-cotas da
década de 1990, que apela a uma suposta dificuldade de identificar o indivíduo
pardo.
	 “Voltamos ao discurso da democracia racial consolidado por Gylberto
Freire e amplamente difundido como projeto político dos governos da época e
seguintes. Quase cem anos depois da publicação (do livro Casa Grande & Sen-
zala), tal ideia de nação miscigenada, nas quais os conflitos raciais inexistem,
permanece no imaginário popular. Contudo, sabemos que a escolha de deter-
minados argumentos é proposital. Garantir a presença do negro no espaço de
maior privilégio - que é a produção de conhecimento - não se configura como
prioridadenanossasociedade,porqueelanãodesejaquesurjadeumintelectu-
alnegroatesequepodevigorarnoBrasildospróximosanos.Eofalseamentoda
noção de pertencimento social vem desse jogo, com a problemática do pardo.
Mas nós sabemos quem é negro e quem não é, quem é pardo e quem não é. A
leitura racial ocorre pela sua marca. Não há dificuldade em reconhecer o negro
na hora de praticar o racismo; a questão torna-se um problema somente quan-
do buscamos a garantia de direitos”, explicam os representantes dos coletivos e
estudantes negros independentes7
.
	 De acordo com a Professora Iolanda de Oliveira, as universidades po-
dem enfrentar o mau uso das cotas raciais tendo como respaldo a Orientação
Normativa Nº03, publicada pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento
e Gestão, em agosto de 2016, que regulamentou a aferição de veracidade dos
candidatosacotasraciaisnosconcursospúblicos.Alegislaçãoestabelecequeas
comissões atuem antes da homologação do resultado final, analisando, presen-
cialmente, os aspectos fenotípicos do candidato negro que se autodeclarar pre-
tooupardo. Areservadevagasnoserviçopúblicovigoradesde2014,conforme
7
Os estudantes que abordam a questão das fraudes não foram identificados por nome e curso com o intuito
de evitar possíveis represálias, que já têm ocorrido contra alguns deles.
45
a Lei 12.990, que determina 20% de cotas raciais nos concursos. Iolanda ressalta
ressalta que as comissões objetivam garantir o cumprimento de uma política de
reparação e não definir quem é ou não negro.
	 “Raça é um conceito social, não biológico. Por conta disso, o STF não
considera os critérios de genótipo, pois sabemos que a raiz do ser humano é
africana, ou seja, todos nós, brancos ou negros, podemos ter genes de origem
africana.Oqueasociedadeprecisacompreenderéqueumapolíticapúblicavol-
tada a um grupo social historicamente excluído deve cumprir tal função e ser
aplicada para que esta desigualdade seja superada. Sendo assim, não importa
o pai negro, o avô negro, o primo negro, pois ninguém na rua pergunta a cor
dosfamiliaresantesdepraticarracismo.Nemnalojaondeonegroéperseguido,
tampouco na vaga de emprego para a qual ele é preterido. O racismo no Brasil
se constitui devido às características negras do indivíduo, portanto, podemos
reconhecer a negritude autodeclarada, mas a política de reparação deverá ser
assegurada a quem é, de fato, afetado pelo racismo”, explica.
46
AçãoafirmativanoBrasilenoMundo
	 O conceito de ação afirmativa vem da Índia, cuja legislação incorporou,
três anos após a independência, a reserva de vagas nos espaços de decisão, no
serviço público e nas universidades, com o objetivo de reduzir as desigualdades
socioeconômicasprovocadaspelosistemadecastas.Aspolíticasganharamvisibi-
lidademundialnasdécadasde1970e1980,quandoosEstadosUnidosinstituíram
tais práticas na contratação e formação de empresas, participação de negros na
publicidadeepromoçãodeconsciênciaracial,deformaaestimulartodaapopula-
çãoarefletirsobreocombateaoracismo.OpresidenteLyndonJhonsondiscursou
em favor da política ainda em 1965, afirmando que apenas a garantia dos direitos
civis,principalfocodasmobilizaçõespopularesdaépoca,nãoseriasuficientepara
enfrentar a discriminação:“Você não cura as cicatrizes de séculos apenas ao dizer:
‘agora vocês são livres para ir aonde querem, fazer o que desejarem e escolher os
líderes que lhes aprouverem’.Você não pode pegar um homem que passou anos
acorrentado, libertá-lo, trazê-lo para a linha de partida de uma corrida, e dizer:
‘você está livre para competir com os outros’, e acreditar que você está sendo jus-
to... Este é o próximo e mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Não
buscamos apenas liberdade, mas também igualdade de oportunidades, (...) não
apenas igualdade como um direito e uma teoria, mas igualdade como um fato e
como resultado”. Com base no exemplo estadunidense, África do Sul e Colômbia
implementaram políticas de igualdade racial, como também promovem até hoje
Malásia,China,SriLanka,IrlandadoNorteeCanadá.
	 No Brasil, as ações afirmativas mais antigas remetem à Lei de Terras de
1850, que concedia facilidades à aquisição de território aos imigrantes europeus,
com a pretensão de substituir a mão de obra negra e escravizada pela branca e
assalariada.ImpulsionadapelasteoriasracistasdoséculoXIX,quedefendiamasu-
perioridadedebrancossobrenãobrancos,apolíticaseconstituiucomoestratégia
paraexecutaroidealdeembranquecimentodapopulaçãobrasileiratantonasca-
racterísticas físicas quanto nas culturais e, consequentemente, impedindo que os
47
escravizados almejassem,apósaliberdade,umasociedadenaqualpudessemser
reconhecidos como construtores do país. Como resultado, os negros livres foram
privados de políticas de acesso à educação e reinserção no mercado de trabalho
como cidadãos, o que resultou na predominância negra entre a população mais
pobredopaís,noensinopúblico,notopodosrankingsdeanalfabetismoenabase
das estimativas de rendimento. Estes e outros fatores impulsionaram vertentes
do Movimento Negro a pleitear a inclusão social e reparação histórica. Na déca-
da de 1930, a Frente Negra Brasileira emergiu na luta antirracista questionando,
sobretudo,airrisória presençadenegrosnomercadodetrabalhoformaledenun-
ciandoórgãospúblicosquesenegavamaformarquadrosmaisigualitários.AFNB
priorizava a educação como caminho necessário à inclusão étnica, com a oferta
de cursos profissionalizantes em filiais nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul. A FNB
divulgava suas ideias em debates, passeatas e pelo jornal“A Voz da Raça”, criado
em 1933, e chegou a registrar-se como partido político, porém sofreu a repressão
da ditadura de Getúlio Vargas. Em 1944, a mobilização ganhou cunho cultural
a partir da formação do Teatro Experimental do Negro, pelo escritor e professor
Abdias Nascimento, como iniciativa de modificar a dramaturgia, constituída por
atoresbrancos.OTENestreounoanoseguinte,levandonegrosaopalcoeàplateia
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez. Pela atuação de Abdias
como deputado e senador, chegou ao Legislativo Federal o primeiro projeto de
açõesafirmativasparaapopulaçãonegra,oPL1.332de1983.Porocasiãodos110
anosdaaboliçãodaescravidão,oescritoreprofessordefendeuanecessidadedas
cotas:“Ação afirmativa ou ação compensatória, é, pois, um instrumento, ou con-
junto de instrumentos, utilizado para promover a igualdade de oportunidades no
emprego, na educação, no acesso à moradia e no mundo dos negócios. Por meio
deles, o Estado, a universidade e as empresas podem não apenas remediar a dis-
criminaçãopassadaepresente,mastambémpreveniradiscriminaçãofutura,num
esforço para se chegar a uma sociedade inclusiva, aberta à participação igualitária
detodososcidadãos”.
	 Apropostaficouestagnadaesofreuorevésdesersubstituídanasdiscus-
sões sobre ações afirmativas pelo PL 73/99 que defendia a reserva de no mínimo
50% das vagas nas universidades públicas federais para estudantes que tenham
48
cursadointegralmenteoensinomédioemescolaspúblicas.Oprojetoanexouou-
trossobreomesmotemaemencionouacotaracialanegroseindígenasemforma
de emenda. A partir dali, a preponderância social se sobreporia à racial. O Movi-
mentoNegro,intelectuaissimpatizanteserepresentantesdasinstituiçõespúblicas
de referência assinaram o Manifesto em favor das cotas raciais no ensino superior,
enviado ao Congresso Nacional em 2006. Mesmo em um governo mais propício
ao debate às demandas da população negra, as cotas étnicas foram excluídas do
texto final do Estatuto da Igualdade Racial divulgado em 2010. A Câmara dos De-
putados aprovou o PL 73/99 em 2008, em moldes semelhantes à definição da Lei
12.711/12.
49
Fotos
Estudantes organizados protestaram durante
evento da Antropologia para reivindicar avan-
ço nas definições das cotas na pós-graduação.
[Outubro 2016]
Pichação encontrada no bloco A do campus Gragoatá, onde são ministradas
aulas dos cursos de Relações Internacionais, Psicologia, Estudos de Mídia e Co-
municação Social. [Novembro 2016]
50
A Ocupação Preta promove atividades sobre as demandas da população ne-
gra com o intuito de fortalecer os jovens e dar visibilidade às suas particulari-
dades. [Dezembro 2016]
Estudantes ocuparam uma estrutura abandonada no campus Gragoatá. [No-
vembro 2016]
51
Reportagem do Jornal O Casarão abor-
dou a ausência de estudantes negros no
Instituto de Artes e Comunicação Social.
[Fevereiro 2013]
Produção dos alunos suscitou debate sobre cotas e ajudou a desmistificar ar-
gumentos contrários à política, como a meritocracia e a maior relevância da
má qualidade da educação pública como fator mais relevante do que o racis-
mo. [Arquivo Jornal O Casarão - Fevereiro 2013]
Intervenção na entrada da Ocu-
pação sugere que os visitantes
reconheçam seus privilégios a
fim de participarem das ações.
[Dezembro 2016]
52
ParteII
Eu,EstudanteNegro
53
BernardoAffonso
Bernardo tem 24 anos e cursa Relações
Internacionais na UFF. Ingressou aos 21,
no segundo semestre de 2013, pelas cotas
destinadas a estudantes do ensino públi-
co. Morador de Santa Cruz, bairro da Zona
Oeste do Rio de Janeiro, viu na distância en-
tre casa e faculdade um dos principais obs-
táculos a adquirir o diploma. Estudar, para
ele, é uma luta diária.
	 Era passar ou passar, a mãe dizia. Reforçava uma premissa que ele já
conheciabem.Nãohaveriarecursosparafinanciarocursopreparatóriopormais
um ano. Durante aquele período comprovou o que já suspeitava. Faltavam con-
teúdos básicos em diversas disciplinas importantes para fazer a prova com se-
gurança devido a um Ensino Médio conturbado na Faetec de Santa Cruz, Zona
Oeste do Rio de Janeiro.
	 “Eu tinha muita dificuldade em Matemática. Não tive a disciplina em
pelomenosumanoemeio.FísicaePortuguêstambémforamretiradasdagrade
durante um ano letivo inteiro. Prejudicou bastante não ter acesso a essas ma-
“Como pensar em ser enge-
nheiro se não sei o básico de
matemática? Não dá nem pra
começar a sonhar, né...”
térias com qualidade, porque te impul-
sionaasedistanciardelas.Comopensar
em ser engenheiro se não sei o básico
de matemática? Não dá nem pra come-
çar a sonhar, né...”.
“Era passar ou passar. Mas não passei!”.
	 Estudaremcasasetornouaúnicaopçãodisponível.“Masimaginauma
54
pessoa que tem dificuldade em várias
disciplinas depender de estudar sozi-
nho para o vestibular”, questiona. 		
	 A cobrança e a pressão da
mãe, professora na rede municipal do
Morador de Santa Cruz, Bernardo utiliza
três meios de transporte para chegar às
aulas, que começam às 7h da manhã.
Para chegar a tempo, sai de cssa com,
pelo menos, três horas e meia de antece-
dência.
o idioma agora em um curso, por-
que na escola era só para dizer
que estava na grade. Tenho uma
prova de Introdução ao Comér-
cio Internacional nesta semana
e 90% das obras da bibliografia
estão disponíveis apenas em in-
glês. Você busca resumos na in-
ternet, pede ajuda a amigos para
traduzir, mas é óbvio que o seu
desempenho não vai ser tão bom,
porque você não tem acesso ao
conteúdo da disciplina. Tem que
correr atrás do básico para tentar
alcançar os colegas”.
	 Se a língua estrangeira atrapalha o rendimento, a Geografia tam-
“É isso o que acontece com os
cotistas em geral. A gente entra
porque uma lei garantiu. Nin-
guém faz questão que a gente
permaneça”.
Rio e única fonte de renda da família, se intensificava à medida que a data da
prova batia à porta.“Se não passar, você vai ter que ir trabalhar”. Nem precisava
abrir a boca, o olhar dela já expressava a realidade. E o único cenário à frente
era um emprego de baixa remuneração pelo resto da vida. Este medo, Bernardo
desabafa, persiste até hoje. Ele ingressou no curso de Relações Internacionais na
UFFem2013,quandojáhavia“desencanadodaideia”.Porémsedeparoucomas
dificuldadesdopósvestibular.Doladodedentrodauniversidade,osobstáculos
também são múltiplos.
	 “A exigência do inglês me atrapalha bastante. Estou aprendendo
55
bém tem sua parcela de culpa. Da
casa, em Santa Cruz, até a univer-
sidade, em Niterói, são 70 quilô-
metros, percorridos por BRT, trem
e um ônibus intermunicipal.
	 “Eu gastava seis horas do meu dia no transporte público. Para che-
gar na aula às 7h, precisava pegar o trem das 4h20, no máximo. A aula ter-
mina às 13h. Se eu parasse para almoçar, chegava em casa às 18h,19h. Por
muitas vezes eu pensei em desistir… Você chega em casa exausto, estressa-
do, não tem força para estudar e ter que fazer tudo de novo no dia seguinte
e prefere dormir. Meu rendimento caiu muito, nunca me senti tão burro.
Demorei a perceber que o problema não era comigo, e sim com uma rotina
cansativa por morar tão longe”.
	 Das cinco disciplinas inscritas, Bernardo passava em duas ou três. A
média de aprovação, no entanto, nunca chamou a atenção da universidade.
	 “O máximo que aconteceu foi receber um aviso do sistema online da
UFF que alertava sobre o risco de perder a matrícula caso eu reprovasse a mes-
ma disciplina mais uma vez. Fora isso, nunca houve qualquer preocupação da
coordenação ou de algum departamento com o meu rendimento. Não sei di-
zer se eles deduzem que eu não gosto de estudar ou coisa do tipo. Mas é isso o
que acontece com os cotistas em geral. A gente entra porque uma lei garantiu.
A rotina desgastante tem afetado o rendi-
mento escolar do estudante de Relações
Internacionais.
Ninguém faz questão que a gente
permaneça”.
	 Matriculado na primeira
fase das cotas, quando a porcenta-
gem mínima era de 12,5%, Bernar-
do encontrou uma versão bem me-
nos preta da que vê hoje.
	 “A primeira impressão que
“Meu rendimento caiu muito,
nunca me senti tão burro. Demorei
a perceber que o problema não era
comigo”
56
eu tive foi: a universidade é uma droga. Era um lugar ao qual eu não pertencia.
Uma turma de 40 alunos e você como o único negro. E eu sequer era cotista
racial, havia optado pela categoria social, que oferecia mais vagas. Tive dois pro-
fessoresnegrosemtrêsanosdecurso.Opapelsocialdosnegrosnauniversidade
é na limpeza, no bandejão, nos espaços de pouco poder. Daí a importância de
ampliarmos o acesso às bolsas de iniciação científica aos cotistas e alcançarmos
políticas de ação afirmativa na pós graduação. Precisamos de professores pretos
para ter uma universidade mais democrática de fato”.
	 Nostrêsanosquesepassaram,apresençadeestudantesnegrossetor-
nou mais nítida. Mas, para comemorar, Bernardo ainda enxerga uma a jornada
longa e que ultrapassa questões quantitativas. O racismo continua a se reprodu-
zir, de segunda a sexta, dentro ou fora de sala.
	 “Racismo é tabu. No meu curso, quando querem discutir preconceito,
preferem falar da intolerância religiosa dos europeus contra os árabes. É mais fá-
cil criticar o que está distante do que aquilo que é perpetuado debaixo do nosso
nariz. Aliás, essa técnica de silenciamento é a principal arma do racismo velado
praticado pelos colegas de sala. Se você questiona o fato de que existe apenas
uma disciplina sobre os países africanos e que todos os pensadores de Sociolo-
gia são brancos e ocidentais, torna-se o preto chato, que vê racismo em tudo.
A galera apela para a máxima ‘Somos Todos Iguais’, como se o racismo já não
existisse. Mas ele está ali, sendo reproduzido dia após dia”.
57
TainaraCardoso
	 A gonçalense de 23 anos atribui à
irmã a “culpa” pelo interesse em Psicologia. A
caçuladafamíliasofreucomplicaçõesdopar-
to e adquiriu algumas debilidades cognitivas.
“Queria ser útil para pessoas como ela”, afir-
ma.AoingressarnaUFFnosegundosemestre
de2012,sedeparoucomacarênciadeprofis-
sionaisnegrosjánasaladeaula,sejaemmeio
aosalunosouaosprofessores.Emaisumasé-
rie de preconceitos que precisam ser derruba-
dos. Ao que depender de sua determinação e
ativismo,poucosrestarão.
	 Os‘olhinhos’dascriançasbrilhamaoouvi-lafalar. “Tia,euseibemoque
é isso. Aconteceu comigo também”. Essas são afirmações frequentes nas ofici-
nas que Tainara Cardoso ministra em escolas da rede pública de São Gonçalo,
município onde mora. Há um ano, o Projeto África em Nós articula uma rede de
amigos para debater temas ligados à negritude, com o objetivo de explicar as
facetas do racismo e incentivar crianças e adolescentes a amarem a si mesmas,
respeitarem-se umas às outras e acreditarem em seu potencial.
	 O prazer em fortalecer os mais novos tem origem nas lições recebidas
em casa. Sempre que visitavam as proximidades da UFF, os pais de Tainara afir-
“A Universidade é o lugar da
diferença. Se alguém se torna
referência simplesmente por ser
negro, é porque nossa presença
ainda está muito contável”.
mavam, com bastante convicção:
“Tá vendo aqueles prédios ali? É
onde você vai estudar!”. O coração
da jovem se dividia entre a alegria
deteraconfiançadafamíliaeapres-
58
são de não decepcioná-la.
	 “Eles enfatizavam que meu ingresso no ensino superior seria nossa
única chance de ascensão social. Não é uma questão de status, e sim uma ne-
cessidade. Minha família via em mim a chance que ninguém teve antes. Apesar
de toda a expertise, meu pai, que é construtor civil, mal terminou a quinta série”,
contaTainara,quealémdebaterorecordedepioneiranauniversidade,também
se tornou uma das primeiras a concluir o Ensino Médio.
	 ContarsobreosprimeirospassosrumoaocampusdoGragoatáfazres-
surgir as lembranças de tempos difíceis, de sacrifício e preocupação. Do Ensino
Fundamental II ao Ensino Médio, Tainara enfrentou três greves na rede pública.
Com a última delas às vésperas do vestibular, matricular-se num curso prepara-
tório era a única saída.
O África em Nós desenvolve atividades nas escolas públicas de São Gonçalo,
destrinchando o racismo com crianças e adolescentes. Entre os principais te-
mas abordados estão o genocídio da juventude negra e a representatividade .
59
	 “Nãotínhamosdinheiroparapagarocurso.Meofereciparalavarlouça,
passar pano, varrer, qualquer tarefa útil em troca de uma bolsa de estudos. De-
pois de muito chorar junto aos coordenadores, ganhamos um super desconto,
mas, ainda assim, meus pais tiravam aqueles R$150 de outras contas. De pron-
“No hospital, a pretinha de
cabelo black power nunca é
reconhecida como psicóloga;
no máximo, a enfermeira”.
to senti a carência em certas disciplinas
e passei a morar no curso. Pedia aos pro-
fessores para assistir às aulas em todos os
turnosdisponíveis.Enquantoamentetra-
balhava, o corpo respondia com crises de
insônia, de estômago, emagreci muito. Mas quando você é preto e quer chegar
a algum lugar precisa se esforçar para ser o melhor em tudo”, lembra.
	 Embora ciente dos diversos obstáculos que precisou ultrapassar para
chegar ao ensino superior, Tainara revela que, quando ingressou na UFF, em
2012, cultivava opiniões ainda conflituosas.
	 “Eu me isentava das discussões sobre as cotas, porque não tinha argu-
mentos para questionar os discursos contrários, geralmente tão engessados. Fui
contemplada pela bonificação na nota final para estudantes de escola pública e,
mesmo convicta da necessidade das ações afirmativas, senti, por muito tempo,
um certo peso na consciência”, confessa.
	 O cabelo crespo natural que encanta as crianças assistidas pelo África
em Nós foi um elemento importante no processo de afirmação pessoal. É ato
político, como gosta de afirmar. Entretanto, incomoda e causa estranhamento
nos espaços de poder. Durante estágio no Hospital Universitário Antonio Pedro,
os pacientes apresentavam dificuldade em reconhecê-la como psicóloga.
	 “No hospital, a pretinha de cabelo black power nunca é reconhecida
como especialista; no máximo, a enfermeira. Somos a mão de obra mais bara-
“Quando você é preto e quer che-
gar a algum lugar precisa se esfor-
çar para ser o melhor em tudo!”.
ta que, quando perde a função de
servir, é destinada ao extermínio.
Temos lugares que são determina-
60
Tainara questiona a resistência do curso de
Psicologia a reconhecer as demandas espe-
cíficas da população negra, que é majoritá-
ria nos hospitais psiquiátricos.
dos para nós, e a Universidade
ou o bom emprego não estão
entre eles”, assevera.
	 Seja na experiência
profissional ou no dia a dia
da sala de aula, a sensação
permanece - “A Universidade
é o lugar da diferença”. Única
negra em um semestre com
50 ingressantes, a gonçalense
explica a falta de entendimen-
to dos colegas quanto à reali-
dade da população negra.
	 “Nãoentranacabeça
de certas pessoas que tem to-
quederecolhernomeubairroe,porisso,nãopossoficaratétardenaCantareira.
Meu pai e meu irmão se revezam em me dar carona e, quando escapam de ser
advertidospelo‘comando’,sãoacusadoscomocriminosospelaPolícia.Ninguém
nunca me xingou de‘macaca’ou alguma outra ofensa que geralmente a socie-
dade associa a racismo com mais facilidade. Aqui se reproduz a visão do negro
como o exótico, o espetáculo. ‘Olha como o cabelo e as roupas dela são dife-
rentes; tem uma negra na Psicologia, vamos bater palmas para ela’. Fui a única
graduanda convidada para um evento da Pós sobre questões raciais. Se alguém
se torna referência simplesmente por ser negro, é porque nossa presença ainda
está muito contável. E isso me assusta muito, pois a universidade pública não
aplica o fator público efetivamente. Falta entendimento sobre a nossa realidade.
Daí,selevantamosessesquestionamentos,somoscriticadosporverracismoem
tudo. Sim, matou a questão. Ele está em tudo!”, enfatiza.
	 Segundo Tainara, apesar do viés humanizado e de ser conhecida pela
61
empatia quanto às questões sociais, o curso de Psicologia apresenta resistência
em compreender o racismo como um problema estrutural.
	 “Faço parte da equipe de profissionais e estagiários que oferece à po-
pulação e à comunidade acadêmica atendimento a preços populares. O pobre
enxerga a Psicologia como algo distante de sua realidade. Depressão é doença
derico,pobrenãopodechorarnemmostrarfraqueza.Mesmoosquesuperamo
senso comum não dispõem de R$400 para pagar uma consulta. Sabendo que a
maioria da população de baixa renda é formada por negros, o serviço que pres-
tamos deveria considerar a importância de disponibilizar profissionais negros
para os atendimentos. Eu mesma acompanhei uma paciente bastante vaidosa
com o cabelo até que apareceu na consulta careca. Ela havia sofrido um corte
químicodevidoaosprodutosqueusava,eaquiloprejudicoumuitoaautoestima
dela. Mas por conhecer o tema, pude ter a sensibilidade de compreender como
aquilo poderia afetá-la. A academia não reconhece as demandas específicas do
paciente negro, tanto que o assunto não faz parte da grade. Porém, enquanto
estes fatos são negados, a população negra predomina nos hospitais psiquiátri-
cos1
”, questiona.
	 Em meio a tantos preconceitos a serem derrubados, pequenos episó-
dios revigoram a esperança de ver a Universidade enegrecer. Entre eles, Tainara
destaca a primeira vez em que encontrou uma mesa ocupada somente por es-
tudantes negros no bandejão.
	 “Foiummomentoépicoparamim.Elessequerseconheciam.Fuiacha-
ta de perguntar o nome, o curso, a localidade de todos. Ontem era somente eu,
amanhã a turma terá três, quatro e, assim, vamos avançando. É algo que sempre
converso com as crianças. Isso aqui (apontando para o campus) tem que ser op-
ção para nós”, ressalta.
1
O estudo“A Custódia e o Tratamento Psiquiátrico no Brasil - Censo 2011”, publicado pela UnB, revelou que,
nos 26 estabelecimentos em funcionamento no país, pretos e pardos somavam 44% (1.782), brancos, 38%
(1.535), 0,2% (9) de amarelos e 0,2% (7) de indígenas e para outros 16% (621) dos internos, não havia registro
de cor.
62
MatheusAraújo
	 Aincertezafinanceirapreocupaojovem
de 21 anos que cursa o terceiro período de Enge-
nhariaMecânica.Masoquerealmenteoincomo-
daéverqueaigualdaderacialaindaéumameta
distante na sua área. Intitulando-se “a cota da
cota”,Matheuscriticaoscolegasdeturmaqueuti-
lizam as cotas raciais por conveniência e prejudi-
cam o público a quem a política se destina. Cheio
desonhos,projetaumaUniversidademaisatenta
às necessidades dos cotistas e, obviamente, mais
preta.
	 A má gestão administrativa do governo desencadeou uma crise his-
tórica no Estado do Rio de Janeiro. Entre os serviços sob a mira dos cortes de
gastosestáoBilheteÚnicoIntermunicipal,quebeneficiamaisdequatromilhões
de fluminenses com descontos na utilização do sistema de transporte. Desde a
segunda metade de 2016, as empresas de ônibus têm ameaçado suspender o
serviço devido à falta de pagamento pelo Estado, o que colocaria em risco o dia
a dia do universitário Matheus Araújo. O morador do Méier precisaria desembol-
sar R$22 por dia para cumprir o trajeto de ida e volta à Niterói, quase o dobro do
custo com o cartão, que deixa cada viagem a R$6,50.
	 “Se o Bilhete Único realmente acabar, não sei como vamos fazer. Meu
pai ficou desempregado nesse ano, e o orçamento está apertado. Meu curso é
integral, é difícil conciliar com estágio. E como eu ainda estou no terceiro perío-
“Eu sou a cota da cota!”
do, também é cedo para conseguir en-
trar no mercado de trabalho”, avalia.
63
“O tratamento da Universi-
dade é ‘Parabéns! Boa Sorte!’.
Ela precisa saber quem nós
somos”.
	 Matheusseinscreveuparaoauxílioemergencial,masnãoobteveêxito.
Atualmente, a UFF oferece 1.700 bolsas de alimentação, moradia e transporte.
No entanto, com mais de 30 mil alunos e 6 mil cotistas, a conta não fecha.
	
	 “A moradia estudantil é uma das mais difíceis. Eu não moro tão lon-
ge, mas os gastos são bem altos. Quem solicita percebe que os critérios de se-
leção não são muito claros. Quando eu tentei o emergencial, me negaram sob
alegação de que havia casos piores. Eu
realmente acredito nesse argumento.
Mas todos precisam. Como eu, há cer-
tamente outras centenas de alunos, e
isso é um fator que prejudica bastante
o aluno. Desanima não ter condição de permanecer na universidade pública ou
demorar mais para se formar por conta disso”, argumenta.
	 TendocursadooEnsinoFundamentalnaredeprivadaeoEnsinoMédio
na pública, Matheus conhece os dois lados da educação básica e compara: na
escola particular, sofria preconceito por precisar tirar xerox dos livros, enquanto
na Faetec, instituição técnica vinculada ao Governo do Estado, negros e brancos
estavam distribuídos de forma proporcional e tinham boa convivência, cenário
que gostaria de ver na UFF. Embora tenha ingressado no segundo semestre de
2015,quandoascotasjárepresentavam37,5%dasvagasoferecidas,ofuturoen-
genheiro observa que a escassez de negros no campus ainda é latente: de uma
turma de 50 alunos, ele é o único negro cotista.
	 “Eu sou a cota da cota! Na minha turma, deveria haver cinco negros co-
tistas. Na prática, tem um. Incomoda conviver com pessoas que estão aqui usu-
“Incomoda conviver com quem decla-
ra uma negritude que não existe para
usufruir das vagas de quem realmente
precisa. Discursam contra a corrupção,
mas a praticam”.
fruindodevagasdestinadas
a quem realmente precisa,
que se assumem como
brancas no cotidiano, mas
64
declararam uma negritude que não existe para tirar vantagem. Discursam con-
tra a corrupção, mas a praticam. A Engenharia da UFF segue um padrão: branco,
playboy, com carro, filho de dono de empresa. É difícil encontrar alguém com
uma história de superação. E o mercado de trabalho reflete isso. Quem está no
comando é branco, e vai preferir outros brancos, porque a nós, pretos, estão es-
tabelecidosossubempregos.Somosdescendentesdepessoasqueforamescra-
vizadasenãohánenhumavergonhanisso.Masquantasfamíliasconseguiramse
recuperar ao longo desses anos? O que motiva alguém a nos tirar esse direito?”,
questiona.
	 Para combater as fraudes nas cotas raciais, Matheus toma como exem-
plo o CEFET de Nova Iguaçu, onde cursou alguns meses, antes de ser aprovado
na UFF. Ele acredita que medidas aliadas à autodeclaração podem inibir a ação
de quem se apropria indevidamente das ações afirmativas e transformar o perfil
dosgraduandosdaUFF.AmetaédeixaraUniversidademaispretadoquequan-
do chegou.
	 “Senti diferença na dinâmica de matrícula dos cotistas entre as duas
faculdades. Na UFF, eu entreguei o que exigiam e fui embora. Não fiquei 15 mi-
nutos na sala, ninguém nem olhou para mim. No CEFET, as assistentes sociais
conversam,avaliamosdocumentos.Umapolíticaumpoucomaisexigentepode
ajudar, porque é menos provável que o branco se disponha a encarar uma veri-
ficação, ele vai ficar com receio de ser questionado como cotista. E a Universida-
de também poderia nos acompanhar mais. O tratamento atual é‘Parabéns! Boa
Sorte!’. Ela precisa saber quem nós somos”, sugere.
65
LucianaSilva
	 A paulista de 28 anos abandonou
o funcionalismo público para viver o sonho
de cursar Direito. Ao ingressar na UFF no se-
gundo semestre de 2014, se deparou com as
contradições da Universidade. De um lado, a
organização dos estudantes pretos; do outro,
o racismo institucionalizado que ignora a im-
portânciadasquestõesraciais.Diantedoque
já enfrentou para chegar ao ensino superior
público, Luciana Silva não se deixa intimidar.
Acredita que é chegado o tempo dos negros
escreverem novas histórias, de conquista e
positividade.
	 Da Zona Leste de São Paulo para Niterói, Luciana Silva enfrentou um
longo percurso. Na bagagem, trouxe sonhos, determinação e consciência crí-
tica de que a universidade pública é um lugar de todos. Nem sempre pensou
assim, confessa. A necessidade de ingressar no mercado de trabalho prejudicou
até mesmo o ritmo do ensino básico, concluído por meio do Programa de Edu-
cação de Jovens e Adultos, somente aos 20 anos de idade. Na periferia de São
Paulo, ao som de rap, era fácil identificar as desigualdades. Enquanto o sonho
de conquistar uma vaga na universidade pública adormecia no peito, Luciana
“Sempre brinco que nasci duas
vezes: a primeira quando vim ao
mundo, e a segunda quando me
descobri negra”
encontrou uma forma de incentivar
outros jovens de baixa renda a acre-
ditar em si mesmos. Ela começou a
dar aulas de interpretação de texto
em um pré-vestibular comunitário,
66
vinculado à Educafro, o que culminou no envolvimento com a militância negra.
	 “Não havia referências de familiares, amigos ou vizinhos no ensino su-
perior público, logo os autores negros se tornaram a minha inspiração. Defendi
as cotas raciais nas manifestações em Brasília e me integrei às ações da Educafro.
Quando nos encontramos, descobrimos quem somos, adquirimos uma identi-
dade crítica e começamos a compreender nossa capacidade de alcançar espa-
ços que parecem utópicos, de romper barreiras”, conta.
	 A dedicação aos estudos e o incentivo da mãe culminaram no ingresso
no curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2008, primeiro
ano de aplicação de cotas raciais no ProUni. Mesmo com a política, a turma con-
tava com apenas duas negras, ambas contempladas pelas ações afirmativas. A
definição do Enem como método de seleção reacendeu o desejo de expandir
horizontes. Àquela altura, o envolvimento com as questões raciais havia conso-
“Foram mais de 300 anos de es-
cravidão no país, e a Universida-
de acha desnecessário ter disci-
plinas que abordem as questões
raciais.”
lidado a meta de cursar Direito. No
entanto, seria necessário deixar um
emprego como servidora pública,
casa, família, e começar do zero aos
26 anos.
	 “Devido à falta de informação, achávamos que a USP era a única op-
ção. Ela ainda está muito distante para quem é da periferia… Percebi a diferença
da Mackenzie para a UFF ao encontrar outros estudantes negros na Semana de
Acolhimento Estudantil, mas a convivência na sala de aula se mostrou bastante
negativa.Empoucassemanasdeaulaaspiadasracistasjásefaziamfrequentese,
aofinaldoprimeirosemestre,eunãofalavacommetadedaturma.Quandovocê
é preto e se posiciona, incomoda muita gente”, salienta.
	 ParaLuciana,oracismodaUFFseexpressanãoapenasnodiaadiacom
osdemaisestudanteseprofessores,mastambémpeloposicionamentoburocrá-
tico da própria instituição.
	 “Estamos atrasados em fatores básicos. É assustador que uma univer-
67
sidade pública, num país com mais de 300 anos de escravidão, não tenha na
grade dos cursos disciplinas que abordem as questões raciais e apresente tanta
resistência às propostas de modificação de currículo com esse objetivo. Há um
distanciamento considerável das questões de gênero, da origem latinoameri-
“Temos sempre a mesma
história, de sofrimento
e privação, precisamos
escrever outras mais
positivas”
cana. O Direito é um curso eurocêntrico e
ministrado por professores conservadores,
que defendem meritocracia. Mais grave ain-
da é a instituição contratar prestadoras de
serviço cujas cláusulas de contrato proíbem
os funcionários de participar de quaisquer
eventos. Isso prova que a Universidade pretende manter a configuração atual,
porque potencializar as pessoas significa modificar estruturas sociais que têm
dado certo para quem já está no poder”, avalia.
	 Faltam, pelo menos, três anos de curso, porém a estudante de Direito
já percebe a influência que exerce sobre a família. Nesse período, três primas fo-
ram aprovadas em instituições públicas e o pai adquiriu uma nova visão sobre
as ações afirmativas. Para além do círculo social, Luciana planeja ver mudanças
concretas na Universidade e acredita que a articulação dos alunos negros será
importante para construir este cenário.
	 “Quem entra na universidade hoje mostra mais convicção sobre sua
identidade racial e seus direitos. A organização tem permitido firmar laços para
enfrentar o racismo juntos e discutir nossa realidade por nós mesmos, como
fizemos no ECUN (Encontro de Universitários Negros) na UFRJ, em maio deste
ano.Caminhamosapartirdoquenossosantepassadosconstruíramevamosdar
continuidade, evoluindo a cada geração. Raramente, as crianças de escola públi-
ca com as quais converso contam sobre o sonho de serem médicas ou advoga-
das. Na realidade delas constam ser mãe aos 16 anos, fazer supletivo para poder
trabalhar, ver os amigos morrerem pela violência, enxergar no Pelé o referencial
negrodesucesso.Brincoquetenhoduascertidõesdenascimento-adequando
eu vim ao mundo e a de quando me descobri negra. Hoje, eu acredito em mim,
68
vejo meu potencial como intelectual e sei que tudo o que é possível para mim,
pode ser para os nossos irmãos e irmãs.Temos sempre a mesma história, de so-
frimento e privação, precisamos escrever outras mais positivas”, finaliza.
69
Considerações
Finais
70
	 Pierre Bourdieu inovou a sociologia ao definir o conceito de habitus,
em síntese, como o “princípio não escolhido de todas as escolhas”, ou seja,
o indivíduo tem a predisposição a determinadas atitudes e ações ligadas ao
gosto, ao comportamento e aos valores, por conta das estruturas sociais nas
quais está inserido. Com base nessa fundamentação teórica, Hustana Vargas,
em seu estudo“Cor e curso na interiorização de uma universidade federal”, en-
tende que o fenômeno da escolha da carreira pode ser relacionado a constru-
ções típicas do habitus, como algo que os indivíduos incorporam ao longo de
sua história de vida e de suas interações sociais. Sendo assim, cursos e carrei-
ras seriam apropriados por grupos sociais que se estabelecem nas instituições
e no mercado, incentivando e atraindo seus iguais. Nesse sentido, a autora
argumenta que
o contexto de instabilidade política e econômica no qual este trabalho é fina-
lizado, enquanto são votados os cortes nos gastos do Governo com os servi-
ços de saúde e educação, põe em risco décadas de conquistas sociais. Se as
universidades públicas esperam prejuízo com tais medidas, maior ainda é a
preocupação dos cotistas. No entanto, a luta não se deixa conter por decisões
pautadas pela má vontade política; ela permanece em curso através do teste-
munho e do exemplo de Bernardo Affonso, Tainara Cardoso, Matheus Araújo,
Luciana Silva e tantos outros que denunciam o lugar da exceção hoje, a fim
de ver um cenário menos desigual amanhã. Enxergamos as transformações
sociais que as cotas raciais têm gerado, ainda que em pequena proporção, na
“oingressoeapermanênciademaisnegrosnoensinosuperior,emtodo
tipo de carreiras, não significam apenas a alteração de horizontes eco-
nômicos individuais ou familiares. Significam, também, alterações nas
representações sobre relações raciais, nas identidades étnico-raciais e
na autoestima. Ao mesmo tempo, disseminam novas expectativas em
relação à educação formal e uma ética antirracista sobre as hierarquias
raciais, possibilitando que os estudantes tornem-se referências dentro
e fora de suas universidades. Nesse sentido, eles referenciariam novos
habitus” (VARGAS, 2016, pág. 06).
71
Universidade Federal Fluminense e reafirmamos que elas não se restringem a
números, mas perpassam as nossas vidas. Seremos nós os responsáveis a for-
mular novos habitus e, a partir deles, impulsionar mais negros e negras a dese-
jarem, sonharem e ocuparem os espaços de poder, rompendo com os papéis
sociais determinados à população negra pela sociedade racista, que apela
desde o mito da democracia racial a discursos que visam ferir nossa autoesti-
ma para nos manter em lugares de subalternidade. Defendemos as ações afir-
mativas não por duvidarmos da capacidade do negro em caminhar sozinho,
mas por acreditarmos no potencial daqueles que não foram incentivados a
explorá-lo ou precisaram escolher a sobrevivência imediata, em detrimento
da trajetória acadêmica. Portanto, esperamos que, mesmo de forma modesta,
este projeto lhes forneça informação para suscitar reflexões, pois“somente a
partir do momento em que nos enxergarmos como parte do problema, pode-
remos passar a fazer parte da sua solução”(CARVALHO, 2005/2006, pág. 102).
	 Enfim, Agora Estamos Aqui constitui uma tentativa de registrar nar-
rativas que há muito estão invisíveis, mas precisam ser compartilhadas. São
histórias que representam não apenas estes quatro personagens, e sim milha-
res de negros e negras que têm superado estigmas, dificuldades financeiras,
problemas de autoestima e tantas outras formas cruéis pelas quais o racismo
se expressa. Cada experiência se tornou possível por conta das ações afirmati-
vas e, por isso, reforçam o que este projeto se propôs a olhar: políticas públicas
sérias e eficazes são ferramentas para transformar vidas, derrubar paradigmas
e construir uma sociedade mais justa. Aliar uma experiência tão particular ao
conhecimento adquirido no curso de Comunicação se mostrou não apenas
um desafio, como uma satisfação. Sempre vai haver uma boa história, um
novo‘gancho’, um detalhe que fará a diferença na apuração. Adquiri sabedo-
ria, exercitei habilidades, fiz amigos, ouso dizer. E, também assumo que foi
fundamental à minha motivação tentar retribuir aquilo que a Universidade
me ofereceu de forma gratuita: a capacidade de abrir meus horizontes e, des-
te modo, me permitir aprender. Hoje, olho para trás e só consigo pensar isso:
72
assim como pude desfrutar de tantas qualidades que o ensino superior públi-
co tem a oferecer, desejo que outros negros e negras também tenham esta
oportunidade.
73
Referências
74
ALCANTARA, Maria das Graças A. dos S. Estudantes Cotistas: limites para perma-
nênciaeconclusãodocursosuperiornaUFF.Niterói:UFF,2015.14p.Especializa-
ção em Gestão em Administração Pública, Faculdade de Administração e Ciên-
cias Contábeis da Universidade Federal Fluminense. Disponível em <www.ichs.
uff.br/wp-content/.../01/TFC_MARIA-DAS-GRAÇAS-ALCANTARA.pdf>
Acesso em: novembro 2015
BRANDÃO, André;TEIXEIRA, Moema De Poli. Censo Étnico-Racial da Universida-
de Federal Fluminense e da Universidade Federal do Mato Grosso. Niterói: EDU-
FF, 2003.
CADERNOS PENESB: DISCUSSÕES SOBRE O NEGRO NA CONTEMPORANEIDADE
E SUAS DEMANDAS. Niterói: EdUFF, 2008/2010, n.10.
CARVALHAES,Flávio;DAFLON,VerônicaToste;FERESJÚNIOR,João.Oimpactoda
Lei de Cotas nos estados: um estudo preliminar. Rio de Janeiro: IESP-Uerj, 2013.
Disponível em
<http://gemaa.iesp.uerj.br/files/TdP/TpD_gemaa_1.pdf> Acesso em: janeiro
2016
CARVALHO, José Jorge.“O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro”,
in Revista USP, São Paulo, n.68, dezembro/fevereiro 2005-2006, p. 88-103. Dispo-
nível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/download/13485/15303> Acesso
em: março 2016
CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DETRABALHO E DESIGUALDADES. O que
afasta as crianças e adolescentes negros da escola?. São Paulo: 2014. Disponível
em
75
<http://www.ceert.org.br/noticias/crianca-adolescente/4808/o-que-afasta-as-
-criancas-e-adolescentes-negros-da-escola> Acesso em: novembro 2016
DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. “Ações
afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”.
In: Cadernos de Pesquisa, vol. 43, nº. 148, 302-327 (2013). Disponível em <http://
www.scielo.br/pdf/cp/v43n148/15.pdf> Acesso em: janeiro 2016
EURÍSTENES, Poema; FERES JÚNIOR, João & CAMPOS, Luiz Augusto. Evolução da
Lei nº 12.711 nas universidades federais (2015). Levantamento das políticas de
ação afirmativa (GEMAA), IESP-UERJ, dezembro, 2016, pp. 1-25. Disponível em
<http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2016/12/Lev2016.pdf> Acesso
em: dezembro 2016
FERES JÚNIOR, João; DAFLON, Verônica. Políticas da Igualdade Racial no Ensino
Superior. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, v. 5, p. 31-43, 2014. Dispo-
nível em
<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/cdf/article/view/14229/10769>
Acesso em: dezembro 2016
FERES JÚNIOR, João; DAFLON,Verônica; CAMPOS, Luiz Augusto. A ação afirmati-
va no ensino superior brasileiro (2011). Levantamento das políticas de ação afir-
mativa (GEMAA), IESP-UERJ, 2011, pp. 1-20. Disponível em
<http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2013/11/files_Levantamen-
to_2011C.pdf> Acesso em: janeiro 2016
GUIMARÃES,ReinaldodaSilva.Afrocidadanização:açõesafirmativasetrajetórias
de vida no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Selo Negro,
2013.
76
NASCIMENTO, Alexandre do. Do direito à universidade à universalização de di-
reitos: o movimento dos cursos pré-vestibulares populares e as políticas de ação
afirmativa. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2012.
PACHECO, Jairo Queiroz; SILVA, Maria Nilza da (orgs.). O negro na universidade: o
direito à inclusão. Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2007.
Retrato das desigualdades de gênero e raça / Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada- 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011. Disponível em http://www.ipea.gov.br/re-
trato/pdf/revista.pdf Acesso em mar 2015
SACRAMENTO, Mônica P. do. Ação afirmativa: o impacto da política de cotas na
ESDI
(EscolaSuperiordeDesenhoIndustrial-UERJ).DissertaçãodeMestradoemEdu-
cação,
2005, 201p. Disponível em: uff_dissertacao_2005_MPdoSacramento.pdf Acesso
em set 2014
SILVA,Cidinhada(org.).AçõesAfirmativasemeducação:experiênciasbrasileiras.
São Paulo: Summus, 2003.
VARGAS, Hustana Maria.“Cor e curso na interiorização de uma universidade fe-
deral”. Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior no Brasil - Flacso Bra-
sil. Rio de Janeiro: 2015, 9p. Disponível em <http://flacso.org.br/files/2015/11/
gea_opini%C3%A3o22.pdf> Acesso em: outubro 2016
77
Memorial
78
Agora estamos aqui é um ensaio sobre o ingresso de estudantes negros a partir
das políticas de ação afirmativa implementadas na Universidade Federal Flumi-
nense. O trabalho procura registrar a trajetória dos cotistas e abordar o impacto
das cotas raciais sobre a instituição, que precisa adaptar-se às demandas deste
novo público.
Palavras-chave: cotas raciais, ação afirmativa, UFF, racismo.
	 As políticas de ação afirmativa difundiram-se pelo mundo com a pre-
tensão de reverter quadros de desigualdades socioeconômicas provocadas por
fatores históricos. No Brasil, o conceito ganhou visibilidade ao reivindicar inter-
venções do Estado em defesa da população negra, visto que a superficialida-
de da Lei Áurea e das legislações seguintes não garantiu a inserção dos ex-es-
cravizados e seus descendentes na sociedade como cidadãos, ao contrário da
população migrante européia e asiática, que receberam benefícios do governo
parasuainstalaçãoesobrevivência.Apesardacomprovação,pormeiodedados,
da discrepância entre brancos e negros quanto à escolaridade, ao rendimento
salarial, aos índices de desemprego e ao acesso à moradia de qualidade, entre
outros fatores, as propostas de medidas de reparação enfrentaram críticas de
intelectuais e da mídia, com uma série de argumentos subjetivos que buscam
deslegitimar a necessidade da aplicação da política em espaços de poder, como
os cargos públicos e o ensino superior, numa tentativa de manter a população
negra na base da pirâmide social e em posições de subserviência. Opiniões à
parte,asaçõesafirmativasseconsolidameimplicamnoingressocadavezmaior
de negros nas universidades públicas.
Resumo
Introdução
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF

More Related Content

What's hot

Daqui agosto 2015
Daqui agosto 2015Daqui agosto 2015
Daqui agosto 2015daquimoc
 
Da ordem do relato e do argumentar
Da ordem do relato e do argumentarDa ordem do relato e do argumentar
Da ordem do relato e do argumentarPriscila Hilária
 
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Geraa Ufms
 
A professora martha de freitas azevedo pannunzio
A professora martha de freitas azevedo pannunzioA professora martha de freitas azevedo pannunzio
A professora martha de freitas azevedo pannunziomendesmarciel
 
Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...
Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...
Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...Nathany Brito Rodrigues
 
Face à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória Permanece
Face à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória PermaneceFace à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória Permanece
Face à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória PermaneceUniversité de Montréal
 
A revista pensare 01-09-2013
A revista pensare   01-09-2013A revista pensare   01-09-2013
A revista pensare 01-09-2013Elzimar Oliveira
 
ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...
ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...
ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...Aline M. C. Freitas
 
A (des)construção das identidades femininas
A (des)construção das identidades femininasA (des)construção das identidades femininas
A (des)construção das identidades femininasCassia Barbosa
 
Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017
Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017
Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017ma.no.el.ne.ves
 

What's hot (17)

Daqui agosto 2015
Daqui agosto 2015Daqui agosto 2015
Daqui agosto 2015
 
Palavra jovem n 30
Palavra  jovem n 30Palavra  jovem n 30
Palavra jovem n 30
 
Trabalho de português (brasil)
Trabalho de português (brasil)Trabalho de português (brasil)
Trabalho de português (brasil)
 
Da ordem do relato e do argumentar
Da ordem do relato e do argumentarDa ordem do relato e do argumentar
Da ordem do relato e do argumentar
 
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
 
A professora martha de freitas azevedo pannunzio
A professora martha de freitas azevedo pannunzioA professora martha de freitas azevedo pannunzio
A professora martha de freitas azevedo pannunzio
 
Martha de freitas azevedo pannunzio
Martha de freitas azevedo pannunzioMartha de freitas azevedo pannunzio
Martha de freitas azevedo pannunzio
 
Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...
Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...
Práticas abolicionistas em bibliotecas prisionais Ou Sugestões de critérios a...
 
Face à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória Permanece
Face à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória PermaneceFace à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória Permanece
Face à Família do Terapeuta Familiar: A Busca Continua, A Memória Permanece
 
A revista pensare 01-09-2013
A revista pensare   01-09-2013A revista pensare   01-09-2013
A revista pensare 01-09-2013
 
ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...
ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...
ENTRE O GATILHO E OS LAÇOS DE AMIZADE: uma análise de recepção sobre a Repres...
 
"Terceira Carta" Paulo Freire
"Terceira Carta" Paulo Freire"Terceira Carta" Paulo Freire
"Terceira Carta" Paulo Freire
 
Monografia Viviane Pedagogia 2009
Monografia Viviane Pedagogia 2009Monografia Viviane Pedagogia 2009
Monografia Viviane Pedagogia 2009
 
Jornal digital 4900_ter_19042016
Jornal digital 4900_ter_19042016Jornal digital 4900_ter_19042016
Jornal digital 4900_ter_19042016
 
A (des)construção das identidades femininas
A (des)construção das identidades femininasA (des)construção das identidades femininas
A (des)construção das identidades femininas
 
Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017
Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017
Dicas e análise de uma redação nota 1000 no enem 2017
 
Fase I
Fase IFase I
Fase I
 

Similar to AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF

Zinedaduca1 110517103013-phpapp02
Zinedaduca1 110517103013-phpapp02Zinedaduca1 110517103013-phpapp02
Zinedaduca1 110517103013-phpapp02Adriana Nascimento
 
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Geraa Ufms
 
Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012
Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012 Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012
Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012 Apeoesp Vale Do Ribeira
 
Pequeno Manual antirracista.pdf
Pequeno Manual antirracista.pdfPequeno Manual antirracista.pdf
Pequeno Manual antirracista.pdfMarinesdeOliveira
 
Desabafo De Um Velho
Desabafo De Um VelhoDesabafo De Um Velho
Desabafo De Um Velhojmeirelles
 
Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...
Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...
Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...Emerson Campos
 
Desabafo de um velho2
Desabafo de um velho2Desabafo de um velho2
Desabafo de um velho2jmeirelles
 
Confinamento racial no mundo academico
Confinamento racial no mundo academicoConfinamento racial no mundo academico
Confinamento racial no mundo academicoIgorF22
 
Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45
Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45
Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45Valter Gomes
 
Direitos humanos e pluralidade cultural
Direitos humanos e pluralidade culturalDireitos humanos e pluralidade cultural
Direitos humanos e pluralidade culturalElaine Krauze
 
A revista pensare 01-09-2013
A revista pensare   01-09-2013A revista pensare   01-09-2013
A revista pensare 01-09-2013Elzimar Oliveira
 
Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010
Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010
Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010Fernanda Vasconcelos Dias
 
Cidadao 34 completo 1
Cidadao 34 completo 1Cidadao 34 completo 1
Cidadao 34 completo 1aghipertexto
 

Similar to AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF (20)

Zinedaduca1 110517103013-phpapp02
Zinedaduca1 110517103013-phpapp02Zinedaduca1 110517103013-phpapp02
Zinedaduca1 110517103013-phpapp02
 
Munanga
MunangaMunanga
Munanga
 
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil.
 
Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012
Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012 Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012
Boletim APEOESP Vale do Ribeira - Novembro 2012
 
Pequeno Manual antirracista.pdf
Pequeno Manual antirracista.pdfPequeno Manual antirracista.pdf
Pequeno Manual antirracista.pdf
 
Portifólio pronto
Portifólio prontoPortifólio pronto
Portifólio pronto
 
Desabafo De Um Velho
Desabafo De Um VelhoDesabafo De Um Velho
Desabafo De Um Velho
 
Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...
Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...
Discurso proferido durante a colação de grau dos bacharéis em Comunicação Soc...
 
Heleny Galati
Heleny GalatiHeleny Galati
Heleny Galati
 
Heleny galati
Heleny galatiHeleny galati
Heleny galati
 
Heleny galati
Heleny galatiHeleny galati
Heleny galati
 
Desabafo de um velho2
Desabafo de um velho2Desabafo de um velho2
Desabafo de um velho2
 
Pt 37
Pt 37Pt 37
Pt 37
 
Confinamento racial no mundo academico
Confinamento racial no mundo academicoConfinamento racial no mundo academico
Confinamento racial no mundo academico
 
Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45
Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45
Folhetim do Estudante - Ano IV - Núm. 45
 
Direitos humanos e pluralidade cultural
Direitos humanos e pluralidade culturalDireitos humanos e pluralidade cultural
Direitos humanos e pluralidade cultural
 
A revista pensare 01-09-2013
A revista pensare   01-09-2013A revista pensare   01-09-2013
A revista pensare 01-09-2013
 
Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010
Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010
Juventudes e relações etnico raciais - projeto juventudes em debate - 2010
 
Cidadao 34 completo 1
Cidadao 34 completo 1Cidadao 34 completo 1
Cidadao 34 completo 1
 
Tese de denise maria antunes cordeiro na educação da uff em 2008
Tese de denise maria antunes cordeiro na educação da uff em 2008Tese de denise maria antunes cordeiro na educação da uff em 2008
Tese de denise maria antunes cordeiro na educação da uff em 2008
 

AGORA ESTAMOS AQUI - Um olhar sobre as cotas raciais da UFF

  • 1. 01
  • 2.
  • 3. AGORAESTAMOSAQUI Um olhar sobre as cotas raciais da UFF
  • 4.
  • 5. AGORAESTAMOSAQUI Um olhar sobre as cotas raciais da UFF ElenaWesley
  • 6. AGORAESTAMOSAQUI Um olhar sobre as cotas raciais da UFF Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do título de ba- charel em Comunicação Social - Jornalismo IACS Universidade Federal Fluminense Livro ensaio de Elena Wesley Orientação: Professora Doutora Denise Tavares Projeto gráfico e diagramação: Caio Max
  • 8. Sumário 10 Apresentação 13 Parte I - As cotas raciais na UFF 14 Introdução 19 Panorama Histórico 46 Ação afirmativa no Brasil e no Mundo 49 Fotos 52 Parte II - Eu, estudante Negro 53 Bernardo Affonso 57 Tainara Cardoso 62 Matheus Araújo 65 Luciana Silva 69 Considerações Finais 73 Referências 77 Memorial
  • 9.
  • 11. 11 Estetrabalho,comoseveráemseguida,éoresultadodiretodaaçãodemuitas pessoasqueassumiramagigantetarefadetransformarumaculturaviolenta,excludente edesumana.Porisso,elesópoderiacomeçarcomumabrevelistadeagradecimentosque não vaicontemplartodos,porumaquestãodelimitedeespaço,masquepretende,ao menos,nomearaquelesquesãodiretamenteresponsáveisporquemsouhojeeporesta travessia. Agradeçoaosmeuspais,ElianaeRosalvoWesley,pormeensinarematerorgu- lho de quem eu sou e de onde vim: mulher negra, pobre, moradora da Zona Oeste do Rio,filhadefuncionáriospúblicos,netadeempregadadoméstica.Somoaissooincentivo constanteparaseguirmeussonhoseconfiaremmeusinstintos,pelapaciênciaemouvir minhasdesilusõeseaconfiançadequecadacentavo,segundoelágrimainvestidosem minhaformação,gerariamfrutos,aseutempo.AomeuavôGabrielBatistaque,mesmo semcompreenderasnuancesdanegritude,sempremeincentivaapensaromundode formacríticaeamantervivaaintençãodetransformá-lo.Refiro-meaindaaosavósMaria e Geraldino Wesley, com os quais, infelizmente, não pude conversar sobre as questões raciais;todavia,deixaram-meporherançaseusexemplosdeluta,emumtemponoqual, semdúvida,acordapeleagregavaaindamaisobstáculos.Comsuoreesperançaemdias melhores,vocêscalçaramocaminhoquetrilhohoje.E,nessesentido,meestendoaosan- cestrais que a escravidão me impediu de saber quem são. Sua história não foi apagada. Ela permanece em mim e nas histórias que trago nesse trabalho.Vocês resistiram e nós seguiremosomesmoexemplo. Meu muito obrigada aos jongueiros, às professoras Elaine Monteiro e Mônica SacramentoeaosbolsistasdoPontãodeCulturadoJongo/Caxambu,projetodeextensão quetantocontribuiucomreflexõesacercadarealidadedapopulaçãonegra,danegação de direitos pelo Estado à dedicação em preservar um patrimônio de valor imensurável paraopaís. DedicoestetrabalhotambémàprofessoraCarlaBaiense,pelasensibilidadeem meajudaraabordaraausênciadonegronasuniversidadespúblicasnaediçãonúmero um do Jornal O Casarão; e à professora Denise Tavares que, ao ler a reportagem em questão, profetizou o que seria o projeto de conclusão do curso. A vocês devo
  • 12. 12 nãosomenteagratidãopelasboasideias,comotambémpelospuxõesdeorelha e pela confiança de que, em meio à inquietude do meu coração, poderia surgir, ainda que de forma modesta, uma contribuição ao debate sobre as cotas raciais. À Universidade Federal Fluminense, pela oportunidade de expandir horizontes e adquirir conhecimentos que, infelizmente, ainda se configuram como um privilégio de poucos. Obrigada aos professores e estudantes que se dispuseram a somar nesse projeto e, sobretudo, a Bernardo Affonso, Luciana Silva, Matheus Araújo e Tainara Cardoso, por compartilharem sua história, suas dores e suas conquistas. Mais que estatísticas, sua presença e resistência são a motivação para que nossos irmãos também acreditem que o ensino superior público deve ser um lugar de todos. Através de nós e dos que ainda virão, a Uni- versidade se pintará de preto. UBUNTU.
  • 15. 15 Onde estão eles? A pergunta martelava em minha mente como o tic tac de um relógio. Ninguém nesta sala, nem nesta. Alguma coisa deve estar errada… E estava. Em uma turma de 25 alunos, eu era a única negra. Quando ingressei na UFF em 2010, a Comunicação Social estava entre os cursos mais concorridos da instituição e, consequentemente, um dos mais brancos também. Para constatar isso não precisei de estimativas nem de pesquisas. Senti na pele. Eu era o núme- ro, a exceção. Perceber o quão excludente é o ensino superior público foi um choque derealidade,porque,antesdevê-locommeusprópriosolhos,eunãoacreditava no cenário que me contavam. Entre quatro pessoas negras na família, eu era a única que discordava das cotas raciais como medida necessária a mudar o perfil do estudante univer- sitário. Criada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde o convívio entre brancos e negros parecia igualitário, compreender as nuances do racismo, fosse nas vivên- cias pessoais ou na estrutura social, se tornava uma tarefa difícil para mim. Não por falta de conversa. Ao longo da adolescência, os‘papos cabeça’ que os adultos gostam de promover à mesa de jantar costumavam abordar os desafios que, segundo meu pai, fariam parte de toda a minha trajetória.“A vida vai exigir mais de você por três razões: porque você é negra, porque você é mu- lher e porque você é pobre.Você precisa estar preparada para isso”, ele repetia. O fator pobreza eu até entendia. Filha de funcionários públicos - um bombeiro e uma professora da rede municipal -, eu conhecia os limites finan- ceiros da família. Estudei em uma boa escola particular no Ensino Fundamental graças a uma bolsa de estudos. Fui boa aluna, gostava muito de ler, tirava boas notas (exceto em Matemática, apesar do esforço). Embora me destacasse, sabia que nem todas as vivências escolares seriam possíveis para mim. Quando a mãe
  • 16. 16 diz que não tem dinheiro para o passeio x ou y, insistir é inútil. Hoje, anos depois, tal definição de pobreza me parece estúpida e egoísta. É preciso abrir os olhos para reconhecer o que a gente não vive. Demorei muito para abrir os olhos em relação às questões raciais. O ra- cismosempreestevepresente:naspiadascomnarizeboca,naobrigaçãode“dar um jeito no cabelo rebelde” e até mesmo na dificuldade de conseguir um par para umasimplesquadrilhadefestajunina.Eleestavaali,azombardemim,euque nãosabiaenxergá-lo. Quandochegou2009,oanodovestibular,eualmejavaestudarnadispu- tada Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A Uerj era a única pública da região que já havia aderido às cotas. A graduação de Jornalismo dispunha de 50 vagas, sendo25reservadasacandidatosnegrosepobreseaoutrametadeàconcorrência regular. Para meu pai, a medida representava uma vitória para a população preta, uma conquista da qual eu deveria participar. Sob a minha ótica, uma ofensa à mi- nhacapacidade. -Dejeitonenhumvoumecandidatarporcotasraciais!Eunãoprecisodis- so.Nãoqueroajudanenhuma,voupassarpelomeuprópriomérito-,argumentava, sempreaborrecidacomamençãodoassunto. Mais chateada ainda fiquei diante da reprovação. A Uerj liderava meu ranking de preferência por ser a menos distante. Significava menos gastos. Porém, obtive boas notas na UFF e na UFRJ e optei pela primeira devido às características do curso. Em compensação, seria necessário me mudar para Niterói, pois as aulas terminavamàs22htodososdias. Embora tenha sonhado frequentar aquele local por anos, a sensação de não-pertencimento se tornou uma constante. Todos os dias eu contava quantos estudantesnegrosencontravanoscampi.Rarasforamasvezesemqueeucomple- tavaumadasmãos.Umacontafácildefazer,masdifícildeaceitar. ParaalémdosmurosdaUniversidade,ocenáriotambémsemostroubas- tante hostil. Próximo à república onde eu morava, no coração de uma vizinhança consideradanobrenacidade,adesigualdadesetornoulatenteparamim.Osúnicos
  • 17. 17 negros que eu encontrava eram os porteiros, as atendentes dos supermercados e osmotoristasdeônibus.Profissõesdignas,porémdebaixaremuneração. O estopim para que as escamas dos meus olhos se dissipassem foi um tristeepisódionumônibus,quandoseguiadocampusparaarepública.Estavadis- traídalendo,aofundodocoletivo,atéouvirasenhoraaomeuladoresmungar“que cara estranho ali na frente, eu hein”. Olhei pra ela um tanto indiferente e na direção que havia citado. Nada demais, avaliei. No ponto seguinte, reparei em quem de- sembarcoueemquempermaneceu.Haviaumrapazempé,aparênciadeuns30e poucosanos,vestindobermuda,chineloeboné.NaZonaOestedoRio,poderiaser apenas um pai a caminho da escola do filho; na Zona Sul de Niterói, um assaltante em potencial. É impressionante como os nossos traços e nossa cor são associados facilmenteafatoresnegativos.Ocabelomuitodistantedospadrõesdaempresa,o perfil de suspeito para a Polícia que proporciona constantes revistas vexatórias, o bem-sucedido de terno e gravata que, aos olhos do racista, é cotado como o vigi- lante,jamaisoexecutivo.Emqueestereótiposocialaquelasenhorameencaixaria? Comecei a analisar os incentivos que recebi para chegar ao ensino su- perior ao longo daqueles 19 anos: centenas de livros em casa à disposição, Ensino Fundamental na rede privada, Ensino Médio em um instituto federal, condição de pagar um curso preparatório, por mais simples e sem nome no mercado que ele fosse. Eu era, de fato, a única negra da turma, porém sequer me encaixava na re- alidade da maioria da população a qual pertenço. Pensei nos meus vizinhos e nos alunosdaminhamãe,diariamentevulneráveisàstentaçõesdacriminalidadeepre- judicados pelos confrontos entre o poder paralelo e o Estado, que suspendem as aulasedemarcamasparedescomprojéteis.Criançasnegras,debaixaautoestimae pouca perspectiva de futuro, fazendo jus aos índices de evasão escolar apontados peloProgramadasNaçõesUnidasparaoDesenvolvimento(Pnud),segundooqual um a cada quatro alunos do Ensino Fundamental abandona os estudos antes de completaraúltimasérie.Cercade65%dessesdesistentessãonegros,eosprincipais motivossãoanecessidadedetrabalhar,aviolênciaeoracismo. As carências do ensino básico são refletidas no mercado de trabalho. Se-
  • 18. 18 1 O Jornal O Casarão é o jornal laboratório do curso de Comunicação Social da UFF, retomado em 2012 por iniciativa dos estudantes.A edição número 01 está disponível no link http://www.jornalocasarao.com/2013/03/o-casarao-n-um-cotas-nas-universidades.html gundoapesquisaRetratodasDesigualdadesdeGêneroeRaça(Ipea-2015),mulhe- res e homens negros ganham R$544,40 e R$833,50 em evidente desvantagem à médiaderendadeR$957,00eR$1.491,00dasmulheresehomensbrancos,respec- tivamente.Osnúmerossetornamaindamaisalarmantesàmedidaqueaanálisese concentranosespaçosondenegrossãomaioria:aspenitenciáriaseosnecrotérios. O Mapa daViolência 2016 estima que a cada 23 minutos um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado por arma de fogo. E de acordo com o Ministério da Justiça, somos61%dapopulaçãocarceráriadopaís,quejáultrapassa620milpessoas.São os engenheiros, advogados, arquitetos, médicos, com os quais nunca dividiremos umasaladeaula.Oatestadodeóbitoquechegaantesdodiploma.Acruelresposta para“Ondeestãoeles?”. Canalizeiaindignaçãodiantedetaisdesigualdadesemumdebatesobre o tema no meu campus, que culminou na publicação da reportagem“Onde estão eles?”na edição um do Jornal O Casarão1 , no início de 2013. A matéria questiona- va a ausência de negros nas universidades públicas e como, apesar dos números, a opinião da mídia, dos intelectuais e da própria comunidade acadêmica ainda se mostravatãoavessaapolíticasdeinclusão. Ao me apontar como exceção, a UFF me pressionou a rever um posicio- namentopessoalegoístaeretrógradosobreascotasraciais.Hoje,compreendoque continuarei sendo exceção, a menos que políticas públicas efetivas sejam criadas e executadas para modificar o cenário atual. É com base nesta tomada de posição que nasce “Agora, estamos aqui”. O ingresso de estudantes negros desencadeia uma série de demandas à Universidade. E, nós, alunos negros, sabemos que, inde- pendentedasopiniõesqueacomunidadeacadêmicaaindacultive,temosumbo- cadodeestatísticasparareverter.Eodesafiocomeçaemnossaprópriahistória.
  • 20. 20 No ano em que completa dez anos de adoção das primeiras políticas de ação afirmativa, a Universidade Federal Fluminense dá mais um passo em di- reção à inclusão social. Em 2017, cinco áreas de formação terão, pela primeira vez, turmas formadas por alunos cotistas. Os Programas de Pós-Graduação da Antropologia (PPGA), da História (PPGH), da Psicologia e em Sociologia e Direito (PPGSD) terão asseguradas as medidas voltadas à entrada de negros, indígenas epessoascomdeficiência,unindo-seàAdministração,queformatouturmacom cotistas em meados de 2016. Assim como ocorreu na graduação, cujas cotas fo- ram instituídas por lei em 2012, a Universidade aplica no Mestrado e no Dou- torado as determinações do governo federal, divulgadas por meio da Portaria Normativa nº 13, em maio de 2016.Todavia, o Ministério da Educação concedeu autonomia às instituições quanto à porcentagem destinada aos grupos alcança- dos.NaUFF,aPsicologiasedestacouaoassumirocompromissodereservar50% das vagas e ainda estender a política à luta LGBTT, contemplando também as travestis que realizarem a seleção. Vinculado à Faculdade mais concorrida do vestibular tradicional, o Pro- grama de Pós Graduação em Sociologia e Direito calcula a entrada de 16 novos alunos com quesitos de igualdade racial e atenção a minorias sociais na próxima turma. Doutor em Sociologia e Direito e Mestre em Antropologia pela UFF, Mar- celinoContiexaltaodiferencialdacotanoPPGSD:aextinçãodanotadecortena primeira etapa do processo seletivo. “Odepartamentocogitoudefinirmédiacincoparaoscotistas,masesta poderia ser uma alternativa ineficaz caso os organizadores aumentassem a difi- culdade do conteúdo da prova. Por conta disso, preferimos suspender a nota de corte e valorizar a subjetividade da apresentação das propostas de pesquisa. Se este modelo resultar na aprovação de alunos que não estejam no mesmo ritmo do restante da turma, é dever da universidade se adaptar para auxiliá-los. O do- cente deve sair da zona de conforto não apenas na assistência ao cotista, mas
  • 21. 21 também se abrindo a autores e discussões que estes novos alunos vão trazer devido à singularidade de suas vivências”, explica Conti, militante filiado ao Mo- vimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978. Um dos quatro negros em um corpo docente que ultrapassa cem pro- fissionais, Conti ressalta que, apesar da breve aprovação da política no caso do PPGSD, a comunidade acadêmica apresentou bastante resistência à adoção na Pós. O professor afirma que até mesmo os argumentos que comprovam a efi- cácia das cotas na graduação foram utilizados para invalidar a necessidade das mesmas nas demais instâncias do ensino superior. “Ao longo do processo de expansão e aprimoramento das cotas, ve- rificou-se que o CR (coeficiente de rendimento) dos cotistas é equivalente ao dos não-cotistas. Logo, se já não há diferença entre os egressos da graduação, as cotas na pós seriam irrelevantes. É um argumento falho, já que desconsidera as questõeseconômicas.Ohomembrancoaos30anospodeestarnacasadospais esededicaràformaçãoacadêmica,enquantoohomemnegrode18anosjáestá nomercadodetrabalho².Tambémdevemospontuaroracismoinstitucionalque lêacandidatabrancaecomtraçoseuropeizadoscomoamaiscompatívelaocur- so, em detrimento da candidata negra, de cabelos crespos, que, segundo nossa sociedade, não aparenta atuar no ramo”, salienta. Além dos fatores apontados por Conti, a própria portaria colabora para a lentidão dos cursos em aderirem à norma. O MEC estabeleceu um prazo de 90 dias - já expirado - para o encaminhamento de propostas pelas instituições, porém a data de implementação efetiva está a critério das universidades. Visto que a UFF deu autonomia a cada colegiado, dos 80 programas de pós-gradua- ção vigentes, apenas oito, vinculados às áreas citadas anteriormente, validaram apolíticacomrapidez.AtémesmonaAntropologia,naqualapressãopopularjá fomentava o debate em 2015, as discussões foram marcadas por opiniões diver- ² A pesquisa “Situação Social da População Negra por Estado”, elaborada pelo Ipea em 2014, revelou que, entre os cidadãos com 12 anos ou mais de escolaridade, 22,2% são brancos e 9,4% negros. Em contrapartida, negros são maioria entre aqueles com oito anos ou menos de estudo, somando 12,2% nos que possuem até um ano na escola, enquanto brancos representam 6,6% na mesma categoria.
  • 22. 22 gentes e o receio iminente de não aprovar a medida a tempo do primeiro edital válido para 2017. De acordo com o professor JulioTavares, integrante do depar- tamento, teoria e prática são realidades bastante distintas também nas áreas vinculadas às Ciências Humanas, consideradas as mais propensas à garantia de direitos. ParaTavares, a morosidade em ampliar o acesso de camadas populares na pós-graduação, de forma incisiva, é provocada pela falta de vontade da elite intelectual que predomina no mercado de trabalho e na academia atualmente, e que parece não desejar abrir mão de seus privilégios. “A elite intelectual é branca e vê o negro como um objeto de estudo, e não como um semelhante. A Antropologia, infelizmente, tem demonstrado o mesmo pensamento, sem atentar às especificidades de quem queremos inse- rir na universidade. O processo é lento como um todo, mas este é o caminho para criar mecanismos de ruptura em uma sociedade que restringe os espaços de conhecimento e poder. As cotas na Pós vão promover a médio e longo prazo recursos humanos negros de alta qualificação para o mercado, incluindo-se, aí, assalasdeaulauniversitárias,nasquaisosprofessoresnegrosaindasãominoria”, avalia. Defato,apresençadenegros³nocorpodocentedaUFF,emtermosnu- méricos, é desanimadora. Entre os 103 profissionais da graduação, do Mestrado 3 A exemplo do que ocorre na publicação “O Negro na Universidade: o direito à inclusão”, este trabalho uti- liza o conceito negro para unir os referenciais preto e pardo somente quando se refere a dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.“Este instituto, aliás, historicamente o Estado brasileiro, desde o período da escravidão, criou uma divisão no grupo negro que remetia para uma proximidade (desejável em um inconsciente coletivo racista) com o grupo padrão-branco. Assim os mestiços já podiam apresentar-se não mais como negros, mas ao serem incluídos no grupo‘pardo’, estavam, ao mesmo tempo, sendo estimu- lados a sair de uma condição pior para uma nova que, não obstante fosse a origem do ‘mal’, a negra, nem a do ‘bem’, a branca, reservada para os indivíduos com fenótipos predominantemente europeus, ainda assim diminuía seu valor social quanto ao seu pertencimento racial. Note-se que essa padronização, até hoje, não é auto-aplicável - as pessoas não dizem‘sou pardo’, apenas incluem-se nesse grupo como alternativa para não se incluírem no grupo ‘preto’no qual ironicamente identifica-se cor e não grupo racial. Via de regra ‘mulato’, ‘moreno’ ou ‘brasileirinho’ são nomes mais utilizados na autoidentificação livre. Então, o movimento negro nacional, de há muito, diante desse arranjo institucional e favorável ao movimento da ideologia racista no inconsciente coletivo nacional, tem juntado os grupos preto e pardo da nomenclatura oficial na categoria ‘negro’. Assim, em uma linguagem racialmente consciente, branco designa os indivíduos nos quais os traços europeus são predominantes. Negros são os indivíduos nos quais os traços negróides (africanos) são pre- ponderantes e que são socialmente reconhecidos como pardos, mulatos, morenos ou pretos. (BERTULIO, 2007, págs. 53 e 54)
  • 23. 23 edoDoutoradonoDireito,somentequatrosãonegros.Istoé,apopulaçãonegra não alcança 5% do corpo docente de um curso tradicional, mesmo sendo mais da metade da população brasileira, conforme o censo 2010 do IBGE. Marcelino Contipontuaqueobaixopercentualdepósgraduadosnegrosestáconcentrado na Educação e é formado por mulheres, cuja atuação predomina no Ensino Mé- dio,deixandooensinosuperiorsemreferências.Seoaspectoquantitativoapon- ta a necessidade de políticas públicas, Julio Tavares destaca o caráter político e subjetivo.Paraoprofessor,quetambémlecionanoProgramadePós-Graduação da Antropologia (PPGA), a escassez reforça aos alunos a uniformidade de que somenteobrancochegaàsaltasposições.Portanto,paraoantropólogo,diversi- ficaroquadrodeprofessorespodemotivaroutrosnegrosaconquistaromesmo espaço. “Por muito tempo acreditou-se que a universidade não era o lugar do negro.Ageraçãodosmeuspaispensavaassimereproduziaessediscurso.Oque cabeaoensinosuperioréaplicaraPsicologiadoExemplo.Àmedidaquecriamos uma identificação entre professor e aluno negro, ampliamos a possibilidade de que outros acreditem ser possível participar deste espaço. Desconstruímos um paradigma posto há séculos que diz que o negro não é capaz”, projetaTavares. Cientes dos desafios que a implantação da política significaria, os es- tudantes da graduação assumiram o papel de protagonistas na defesa de uma universidade mais democrática. Foram eles, aliás, os precursores do I Seminário Pró-Cotas, realizado duas semanas após a publicação da portaria e resultado da parceria entre dois movimentos: o Coletivo de Estudantes Negros e Negras da UFF Iolanda Oliveira e o Coletivo Pró-Cotas. Com o apoio do grupo“Pretos sem Nome”e de outros estudantes independentes, os universitários negros se mobi- lizam para pressionar os colegiados por meio da participação em reuniões inter- nas, conversas com professores simpatizantes da causa e até mesmo protestos emeventosacadêmicos.Emumdeles,naAntropologia,osalunoslevaramcarta- zes com citações racistas de professores que buscavam inviabilizar as discussões para adoção da política.
  • 24. 24 “Nenhum professor assume o posicionamento contrário às cotas, ele prejudica a garantia de direitos à medida que cria uma série de burocracias. Dis- cutirascotasnuncaéumaprioridadenareuniãodocolegiado,aindaqueotema esteja na pauta.‘Fica para a próxima reunião’, eles anunciam,‘porque não pode- mos instituir às pressas’; mas eu questiono a que pressa se referem. São 13 anos devigênciadascotasnopaís.Apósgraduaçãoestá,naverdade,atrasada.Houve muita dedicação dos graduandos em acompanhar discussões que sequer fa- ziam parte de suas áreas de formação. Os mesmos que militavam na História, articulavam na Antropologia, por exemplo, e compartilhavam informação para difundir o debate em diferentes colegiados. A nossa presença causava constran- gimento nos professores. Os contrários não queriam ser mal vistos, e os favorá- veis precisavam mostrar, na prática, que realmente desejam ver diversidade na Pós-graduação”, conta Aline Maia, mestranda em Antropologia. No PPGA, os estudantes participaram da comissão que elaborou a pro- posta de edital com ações afirmativas e, mesmo sem poder de voto, estiveram presentes ao longo do extenso debate que definiu os parâmetros do programa, reforçando a importância das medidas e fazendo o contraponto ao posiciona- mento mais conservador de alguns professores. Como resultado, conquistaram aaprovaçãode30%dereservadevagasparanegros,comadicionaldeumapara deficientes e duas para indígenas (que terão direito à aplicação de prova oral), além da suspensão da prova de idioma estrangeiro e a reformulação da conces- sãodebolsas.Apartirde2017,haveráumnovoprocessoseletivoentreosclassi- ficados para aquisição do auxílio, de acordo com critérios socioeconômicos. Enquanto conciliam a comemoração das conquistas com o diálogo junto a outros colegiados, os militantes das cotas na Pós-Graduação avaliam o quanto ainda é preciso avançar. A falta de representatividade com a qual convi- vem na comunidade acadêmica mostra-se desafiadora diante de números tão excludentes. Negros representam 28,9% dos estudantes de Mestrado e Douto- rado das universidades, o que equivale a 112 mil alunos. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013 revelam ainda que os es-
  • 25. 25 4 O Censo 2010 do IBGE aponta que pouco mais de 817 mil pessoas se autodeclararam indígenas, o equiva- lente a 0,42% do total da população brasileira naquele ano, que somava 190,6 milhões de habitantes. tudantes pretos somam apenas 18,8 mil, enquanto brancos são 270,6 mil. Um levantamento divulgado em 2015 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento CientíficoeTecnológico(CNPq)apontaquedas91milbolsasdeformaçãoepes- quisa do instituto em janeiro do mesmo ano, 26% eram destinadas a estudantes negros,contra58%concedidasaosbrancos.Opercentualdeindígenasnãoatin- ge 1%4 , e cerca de 11% dos bolsistas não declararam raça. A Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (Proppi) estuda a implantação das cotas por meio de um grupo de trabalho com o corpo do- cente. O GT foi constituído como encaminhamento do Seminário “Política de Ações Afirmativas”, promovido em julho, pela Proppi. Fundadora do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) e integrante do GT, a professora Iolanda de Oliveira explica que a equipe elabora um mapeamento dos 80 programas de pós-graduação vigentes, a fim de identificar a presença do negro nas turmas e entre os candidatos. “Coletamos questionários em todos os 80 programas para, com base nestes dados, compreender a particularidade de cada um e definir a porcenta- gemideal,commaiorincentivoaoscursosnosquaisosnegrossãomaisescassos ou sequer compõem as turmas ou até mesmo não se inscrevem. É possível que a UFF aprove 80 editais diferentes, mas realmente eficazes em assegurar a igual- dade de direitos”, conta. Segundo a pesquisadora, a UFF não pode cometer no Mestrado e no Doutoradoosmesmoserrosverificadosnagraduaçãodevidoaostermosdefini- dos pela Lei 12.711/12. “A Lei de Cotas se mostrou um retrocesso para a população negra ao condicionar a questão racial à escolaridade na rede pública, desconsiderando a cota étnica constitucional como medida de reparação histórica. Por conta disso, a UnB (Universidade de Brasília), por exemplo, reduziu de 20% para 5% a reserva de vagas a negros. Classe e raça se cruzam, mas são fatores autônomos. O racis-
  • 26. 26 mo é vivenciado tanto pelo negro da rede pública quanto pelo da rede privada. Queremos que na pós graduação a cota racial seja aplicada independente da origem de ensino desse estudante e, por isso, me sinto orgulhosa de participar da estruturação dessa política.Vemos hoje uma abertura ao tema que eu nunca havia vivenciado em mais de 30 anos numa universidade que sempre demons- trou uma posição mais conservadora”, pontua. Sancionada pela presidente Dilma Rousseff em agosto de 2012, a Lei de Cotas determinou a reserva de 50% das vagas ofertadas para as ações afir- mativas em favor das populações negra e indígena no quesito étnico, de baixa renda e oriunda do ensino básico na rede pública. O ajuste poderia ser feito de forma gradativa, com a adesão inicial de 12,5%. A cada ano a instituição deve- ria acrescentar este mesmo percentual ao cálculo. Seguindo este modelo, a UFF realizou o ingresso de 2013 com o valor mínimo, passando aos 25% em 2014, 37,5% em 2015 e, finalmente, 50% em 2016 em todos os cursos da graduação. Para concorrer pelas ações afirmativas, todos os candidatos devem ser egressos do Ensino Médio na rede pública e podem optar por uma entre três ramifica- ções (ver Figura 1): cota para ensino público, para o qual são destinadas metade das vagas reservadas; cota social, que leva em conta os candidatos cuja renda familiar é igual ou inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa (aproximadamente R$1.320,00); e a cota racial, voltada a pretos, pardos e indígenas considerando ounãoocritérioeconômico.Opercentualétnicoécalculadoconformeosdados populacionais do IBGE na unidade federativa onde a instituição está situada. Se- gundo o instituto, 79,2% dos estudantes de 15 a 17 anos do Rio de Janeiro estão matriculados no ensino público, o que equivale a 530.374 jovens. DistribuiçãodevagasreservadasconformeaLeide Cotas
  • 27. 27 OscritériosdefinidospelaLeideCotasdividiramopiniõesatémesmoen- tre os defensores da política. Por um lado, a determinação significava um avanço histórico por tornar a adoção obrigatória, já que das 59 instituições federais, so- mente 36 ofereciam algum tipo de ação afirmativa, entre as quais 25 considera- vam o diferencial étnico para pretos, pardos ou indígenas. Em contrapartida, a lei restringiu a aplicação da cota racial ao condicioná-la à origem na rede pública de ensino.Esperava-sequealegislaçãoseguiriaoparecerdoSupremoTribunalFede- ral (STF), o qual havia aprovado, meses antes e por unanimidade, a constituciona- lidade das cotas raciais, com o objetivo de superar as desigualdades provocadas peloracismo,tendoaUnBcomoreferênciaemodeloaserseguido.Adiscussãodo tema começara em 2008 quando o Partido Democratas (DEM) recorreu à Justiça sob o pretexto de que, ao diferenciar brancos e negros, a política feria a Constitui-
  • 28. 28 ção Brasileira, que versa a respeito da igualdade entre todos os cidadãos. O STF, no entanto, se valeu da mesma legislação para julgar em favor da necessidade de viabilizar condições para que a população negra também tenha garantido o acesso à educação de qualidade. AUFFteveachancedesetornarumreferencialquantoàinclusãoracial em2004,pormeiodeumapropostadeimplementaçãodecotasraciaisformula- da pelo Penesb. Ao realizar o primeiro Censo Étnico-Racial da história da institui- ção no ano anterior, os pesquisadores constataram que, entre os 10.968 alunos matriculados, somente 669 eram pretos. O Censo também revelou que 63,7% do corpo discente era formado por brancos, seguidos dos pardos com 25,8% e dos pretos com 4,3%. A partir daquele ano, a Federal Fluminense passou a perguntar a etnia dos candidatos no momento da inscrição. De acordo com Iolanda de Oli- veira, a análise racial dos vestibulandos, desde a candidatura até o resultado final, indicou parcelas significativas de negros entre os aprovados não classificados, isto é, aqueles que obtiveram notas válidas, porém não suficientes para a quantidade de vagas em cursos bem disputados, como Medicina e algumas Engenharias. A proposta recebeu parecer favorável da algumas instâncias administrativas, porém encontrouresistênciajuntoaoConselhodeEnsinoePesquisa. “A ausência de negros na sala de aula era gritante, como comprovado no Censo, porém as estatísticas sinalizavam que a reserva de vagas daria conta de absorverestepotencialnegro.Preferimoscongelaraideiadoquesubmetê-laàre- provação. Caso tivéssemos obtido sucesso, a discrepância entre brancos e negros naUFFaindanãoseriatãoacentuadamaisdedezanosdepois”,lamentaIolanda. Uma pesquisa realizada em 2012, último vestibular sem cotas na UFF, levantou os cursos em que a população negra supera a branca em interesse e aprovação. São eles Administração (Itaperuna), Enfermagem (Niterói), Pedagogia (Angra, Pádua e Niterói), Produção Cultural (Rio das Ostras) e Serviço Social (Cam- pos,RiodasOstraseNiterói).Apresençasereduzàmedidaqueoscandidatossão aprovados. A Pedagogia lidera (Angra dos Reis e Niterói), seguida pela Psicologia (RiodasOstras)eoServiçoSocial(CamposeNiterói).Oestudoafirmaqueasáreas
  • 29. 29 Distribuiçãodeingressantesnoprimeirovestibular comCotasdaUerj têm em comum a maior empregabilidade, predominante no setor público, cujos processosdeconcorrênciatêmpotencialdepreconceitoreduzidos. Iolanda colabora com o levantamento ao afirmar que alguns cursos não registramprocuradapopulaçãonegraporqueaprópriaseleçãoéumapolíticade discriminação. “O estudante desiste da carreira dos sonhos à medida que avalia a rea- lidade do curso. A Odontologia, por exemplo, exige aquisição de kit, um material com itens caros. Os cursos integrais também comprovam isso, já que o candidato precisaestarnomercadodetrabalhoparasustentarasimesmoouàfamília.Todos estesfatoresprecisamseravaliadosquandosefalaempolíticadeaçãoafirmativa”, reforçaIolanda. Referência na região e alvo de inúmeras críticas à semelhança da UnB, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro se tornou a pioneira na adoção de cotas no ensino superior do país com a aprovação de leis estaduais sob forte ação dos movimentos sociais. A Lei 3.524/00 destinou 50% das vagas a egressos do ensino médio na rede pública, e a Lei 3.708/01 instituiu, pela primeira vez, as cotas raciais, estabelecendo que 40% das oportunidades seriam preenchidas pela população negra. Com base nessa legislação, em 2003, a Uerj distribuiu a oferta de vagas em dois vestibulares: um destinado aos candidatos que cumpriram o Ensino Médio públicoeoutroparaamplaconcorrência.Ascotasraciaisseriamaplicadasemam- bos.Nestemodelo,63,4%dosaprovadosingressarampelascotas,oquerepresen- tou 3.116 estudantes. Os demais 36,6%, sem cotas, totalizaram 1.793 alunos (Ver Figura2).
  • 30. 30 2.114 (43,7% do total) estudantes de escolas públicas 972 (19,7% do total) pretos e pardos que não estudaram em escolas públicas (atendem apenas ao requisito racial) 1.147 (23,4% do total) outros estudantes da rede pública (atendem apenas ao requisito da escola pública) 997 (20,3% do total) pretos e pardos oriundos da rede pública (atendem aos dois requisitos) Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação Após a primeira seleção inclusiva, a Lei 4.151/03 trouxe modificações aoestabelecerarendafamiliarcomocritérioparacandidaturaaquaisquertipos de cotas5 . A alteração também definiu uma nova divisão: 45% de vagas reser- vadas, sendo 20% para estudantes oriundos da rede pública desde o segundo ciclo do Ensino Fundamental até a conclusão do Ensino Médio; 20% para ne- gros; e 5% para pessoas com deficiência e minorias étnicas. Quando as cotas completaram dez anos, a Uerj registrava a entrada de 15 mil cotistas, entre eles quase sete mil negros (Ver Figura 3).
  • 31. 31 “Alémdesteacompanhamentonoaprendizado,aassistênciaabrangeas bolsas de incentivo à manutenção do estudo, que pode se estender até a forma- turacasooalunomantenhaacondiçãofinanceiradesfavorável.Ocotistatambém tem direito, anualmente, a um auxílio no material didático, garantido por meio de dotação orçamentária específica para este fim. Medidas como essas contribuíram para que a evasão entre os cotistas seja menor do que entre os não-cotistas. O sis- Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação * Dados relativos ao primeiro semestre de 2012 5 Em 2016, o corte socioeconômico socioeconômico da Uerj equivalia a R$ 960,00 mensais per capita. Autora de uma tese de doutorado a respeito das cotas na Uerj, a profes- soraTeresaCaminha,daFaculdadedeAdministraçãoeCiênciasContábeisdaUFF, afirmaqueosucessodapolíticanainstituiçãoestadualsedeveadoisfatoresprin- cipais: a criação de mecanismos em prol da melhoria das condições de estudo do estudanteeoesforçodocotistaemalcançarresultadosdeumaconquistacustosa. Através do Programa de Iniciação Acadêmica - o PROINICIAR, a Uerj começou a ofereceroficinasemdiversasáreasdeconhecimento,comoPortuguês,Inglês,Ita- liano, Alemão, Informática, além de atividades culturais. Até 2008, a participação doscotistaseraobrigatória.Atualmente,asoficinasestãoacessíveisatodososalu- nos de graduação, porém cerca de 60% são destinadas aos alunos da reserva de vagas.Nosegundosemestrede2014,1.413estudantesparticiparamdasoficinas.
  • 32. 32 temadecotas,semumapolíticadepermanência,corresériosriscos”,avaliaTeresa. O rendimento dos estudantes cotistas derrubou fortes argumentos utili- zadosparadeslegitimarasaçõesafirmativasnaeducaçãosuperior,comoaqueda na qualidade do ensino devido à entrada de alunos‘menos preparados’e a pers- pectiva de que, por não conseguirem acompanhar o ritmo da turma, os cotistas desistiriam do curso. ParaTeresa, a assistência estudantil aliada ao esforço pessoal dosalunostêmcomprovado em números por que motivos a Uerj é reconhecida como referência (Ver Figura 4). Fonte: Coordenadoria de Articulação e Iniciação Acadêmicas da Sub-reitoria de Graduação Embora reconheça o indício de sucesso da política na pioneira Uerj, o professor JulioTavares lembra que o processo se mostrou gradativo na UFF, devi- doàresistênciaaumsistema‘maisradical’.Asaçõesafirmativascomeçamaganhar formanaUniversidadeem2007comaimplantaçãodaPolíticadeAssistênciaEstu- dantil(PAS)edoProgramaNacionaldeAssistênciaEstudantil(PNAES),queregula- mentaram a concessão de bolsas de alimentação, apoio emergencial, treinamen-
  • 33. 33 to, auxílio-creche, auxílio-moradia e auxílio-alimentação. Somente em 2009, a UFF consolidaabonificaçãonanotadoscandidatosegressosdoEnsinoMédionarede pública, modelo aplicado até hoje na Universidade de São Paulo e (USP) e na de Campinas (Unicamp). Segundo o regulamento, o aluno deveria acertar ao menos 50%dasquestõesdaprimeirafasedovestibularparaganhar10%debônussobre ocálculodasduasetapasdoconcurso.Assim,aturmadeMedicinade2011setor- nou a primeira entre as federais do Rio de Janeiro a contar com dez alunos oriun- dosdaredepúblicadeensino.Em2012opercentualdabonificaçãoduplicou. “A Universidade reuniu uma equipe de matemáticos em busca de uma porcentagem ideal. No entanto, os estudos relacionados às ações afirmativas no Brasilenoexterioracenavamemdireçãoàrelevânciadosvaloresqualitativos.Nos Estados Unidos, por exemplo, a prioridade não é o número exato de negros que vão ingressar, e sim a importância da presença do negro na universidade, quais saberes e valores culturais ele trará. Da forma como adotamos, houve mudanças, porémsemaautorreflexão.Elatemseformadorecentemente,comascotas”,conta Julio. Estudos da Unicamp verificaram uma distribuição desigual dos candidatos beneficiados pela bonificação: os cursos menos concorridos apresentam maior quantidade de ingressantes, enquanto as graduações mais disputadas permane- cemintactas. Essa assimetria é fácil de entender. Imaginemos que o bônus consiste em adicionar 20 pontos a alunos oriun- dos da escola pública e que para o curso de Pedagogia a nota de corte no vestibular (acima da qual o candidato é aprovado) seja 100 e para o curso de Medicina seja 400. O bônus de 20 pontos confere ao candidato ao curso de Pe- dagogia uma vantagem muito maior, 20% da nota de cor- te, do que ao candidato ao curso de Medicina, para o qual o bônus corresponde apenas a 5% da nota de corte. Isso não ocorre nos sistemas de cotas em que as reservas são aplicadas a cada curso e turno, pois nesse caso a presença do grupo de beneficiários é nominalmente garantida pelo procedimento, a despeito das notas e outros procedimen- tos de entrada (DAFLON & FERES JUNIOR, 2014, pág. 37).
  • 34. 34 Para Teresa Caminha, a bonificação apresenta resultados tímidos, sem asseguraroacesso,poisnãonãoexisteumadeficiênciadeaprendizadopadrão. “A defasagem é herdada de diferentes ofertas de ensino, que têm, igual- mente, graus de problema distintos. Do mesmo modo, as condições das famílias. A reserva de uma quantidade de vagas, ainda que não elimine essas diferenças, oferece melhores condições da proposta de inclusão. Por hipótese, podemos ter umabonificaçãoqueserásuperadaportodososcandidatosnãobeneficiados,in- viabilizando a inclusão. Isto me parece matematicamente possível”, analisaTeresa, que fará, a partir de 2017, pesquisa semelhante definindo a UFF como objeto de estudo. De pronto, a especialista assevera que ainda é cedo para apontar grandes resultadosnaFederalFluminense,vistoqueasprimeirasturmasformadaspelare- servadevagasconcluemagraduaçãonosegundosemestrede2016. “Sãotrajetó- rias muito distintas.Vamos analisar como a UFF se comporta com a Lei de Cotas e comotemformuladoaassistênciaestudantil”,acrescenta. Osnúmerosacenamqueapopulaçãonegraeapopulaçãodebaixaren- da devem crescer de forma efetiva à medida que as universidades federais cum- pram o valor máximo delimitado às cotas. Ou seja, se o percentual de 50% na re- servadevagaspassouaseraplicadoemtodasasfederaisem2016,asturmascom formatura prevista para 2019 terão o reflexo idealizado. Isso porque, mesmo com políticasisoladas,asaçõesafirmativastêmproporcionadooaumentodarepresen- tatividade da população negra na graduação. Em 1997, o Ministério da Educação contabilizava apenas 1,8% de jovens pretos e 2,2% de pardos entre 18 e 24 anos cursando ou com diploma universitário. De acordo com levantamento divulgado emagostode2016pelaAssociaçãoNacionaldosDirigentesdasInstituiçõesFede- raisdeEnsinoSuperior(Andifes),operfildoestudanteuniversitáriotemsemodifi- cado(VerFigura5).
  • 35. 35 Na UFF, a disposição dos dados raciais mais recentes dificulta uma ava- liação mais conclusiva sobre a distribuição populacional, visto que os percen- tuais de aluno que não informam ou não declaram a que etnia pertencem são bastante altos. Apesar desse fator, a comparação entre o Censo Étnico de 2003 e os dados do Sistema de Informação referentes a 2016 indica alteração no perfil do graduando nos cursos tidos como os mais concorridos da universidade no ano base: Medicina, Comunicação, Biomedicina e Direito, respectivamente (Ver Figuras 6, 7, 8 e 9). RepresentatividadeÉtnico-RacialnoCursodeMedicina Perfil do Universitário entre 2003 a 2014
  • 37. 37 RepresentatividadeÉtnico-RacialnoCursodeDireito *O curso de Direito, em 2016, também é oferecido em Macaé e Volta Redonda Tendo como base os números relacionados aos cotistas, a instituição também demonstra crescimento da população preta e parda. De 2014 para 2015, a UFF apresentou um salto quantitativo de 460 para 6.192 alunos cadas- trados na política, sendo que a maioria está inserida no recorte racial (Ver Figura 10). TotaldeAlunosnosProgramasdeReservadeVagas Fonte: IdUFF- Sistema Acadêmico de Graduação da UFF
  • 38. 38 ComunicaçãoSocial Secompararmosoingressodecotistasentre2013,anodeaplicaçãode 12,5% de cotas, e em 2016 com 50%, poderemos analisar um crescimento que tende a se intensificar (Ver Figuras 11, 12, 13 e 14). Distribuiçãodevagasdeacordocomaaplicação daLeideCotas Medicina
  • 39. 39 Biomedicina Direito AC: Vagas preenchidas por ampla concorrência; Cota Social 1 = Ensino Médio cursado integralmente em escolas públicas e renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa; Cota Racial 1 = Pretos, pardos e indígenas com Ensino Médio cursado integral- mente em escolas públicas e renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo por pes- soa; CotaEscolaPública1=EnsinoMédiocursadointegralmenteemescolaspúblicas, Legenda:
  • 40. 40 Mais do que uma transformação quantitativa, os estudantes negros da UFFtêmampliadosuarepresentatividadecominiciativasquebuscamdarvisibi- lidadeademandasprópriase agregarindivíduos.Nessesentido,2016setornou um marco com a realização da I Calourada Preta, durante a Semana de Acolhi- mento Estudantil do primeiro semestre letivo. Com mostras de filmes, rodas de conversa, oficinas e palestras, os participantes discutiram temas como a saúde da população negra, a estética como empoderamento, a realidade da mulher e do LGBTT negro. “Foi uma iniciativa para dar boas vindas ao estudante preto e alterar esta primeira impressão da universidade como um ambiente excludente. Re- sultou em uma oportunidade de trocar experiências. Pudemos conversar sobre nossavidaecriarvínculos.Havianegrosnauniversidade,masquenãoseconhe- ciam. A partir dali, passamos a andar mais juntos, a nos comunicar a respeito dos nossos desafios e nos articular politicamente”, conta Matheus Cabral, aluno da História e integrante do Pretos Sem Nome. Diante das manifestações de repúdio à PEC, que pretende congelar os investimentos do Estado em educação e saúde pelos próximos 20 anos, o gru- po criou, em novembro, a Ocupação Preta, com a apropriação de uma estrutura abandonada no campus do Gragoatá, ao lado da livraria. Os estudantes trans- formaram a construção em um espaço de convivência onde dormem, fazem refeições e promovem atividades culturais, entre elas oficinas de pintura e con- tação de história sobre mitologia africana com crianças da creche universitária FONTE: Coordenação de Seleção Acadêmica (COSEAC-UFF) sem recorte de renda; Cota Racial 2 = Pretos, pardos e indígenas com Ensino Médio cursado integral- mente em escolas públicas, sem recorte de renda; CotaEscolaPública2=EnsinoMédiocursadointegralmenteemescolapública,à exceçãodasunidadesfederais,militares,deaplicaçãoeuniversitárias.Estaopção equivalia à bonificação aplicada pela UFF antes da Lei de Cotas e foi suspensa a partir do processo seletivo de 2015.
  • 41. 41 e comunidades adjacentes, rodas de leitura de autores negros, aulas com pro- fessores que apoiam o movimento, encontro de poesia com artistas negros, etc. Valendo-se do conceito de“aquilombar-se”6 trabalhado por Abdias Nascimento, enxergam a ocupação como um“espaço de cura”, onde podem compartilhar ex- periências e ajudarem-se uns aos outros. Desde a reunião que desencadeou a ocupação, os estudantes proje- tam a permanência no local, com a aquisição definitiva junto à Universidade. O grupo já deu início a estudos para aprimorar as condições de salubridade, devi- do à inexistência de banheiros e à escassez de água, e está esperançoso quan- to à resposta da UFF em favor da manutenção do espaço com os estudantes. A expectativa é expandir as ações aos funcionários terceirizados e a moradores de áreaspróximas,comaulasdereforçoescolar,oficinasdemúsicae,alongoprazo, um pré vestibular comunitário. Mesmo em pouco tempo, a Ocupação recebeu representantes do movimento Black Lives Matter, que denuncia a violência poli- cial contra a juventude negra nos Estados Unidos. “Sabemos que a população preta será a mais afetada pelas consequ- ências da PEC, dentro e fora da universidade. Independente da resolução que tivermos em nível nacional e da retomada das aulas, vamos manter a Ocupação. Ela nos é necessária como espaço onde podemos falar de vivências não con- templadas pelas ementas das disciplinas, onde encontramos quem nos ouça e compreenda sem debochar dos nossos problemas ou nos acusar de ver racismo em tudo. Estamos aqui para falar dele sim, porque não queremos que ele exista. Quem se incomoda com o nosso discurso provavelmente é beneficiado por ele. Temos muito a dizer e contamos com os estudantes não negros nesse processo. Queremos que eles saibam o porquê de estarmos aqui”, enfatiza Lorena Gomes, de Ciências Sociais. 6 Aquilombar-se é, portanto, uma ação contínua de existência autônoma frente aos antagonismos que se caracterizam de diferentes formas ao longo da história dessas comunidades, e que demandam ações de luta ao longo das gerações para que esses sujeitos tenham o direito fundamental a resistirem e existirem com seus usos e costumes. Esse existir tem um movimento fortemente voltado para a coletividade, para os laços que unem os quilombolas entre si e que, num movimento mais amplo, une as comunidades de distintas regiões. (SOUZA, Barbara Oliveira, 2008, pág. 11)
  • 42. 42 MesmocomtantosdesafiosdiáriosnosespaçosdaUniversidade,oses- tudantes negros buscam aplicar o ideal de coletividade em defesa daqueles que ainda sonham e lutam por uma vaga no ensino superior público. Isso porque as fraudes nas cotas têm colocado em risco o cumprimento das ações afirma- tivas em favor do público ao qual se destinam. Instituições renomadas como a Uerj e as federais do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Espírito Santo (UFES) regis- tram, desde 2014, denúncias de uso da medida por candidatos que se autode- claram negros durante a seleção, contudo não pertencem a tal grupo social. A repercussão em nível nacional acentuou os debates sobre a autodeclaração se mostrar um critério insuficiente para a ocupação das vagas reservadas, quando aplicada de forma exclusiva. Durante a votação de 2012, o STF considerou que o candidato deveria ter aparência de negro para concorrer às cotas raciais, ou seja, apresentarcaracterísticasdefenótiponegro,comocordapele,texturadocabelo e traços físicos, em detrimento do genótipo, que leva em conta a composição genética.Contudo,aLeideCotasnãoincluiemseutextocritériosacercadafisca- lização.Sendoassim,cadauniversidadetemoptadopelométodoquejulgamais adequado para avaliar ou não os candidatos. ApóssernotificadapeloMinistérioPúblicosobre27casosdefraudeno cursodeMedicina,aUniversidadeFederaldePelotas(UFPel),instituiuumgrupo formado por professores, alunos e militantes do movimento negro para levantar informações e entrevistar os acusados, o que resultou na redução do número de denúncias. A comissão comprovou o uso indevido da cota por candidatos brancos, todos expulsos da instituição no final de dezembro. A Reitoria da UFPel secomprometeuaabrirumnovoeditalparareocuparasvagas,direcionando-as a estudantes negros que chegaram a iniciar uma Faculdade de Medicina, mas que precisaram abandonar as aulas devido a dificuldades financeiras, deixando o exemplo de que, além de combater a fraude, a Universidade deve reparar os danos causados por ela. Os coletivos negros da UFF formularam proposta se- melhante, após constatarem turmas de 2015 e 2016 que não apresentam qual- queringressantenegroouaindapossuemalunosnegros,porémaprovadossem
  • 43. 43 A discussão de ações afirmativas para a população negra tem criado certa mudança comportamental nos indivídu- os com ascendência negra, mas socialmente identificados como brancos, quer pela distância entre eles e seus ascen- dentes negros, quer pela famosa obra da natureza que permite, a uma família mista, ter filhos brancos ou negros. Todos esses fenômenos no contexto do racismo estrutural, que permeia as relações sociais, permitem a alguns indi- víduos sentir ou entender que, no momento de programas positivos, seu recalque ou desespero, por terem na família membros negros ou por estarem em constante alerta para apresentarem-se socialmente como brancos, agora deve ser considerado para uma, talvez, compensação de dores (BER- TULIO, 2007, pág. 54) Como esperado, divulgar o cenário de fraudes não desencadeou o apoio da comunidade acadêmica em coibir os brancos praticantes de falsidade ideológica, e sim acarretou mais desgaste aos militantes negros. Opositores às utilizar a cota racial. Somente no curso de Relações Internacionais, um dos mais visados, o grupo apurou 12 pessoas brancas beneficiadas de forma indevida pela cota racial. Até dezembro de 2016, a contagem de fraudes se aproximava dos 100 casos. O movimento pretende levar as denúncias à Reitoria e sugere a formação de uma comissão de aferição, composta por professores, técnico-ad- ministrativos e estudantes, que farão entrevistas com os ingressantes cotistas no momento da matrícula. Para os coletivos, o fenômeno explicita as nuances do racismo brasilei- ro. Num primeiro momento, a sociedade desprezou a necessidade de políticas públicas destinadas à população negra, valendo-se de argumentos como a ine- xistência de racismo no país, o mito da democracia racial ou até mesmo a difi- culdade de definir quem é ou não negro por conta da miscigenação. À medida que as cotas raciais se consolidam através da lei, outros artifícios passam a ser utilizados para inviabilizá-la, entre eles a alegação de ascendência familiar, como comenta Dora Lucia Bertulio.
  • 44. 44 ações afirmativas étnicas chegaram a acusá-los de querer estabelecer um“tribu- nal racial”no processo seletivo, argumento recorrente nos debates pró-cotas da década de 1990, que apela a uma suposta dificuldade de identificar o indivíduo pardo. “Voltamos ao discurso da democracia racial consolidado por Gylberto Freire e amplamente difundido como projeto político dos governos da época e seguintes. Quase cem anos depois da publicação (do livro Casa Grande & Sen- zala), tal ideia de nação miscigenada, nas quais os conflitos raciais inexistem, permanece no imaginário popular. Contudo, sabemos que a escolha de deter- minados argumentos é proposital. Garantir a presença do negro no espaço de maior privilégio - que é a produção de conhecimento - não se configura como prioridadenanossasociedade,porqueelanãodesejaquesurjadeumintelectu- alnegroatesequepodevigorarnoBrasildospróximosanos.Eofalseamentoda noção de pertencimento social vem desse jogo, com a problemática do pardo. Mas nós sabemos quem é negro e quem não é, quem é pardo e quem não é. A leitura racial ocorre pela sua marca. Não há dificuldade em reconhecer o negro na hora de praticar o racismo; a questão torna-se um problema somente quan- do buscamos a garantia de direitos”, explicam os representantes dos coletivos e estudantes negros independentes7 . De acordo com a Professora Iolanda de Oliveira, as universidades po- dem enfrentar o mau uso das cotas raciais tendo como respaldo a Orientação Normativa Nº03, publicada pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, em agosto de 2016, que regulamentou a aferição de veracidade dos candidatosacotasraciaisnosconcursospúblicos.Alegislaçãoestabelecequeas comissões atuem antes da homologação do resultado final, analisando, presen- cialmente, os aspectos fenotípicos do candidato negro que se autodeclarar pre- tooupardo. Areservadevagasnoserviçopúblicovigoradesde2014,conforme 7 Os estudantes que abordam a questão das fraudes não foram identificados por nome e curso com o intuito de evitar possíveis represálias, que já têm ocorrido contra alguns deles.
  • 45. 45 a Lei 12.990, que determina 20% de cotas raciais nos concursos. Iolanda ressalta ressalta que as comissões objetivam garantir o cumprimento de uma política de reparação e não definir quem é ou não negro. “Raça é um conceito social, não biológico. Por conta disso, o STF não considera os critérios de genótipo, pois sabemos que a raiz do ser humano é africana, ou seja, todos nós, brancos ou negros, podemos ter genes de origem africana.Oqueasociedadeprecisacompreenderéqueumapolíticapúblicavol- tada a um grupo social historicamente excluído deve cumprir tal função e ser aplicada para que esta desigualdade seja superada. Sendo assim, não importa o pai negro, o avô negro, o primo negro, pois ninguém na rua pergunta a cor dosfamiliaresantesdepraticarracismo.Nemnalojaondeonegroéperseguido, tampouco na vaga de emprego para a qual ele é preterido. O racismo no Brasil se constitui devido às características negras do indivíduo, portanto, podemos reconhecer a negritude autodeclarada, mas a política de reparação deverá ser assegurada a quem é, de fato, afetado pelo racismo”, explica.
  • 46. 46 AçãoafirmativanoBrasilenoMundo O conceito de ação afirmativa vem da Índia, cuja legislação incorporou, três anos após a independência, a reserva de vagas nos espaços de decisão, no serviço público e nas universidades, com o objetivo de reduzir as desigualdades socioeconômicasprovocadaspelosistemadecastas.Aspolíticasganharamvisibi- lidademundialnasdécadasde1970e1980,quandoosEstadosUnidosinstituíram tais práticas na contratação e formação de empresas, participação de negros na publicidadeepromoçãodeconsciênciaracial,deformaaestimulartodaapopula- çãoarefletirsobreocombateaoracismo.OpresidenteLyndonJhonsondiscursou em favor da política ainda em 1965, afirmando que apenas a garantia dos direitos civis,principalfocodasmobilizaçõespopularesdaépoca,nãoseriasuficientepara enfrentar a discriminação:“Você não cura as cicatrizes de séculos apenas ao dizer: ‘agora vocês são livres para ir aonde querem, fazer o que desejarem e escolher os líderes que lhes aprouverem’.Você não pode pegar um homem que passou anos acorrentado, libertá-lo, trazê-lo para a linha de partida de uma corrida, e dizer: ‘você está livre para competir com os outros’, e acreditar que você está sendo jus- to... Este é o próximo e mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Não buscamos apenas liberdade, mas também igualdade de oportunidades, (...) não apenas igualdade como um direito e uma teoria, mas igualdade como um fato e como resultado”. Com base no exemplo estadunidense, África do Sul e Colômbia implementaram políticas de igualdade racial, como também promovem até hoje Malásia,China,SriLanka,IrlandadoNorteeCanadá. No Brasil, as ações afirmativas mais antigas remetem à Lei de Terras de 1850, que concedia facilidades à aquisição de território aos imigrantes europeus, com a pretensão de substituir a mão de obra negra e escravizada pela branca e assalariada.ImpulsionadapelasteoriasracistasdoséculoXIX,quedefendiamasu- perioridadedebrancossobrenãobrancos,apolíticaseconstituiucomoestratégia paraexecutaroidealdeembranquecimentodapopulaçãobrasileiratantonasca- racterísticas físicas quanto nas culturais e, consequentemente, impedindo que os
  • 47. 47 escravizados almejassem,apósaliberdade,umasociedadenaqualpudessemser reconhecidos como construtores do país. Como resultado, os negros livres foram privados de políticas de acesso à educação e reinserção no mercado de trabalho como cidadãos, o que resultou na predominância negra entre a população mais pobredopaís,noensinopúblico,notopodosrankingsdeanalfabetismoenabase das estimativas de rendimento. Estes e outros fatores impulsionaram vertentes do Movimento Negro a pleitear a inclusão social e reparação histórica. Na déca- da de 1930, a Frente Negra Brasileira emergiu na luta antirracista questionando, sobretudo,airrisória presençadenegrosnomercadodetrabalhoformaledenun- ciandoórgãospúblicosquesenegavamaformarquadrosmaisigualitários.AFNB priorizava a educação como caminho necessário à inclusão étnica, com a oferta de cursos profissionalizantes em filiais nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul. A FNB divulgava suas ideias em debates, passeatas e pelo jornal“A Voz da Raça”, criado em 1933, e chegou a registrar-se como partido político, porém sofreu a repressão da ditadura de Getúlio Vargas. Em 1944, a mobilização ganhou cunho cultural a partir da formação do Teatro Experimental do Negro, pelo escritor e professor Abdias Nascimento, como iniciativa de modificar a dramaturgia, constituída por atoresbrancos.OTENestreounoanoseguinte,levandonegrosaopalcoeàplateia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez. Pela atuação de Abdias como deputado e senador, chegou ao Legislativo Federal o primeiro projeto de açõesafirmativasparaapopulaçãonegra,oPL1.332de1983.Porocasiãodos110 anosdaaboliçãodaescravidão,oescritoreprofessordefendeuanecessidadedas cotas:“Ação afirmativa ou ação compensatória, é, pois, um instrumento, ou con- junto de instrumentos, utilizado para promover a igualdade de oportunidades no emprego, na educação, no acesso à moradia e no mundo dos negócios. Por meio deles, o Estado, a universidade e as empresas podem não apenas remediar a dis- criminaçãopassadaepresente,mastambémpreveniradiscriminaçãofutura,num esforço para se chegar a uma sociedade inclusiva, aberta à participação igualitária detodososcidadãos”. Apropostaficouestagnadaesofreuorevésdesersubstituídanasdiscus- sões sobre ações afirmativas pelo PL 73/99 que defendia a reserva de no mínimo 50% das vagas nas universidades públicas federais para estudantes que tenham
  • 48. 48 cursadointegralmenteoensinomédioemescolaspúblicas.Oprojetoanexouou- trossobreomesmotemaemencionouacotaracialanegroseindígenasemforma de emenda. A partir dali, a preponderância social se sobreporia à racial. O Movi- mentoNegro,intelectuaissimpatizanteserepresentantesdasinstituiçõespúblicas de referência assinaram o Manifesto em favor das cotas raciais no ensino superior, enviado ao Congresso Nacional em 2006. Mesmo em um governo mais propício ao debate às demandas da população negra, as cotas étnicas foram excluídas do texto final do Estatuto da Igualdade Racial divulgado em 2010. A Câmara dos De- putados aprovou o PL 73/99 em 2008, em moldes semelhantes à definição da Lei 12.711/12.
  • 49. 49 Fotos Estudantes organizados protestaram durante evento da Antropologia para reivindicar avan- ço nas definições das cotas na pós-graduação. [Outubro 2016] Pichação encontrada no bloco A do campus Gragoatá, onde são ministradas aulas dos cursos de Relações Internacionais, Psicologia, Estudos de Mídia e Co- municação Social. [Novembro 2016]
  • 50. 50 A Ocupação Preta promove atividades sobre as demandas da população ne- gra com o intuito de fortalecer os jovens e dar visibilidade às suas particulari- dades. [Dezembro 2016] Estudantes ocuparam uma estrutura abandonada no campus Gragoatá. [No- vembro 2016]
  • 51. 51 Reportagem do Jornal O Casarão abor- dou a ausência de estudantes negros no Instituto de Artes e Comunicação Social. [Fevereiro 2013] Produção dos alunos suscitou debate sobre cotas e ajudou a desmistificar ar- gumentos contrários à política, como a meritocracia e a maior relevância da má qualidade da educação pública como fator mais relevante do que o racis- mo. [Arquivo Jornal O Casarão - Fevereiro 2013] Intervenção na entrada da Ocu- pação sugere que os visitantes reconheçam seus privilégios a fim de participarem das ações. [Dezembro 2016]
  • 53. 53 BernardoAffonso Bernardo tem 24 anos e cursa Relações Internacionais na UFF. Ingressou aos 21, no segundo semestre de 2013, pelas cotas destinadas a estudantes do ensino públi- co. Morador de Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, viu na distância en- tre casa e faculdade um dos principais obs- táculos a adquirir o diploma. Estudar, para ele, é uma luta diária. Era passar ou passar, a mãe dizia. Reforçava uma premissa que ele já conheciabem.Nãohaveriarecursosparafinanciarocursopreparatóriopormais um ano. Durante aquele período comprovou o que já suspeitava. Faltavam con- teúdos básicos em diversas disciplinas importantes para fazer a prova com se- gurança devido a um Ensino Médio conturbado na Faetec de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro. “Eu tinha muita dificuldade em Matemática. Não tive a disciplina em pelomenosumanoemeio.FísicaePortuguêstambémforamretiradasdagrade durante um ano letivo inteiro. Prejudicou bastante não ter acesso a essas ma- “Como pensar em ser enge- nheiro se não sei o básico de matemática? Não dá nem pra começar a sonhar, né...” térias com qualidade, porque te impul- sionaasedistanciardelas.Comopensar em ser engenheiro se não sei o básico de matemática? Não dá nem pra come- çar a sonhar, né...”. “Era passar ou passar. Mas não passei!”. Estudaremcasasetornouaúnicaopçãodisponível.“Masimaginauma
  • 54. 54 pessoa que tem dificuldade em várias disciplinas depender de estudar sozi- nho para o vestibular”, questiona. A cobrança e a pressão da mãe, professora na rede municipal do Morador de Santa Cruz, Bernardo utiliza três meios de transporte para chegar às aulas, que começam às 7h da manhã. Para chegar a tempo, sai de cssa com, pelo menos, três horas e meia de antece- dência. o idioma agora em um curso, por- que na escola era só para dizer que estava na grade. Tenho uma prova de Introdução ao Comér- cio Internacional nesta semana e 90% das obras da bibliografia estão disponíveis apenas em in- glês. Você busca resumos na in- ternet, pede ajuda a amigos para traduzir, mas é óbvio que o seu desempenho não vai ser tão bom, porque você não tem acesso ao conteúdo da disciplina. Tem que correr atrás do básico para tentar alcançar os colegas”. Se a língua estrangeira atrapalha o rendimento, a Geografia tam- “É isso o que acontece com os cotistas em geral. A gente entra porque uma lei garantiu. Nin- guém faz questão que a gente permaneça”. Rio e única fonte de renda da família, se intensificava à medida que a data da prova batia à porta.“Se não passar, você vai ter que ir trabalhar”. Nem precisava abrir a boca, o olhar dela já expressava a realidade. E o único cenário à frente era um emprego de baixa remuneração pelo resto da vida. Este medo, Bernardo desabafa, persiste até hoje. Ele ingressou no curso de Relações Internacionais na UFFem2013,quandojáhavia“desencanadodaideia”.Porémsedeparoucomas dificuldadesdopósvestibular.Doladodedentrodauniversidade,osobstáculos também são múltiplos. “A exigência do inglês me atrapalha bastante. Estou aprendendo
  • 55. 55 bém tem sua parcela de culpa. Da casa, em Santa Cruz, até a univer- sidade, em Niterói, são 70 quilô- metros, percorridos por BRT, trem e um ônibus intermunicipal. “Eu gastava seis horas do meu dia no transporte público. Para che- gar na aula às 7h, precisava pegar o trem das 4h20, no máximo. A aula ter- mina às 13h. Se eu parasse para almoçar, chegava em casa às 18h,19h. Por muitas vezes eu pensei em desistir… Você chega em casa exausto, estressa- do, não tem força para estudar e ter que fazer tudo de novo no dia seguinte e prefere dormir. Meu rendimento caiu muito, nunca me senti tão burro. Demorei a perceber que o problema não era comigo, e sim com uma rotina cansativa por morar tão longe”. Das cinco disciplinas inscritas, Bernardo passava em duas ou três. A média de aprovação, no entanto, nunca chamou a atenção da universidade. “O máximo que aconteceu foi receber um aviso do sistema online da UFF que alertava sobre o risco de perder a matrícula caso eu reprovasse a mes- ma disciplina mais uma vez. Fora isso, nunca houve qualquer preocupação da coordenação ou de algum departamento com o meu rendimento. Não sei di- zer se eles deduzem que eu não gosto de estudar ou coisa do tipo. Mas é isso o que acontece com os cotistas em geral. A gente entra porque uma lei garantiu. A rotina desgastante tem afetado o rendi- mento escolar do estudante de Relações Internacionais. Ninguém faz questão que a gente permaneça”. Matriculado na primeira fase das cotas, quando a porcenta- gem mínima era de 12,5%, Bernar- do encontrou uma versão bem me- nos preta da que vê hoje. “A primeira impressão que “Meu rendimento caiu muito, nunca me senti tão burro. Demorei a perceber que o problema não era comigo”
  • 56. 56 eu tive foi: a universidade é uma droga. Era um lugar ao qual eu não pertencia. Uma turma de 40 alunos e você como o único negro. E eu sequer era cotista racial, havia optado pela categoria social, que oferecia mais vagas. Tive dois pro- fessoresnegrosemtrêsanosdecurso.Opapelsocialdosnegrosnauniversidade é na limpeza, no bandejão, nos espaços de pouco poder. Daí a importância de ampliarmos o acesso às bolsas de iniciação científica aos cotistas e alcançarmos políticas de ação afirmativa na pós graduação. Precisamos de professores pretos para ter uma universidade mais democrática de fato”. Nostrêsanosquesepassaram,apresençadeestudantesnegrossetor- nou mais nítida. Mas, para comemorar, Bernardo ainda enxerga uma a jornada longa e que ultrapassa questões quantitativas. O racismo continua a se reprodu- zir, de segunda a sexta, dentro ou fora de sala. “Racismo é tabu. No meu curso, quando querem discutir preconceito, preferem falar da intolerância religiosa dos europeus contra os árabes. É mais fá- cil criticar o que está distante do que aquilo que é perpetuado debaixo do nosso nariz. Aliás, essa técnica de silenciamento é a principal arma do racismo velado praticado pelos colegas de sala. Se você questiona o fato de que existe apenas uma disciplina sobre os países africanos e que todos os pensadores de Sociolo- gia são brancos e ocidentais, torna-se o preto chato, que vê racismo em tudo. A galera apela para a máxima ‘Somos Todos Iguais’, como se o racismo já não existisse. Mas ele está ali, sendo reproduzido dia após dia”.
  • 57. 57 TainaraCardoso A gonçalense de 23 anos atribui à irmã a “culpa” pelo interesse em Psicologia. A caçuladafamíliasofreucomplicaçõesdopar- to e adquiriu algumas debilidades cognitivas. “Queria ser útil para pessoas como ela”, afir- ma.AoingressarnaUFFnosegundosemestre de2012,sedeparoucomacarênciadeprofis- sionaisnegrosjánasaladeaula,sejaemmeio aosalunosouaosprofessores.Emaisumasé- rie de preconceitos que precisam ser derruba- dos. Ao que depender de sua determinação e ativismo,poucosrestarão. Os‘olhinhos’dascriançasbrilhamaoouvi-lafalar. “Tia,euseibemoque é isso. Aconteceu comigo também”. Essas são afirmações frequentes nas ofici- nas que Tainara Cardoso ministra em escolas da rede pública de São Gonçalo, município onde mora. Há um ano, o Projeto África em Nós articula uma rede de amigos para debater temas ligados à negritude, com o objetivo de explicar as facetas do racismo e incentivar crianças e adolescentes a amarem a si mesmas, respeitarem-se umas às outras e acreditarem em seu potencial. O prazer em fortalecer os mais novos tem origem nas lições recebidas em casa. Sempre que visitavam as proximidades da UFF, os pais de Tainara afir- “A Universidade é o lugar da diferença. Se alguém se torna referência simplesmente por ser negro, é porque nossa presença ainda está muito contável”. mavam, com bastante convicção: “Tá vendo aqueles prédios ali? É onde você vai estudar!”. O coração da jovem se dividia entre a alegria deteraconfiançadafamíliaeapres-
  • 58. 58 são de não decepcioná-la. “Eles enfatizavam que meu ingresso no ensino superior seria nossa única chance de ascensão social. Não é uma questão de status, e sim uma ne- cessidade. Minha família via em mim a chance que ninguém teve antes. Apesar de toda a expertise, meu pai, que é construtor civil, mal terminou a quinta série”, contaTainara,quealémdebaterorecordedepioneiranauniversidade,também se tornou uma das primeiras a concluir o Ensino Médio. ContarsobreosprimeirospassosrumoaocampusdoGragoatáfazres- surgir as lembranças de tempos difíceis, de sacrifício e preocupação. Do Ensino Fundamental II ao Ensino Médio, Tainara enfrentou três greves na rede pública. Com a última delas às vésperas do vestibular, matricular-se num curso prepara- tório era a única saída. O África em Nós desenvolve atividades nas escolas públicas de São Gonçalo, destrinchando o racismo com crianças e adolescentes. Entre os principais te- mas abordados estão o genocídio da juventude negra e a representatividade .
  • 59. 59 “Nãotínhamosdinheiroparapagarocurso.Meofereciparalavarlouça, passar pano, varrer, qualquer tarefa útil em troca de uma bolsa de estudos. De- pois de muito chorar junto aos coordenadores, ganhamos um super desconto, mas, ainda assim, meus pais tiravam aqueles R$150 de outras contas. De pron- “No hospital, a pretinha de cabelo black power nunca é reconhecida como psicóloga; no máximo, a enfermeira”. to senti a carência em certas disciplinas e passei a morar no curso. Pedia aos pro- fessores para assistir às aulas em todos os turnosdisponíveis.Enquantoamentetra- balhava, o corpo respondia com crises de insônia, de estômago, emagreci muito. Mas quando você é preto e quer chegar a algum lugar precisa se esforçar para ser o melhor em tudo”, lembra. Embora ciente dos diversos obstáculos que precisou ultrapassar para chegar ao ensino superior, Tainara revela que, quando ingressou na UFF, em 2012, cultivava opiniões ainda conflituosas. “Eu me isentava das discussões sobre as cotas, porque não tinha argu- mentos para questionar os discursos contrários, geralmente tão engessados. Fui contemplada pela bonificação na nota final para estudantes de escola pública e, mesmo convicta da necessidade das ações afirmativas, senti, por muito tempo, um certo peso na consciência”, confessa. O cabelo crespo natural que encanta as crianças assistidas pelo África em Nós foi um elemento importante no processo de afirmação pessoal. É ato político, como gosta de afirmar. Entretanto, incomoda e causa estranhamento nos espaços de poder. Durante estágio no Hospital Universitário Antonio Pedro, os pacientes apresentavam dificuldade em reconhecê-la como psicóloga. “No hospital, a pretinha de cabelo black power nunca é reconhecida como especialista; no máximo, a enfermeira. Somos a mão de obra mais bara- “Quando você é preto e quer che- gar a algum lugar precisa se esfor- çar para ser o melhor em tudo!”. ta que, quando perde a função de servir, é destinada ao extermínio. Temos lugares que são determina-
  • 60. 60 Tainara questiona a resistência do curso de Psicologia a reconhecer as demandas espe- cíficas da população negra, que é majoritá- ria nos hospitais psiquiátricos. dos para nós, e a Universidade ou o bom emprego não estão entre eles”, assevera. Seja na experiência profissional ou no dia a dia da sala de aula, a sensação permanece - “A Universidade é o lugar da diferença”. Única negra em um semestre com 50 ingressantes, a gonçalense explica a falta de entendimen- to dos colegas quanto à reali- dade da população negra. “Nãoentranacabeça de certas pessoas que tem to- quederecolhernomeubairroe,porisso,nãopossoficaratétardenaCantareira. Meu pai e meu irmão se revezam em me dar carona e, quando escapam de ser advertidospelo‘comando’,sãoacusadoscomocriminosospelaPolícia.Ninguém nunca me xingou de‘macaca’ou alguma outra ofensa que geralmente a socie- dade associa a racismo com mais facilidade. Aqui se reproduz a visão do negro como o exótico, o espetáculo. ‘Olha como o cabelo e as roupas dela são dife- rentes; tem uma negra na Psicologia, vamos bater palmas para ela’. Fui a única graduanda convidada para um evento da Pós sobre questões raciais. Se alguém se torna referência simplesmente por ser negro, é porque nossa presença ainda está muito contável. E isso me assusta muito, pois a universidade pública não aplica o fator público efetivamente. Falta entendimento sobre a nossa realidade. Daí,selevantamosessesquestionamentos,somoscriticadosporverracismoem tudo. Sim, matou a questão. Ele está em tudo!”, enfatiza. Segundo Tainara, apesar do viés humanizado e de ser conhecida pela
  • 61. 61 empatia quanto às questões sociais, o curso de Psicologia apresenta resistência em compreender o racismo como um problema estrutural. “Faço parte da equipe de profissionais e estagiários que oferece à po- pulação e à comunidade acadêmica atendimento a preços populares. O pobre enxerga a Psicologia como algo distante de sua realidade. Depressão é doença derico,pobrenãopodechorarnemmostrarfraqueza.Mesmoosquesuperamo senso comum não dispõem de R$400 para pagar uma consulta. Sabendo que a maioria da população de baixa renda é formada por negros, o serviço que pres- tamos deveria considerar a importância de disponibilizar profissionais negros para os atendimentos. Eu mesma acompanhei uma paciente bastante vaidosa com o cabelo até que apareceu na consulta careca. Ela havia sofrido um corte químicodevidoaosprodutosqueusava,eaquiloprejudicoumuitoaautoestima dela. Mas por conhecer o tema, pude ter a sensibilidade de compreender como aquilo poderia afetá-la. A academia não reconhece as demandas específicas do paciente negro, tanto que o assunto não faz parte da grade. Porém, enquanto estes fatos são negados, a população negra predomina nos hospitais psiquiátri- cos1 ”, questiona. Em meio a tantos preconceitos a serem derrubados, pequenos episó- dios revigoram a esperança de ver a Universidade enegrecer. Entre eles, Tainara destaca a primeira vez em que encontrou uma mesa ocupada somente por es- tudantes negros no bandejão. “Foiummomentoépicoparamim.Elessequerseconheciam.Fuiacha- ta de perguntar o nome, o curso, a localidade de todos. Ontem era somente eu, amanhã a turma terá três, quatro e, assim, vamos avançando. É algo que sempre converso com as crianças. Isso aqui (apontando para o campus) tem que ser op- ção para nós”, ressalta. 1 O estudo“A Custódia e o Tratamento Psiquiátrico no Brasil - Censo 2011”, publicado pela UnB, revelou que, nos 26 estabelecimentos em funcionamento no país, pretos e pardos somavam 44% (1.782), brancos, 38% (1.535), 0,2% (9) de amarelos e 0,2% (7) de indígenas e para outros 16% (621) dos internos, não havia registro de cor.
  • 62. 62 MatheusAraújo Aincertezafinanceirapreocupaojovem de 21 anos que cursa o terceiro período de Enge- nhariaMecânica.Masoquerealmenteoincomo- daéverqueaigualdaderacialaindaéumameta distante na sua área. Intitulando-se “a cota da cota”,Matheuscriticaoscolegasdeturmaqueuti- lizam as cotas raciais por conveniência e prejudi- cam o público a quem a política se destina. Cheio desonhos,projetaumaUniversidademaisatenta às necessidades dos cotistas e, obviamente, mais preta. A má gestão administrativa do governo desencadeou uma crise his- tórica no Estado do Rio de Janeiro. Entre os serviços sob a mira dos cortes de gastosestáoBilheteÚnicoIntermunicipal,quebeneficiamaisdequatromilhões de fluminenses com descontos na utilização do sistema de transporte. Desde a segunda metade de 2016, as empresas de ônibus têm ameaçado suspender o serviço devido à falta de pagamento pelo Estado, o que colocaria em risco o dia a dia do universitário Matheus Araújo. O morador do Méier precisaria desembol- sar R$22 por dia para cumprir o trajeto de ida e volta à Niterói, quase o dobro do custo com o cartão, que deixa cada viagem a R$6,50. “Se o Bilhete Único realmente acabar, não sei como vamos fazer. Meu pai ficou desempregado nesse ano, e o orçamento está apertado. Meu curso é integral, é difícil conciliar com estágio. E como eu ainda estou no terceiro perío- “Eu sou a cota da cota!” do, também é cedo para conseguir en- trar no mercado de trabalho”, avalia.
  • 63. 63 “O tratamento da Universi- dade é ‘Parabéns! Boa Sorte!’. Ela precisa saber quem nós somos”. Matheusseinscreveuparaoauxílioemergencial,masnãoobteveêxito. Atualmente, a UFF oferece 1.700 bolsas de alimentação, moradia e transporte. No entanto, com mais de 30 mil alunos e 6 mil cotistas, a conta não fecha. “A moradia estudantil é uma das mais difíceis. Eu não moro tão lon- ge, mas os gastos são bem altos. Quem solicita percebe que os critérios de se- leção não são muito claros. Quando eu tentei o emergencial, me negaram sob alegação de que havia casos piores. Eu realmente acredito nesse argumento. Mas todos precisam. Como eu, há cer- tamente outras centenas de alunos, e isso é um fator que prejudica bastante o aluno. Desanima não ter condição de permanecer na universidade pública ou demorar mais para se formar por conta disso”, argumenta. TendocursadooEnsinoFundamentalnaredeprivadaeoEnsinoMédio na pública, Matheus conhece os dois lados da educação básica e compara: na escola particular, sofria preconceito por precisar tirar xerox dos livros, enquanto na Faetec, instituição técnica vinculada ao Governo do Estado, negros e brancos estavam distribuídos de forma proporcional e tinham boa convivência, cenário que gostaria de ver na UFF. Embora tenha ingressado no segundo semestre de 2015,quandoascotasjárepresentavam37,5%dasvagasoferecidas,ofuturoen- genheiro observa que a escassez de negros no campus ainda é latente: de uma turma de 50 alunos, ele é o único negro cotista. “Eu sou a cota da cota! Na minha turma, deveria haver cinco negros co- tistas. Na prática, tem um. Incomoda conviver com pessoas que estão aqui usu- “Incomoda conviver com quem decla- ra uma negritude que não existe para usufruir das vagas de quem realmente precisa. Discursam contra a corrupção, mas a praticam”. fruindodevagasdestinadas a quem realmente precisa, que se assumem como brancas no cotidiano, mas
  • 64. 64 declararam uma negritude que não existe para tirar vantagem. Discursam con- tra a corrupção, mas a praticam. A Engenharia da UFF segue um padrão: branco, playboy, com carro, filho de dono de empresa. É difícil encontrar alguém com uma história de superação. E o mercado de trabalho reflete isso. Quem está no comando é branco, e vai preferir outros brancos, porque a nós, pretos, estão es- tabelecidosossubempregos.Somosdescendentesdepessoasqueforamescra- vizadasenãohánenhumavergonhanisso.Masquantasfamíliasconseguiramse recuperar ao longo desses anos? O que motiva alguém a nos tirar esse direito?”, questiona. Para combater as fraudes nas cotas raciais, Matheus toma como exem- plo o CEFET de Nova Iguaçu, onde cursou alguns meses, antes de ser aprovado na UFF. Ele acredita que medidas aliadas à autodeclaração podem inibir a ação de quem se apropria indevidamente das ações afirmativas e transformar o perfil dosgraduandosdaUFF.AmetaédeixaraUniversidademaispretadoquequan- do chegou. “Senti diferença na dinâmica de matrícula dos cotistas entre as duas faculdades. Na UFF, eu entreguei o que exigiam e fui embora. Não fiquei 15 mi- nutos na sala, ninguém nem olhou para mim. No CEFET, as assistentes sociais conversam,avaliamosdocumentos.Umapolíticaumpoucomaisexigentepode ajudar, porque é menos provável que o branco se disponha a encarar uma veri- ficação, ele vai ficar com receio de ser questionado como cotista. E a Universida- de também poderia nos acompanhar mais. O tratamento atual é‘Parabéns! Boa Sorte!’. Ela precisa saber quem nós somos”, sugere.
  • 65. 65 LucianaSilva A paulista de 28 anos abandonou o funcionalismo público para viver o sonho de cursar Direito. Ao ingressar na UFF no se- gundo semestre de 2014, se deparou com as contradições da Universidade. De um lado, a organização dos estudantes pretos; do outro, o racismo institucionalizado que ignora a im- portânciadasquestõesraciais.Diantedoque já enfrentou para chegar ao ensino superior público, Luciana Silva não se deixa intimidar. Acredita que é chegado o tempo dos negros escreverem novas histórias, de conquista e positividade. Da Zona Leste de São Paulo para Niterói, Luciana Silva enfrentou um longo percurso. Na bagagem, trouxe sonhos, determinação e consciência crí- tica de que a universidade pública é um lugar de todos. Nem sempre pensou assim, confessa. A necessidade de ingressar no mercado de trabalho prejudicou até mesmo o ritmo do ensino básico, concluído por meio do Programa de Edu- cação de Jovens e Adultos, somente aos 20 anos de idade. Na periferia de São Paulo, ao som de rap, era fácil identificar as desigualdades. Enquanto o sonho de conquistar uma vaga na universidade pública adormecia no peito, Luciana “Sempre brinco que nasci duas vezes: a primeira quando vim ao mundo, e a segunda quando me descobri negra” encontrou uma forma de incentivar outros jovens de baixa renda a acre- ditar em si mesmos. Ela começou a dar aulas de interpretação de texto em um pré-vestibular comunitário,
  • 66. 66 vinculado à Educafro, o que culminou no envolvimento com a militância negra. “Não havia referências de familiares, amigos ou vizinhos no ensino su- perior público, logo os autores negros se tornaram a minha inspiração. Defendi as cotas raciais nas manifestações em Brasília e me integrei às ações da Educafro. Quando nos encontramos, descobrimos quem somos, adquirimos uma identi- dade crítica e começamos a compreender nossa capacidade de alcançar espa- ços que parecem utópicos, de romper barreiras”, conta. A dedicação aos estudos e o incentivo da mãe culminaram no ingresso no curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2008, primeiro ano de aplicação de cotas raciais no ProUni. Mesmo com a política, a turma con- tava com apenas duas negras, ambas contempladas pelas ações afirmativas. A definição do Enem como método de seleção reacendeu o desejo de expandir horizontes. Àquela altura, o envolvimento com as questões raciais havia conso- “Foram mais de 300 anos de es- cravidão no país, e a Universida- de acha desnecessário ter disci- plinas que abordem as questões raciais.” lidado a meta de cursar Direito. No entanto, seria necessário deixar um emprego como servidora pública, casa, família, e começar do zero aos 26 anos. “Devido à falta de informação, achávamos que a USP era a única op- ção. Ela ainda está muito distante para quem é da periferia… Percebi a diferença da Mackenzie para a UFF ao encontrar outros estudantes negros na Semana de Acolhimento Estudantil, mas a convivência na sala de aula se mostrou bastante negativa.Empoucassemanasdeaulaaspiadasracistasjásefaziamfrequentese, aofinaldoprimeirosemestre,eunãofalavacommetadedaturma.Quandovocê é preto e se posiciona, incomoda muita gente”, salienta. ParaLuciana,oracismodaUFFseexpressanãoapenasnodiaadiacom osdemaisestudanteseprofessores,mastambémpeloposicionamentoburocrá- tico da própria instituição. “Estamos atrasados em fatores básicos. É assustador que uma univer-
  • 67. 67 sidade pública, num país com mais de 300 anos de escravidão, não tenha na grade dos cursos disciplinas que abordem as questões raciais e apresente tanta resistência às propostas de modificação de currículo com esse objetivo. Há um distanciamento considerável das questões de gênero, da origem latinoameri- “Temos sempre a mesma história, de sofrimento e privação, precisamos escrever outras mais positivas” cana. O Direito é um curso eurocêntrico e ministrado por professores conservadores, que defendem meritocracia. Mais grave ain- da é a instituição contratar prestadoras de serviço cujas cláusulas de contrato proíbem os funcionários de participar de quaisquer eventos. Isso prova que a Universidade pretende manter a configuração atual, porque potencializar as pessoas significa modificar estruturas sociais que têm dado certo para quem já está no poder”, avalia. Faltam, pelo menos, três anos de curso, porém a estudante de Direito já percebe a influência que exerce sobre a família. Nesse período, três primas fo- ram aprovadas em instituições públicas e o pai adquiriu uma nova visão sobre as ações afirmativas. Para além do círculo social, Luciana planeja ver mudanças concretas na Universidade e acredita que a articulação dos alunos negros será importante para construir este cenário. “Quem entra na universidade hoje mostra mais convicção sobre sua identidade racial e seus direitos. A organização tem permitido firmar laços para enfrentar o racismo juntos e discutir nossa realidade por nós mesmos, como fizemos no ECUN (Encontro de Universitários Negros) na UFRJ, em maio deste ano.Caminhamosapartirdoquenossosantepassadosconstruíramevamosdar continuidade, evoluindo a cada geração. Raramente, as crianças de escola públi- ca com as quais converso contam sobre o sonho de serem médicas ou advoga- das. Na realidade delas constam ser mãe aos 16 anos, fazer supletivo para poder trabalhar, ver os amigos morrerem pela violência, enxergar no Pelé o referencial negrodesucesso.Brincoquetenhoduascertidõesdenascimento-adequando eu vim ao mundo e a de quando me descobri negra. Hoje, eu acredito em mim,
  • 68. 68 vejo meu potencial como intelectual e sei que tudo o que é possível para mim, pode ser para os nossos irmãos e irmãs.Temos sempre a mesma história, de so- frimento e privação, precisamos escrever outras mais positivas”, finaliza.
  • 70. 70 Pierre Bourdieu inovou a sociologia ao definir o conceito de habitus, em síntese, como o “princípio não escolhido de todas as escolhas”, ou seja, o indivíduo tem a predisposição a determinadas atitudes e ações ligadas ao gosto, ao comportamento e aos valores, por conta das estruturas sociais nas quais está inserido. Com base nessa fundamentação teórica, Hustana Vargas, em seu estudo“Cor e curso na interiorização de uma universidade federal”, en- tende que o fenômeno da escolha da carreira pode ser relacionado a constru- ções típicas do habitus, como algo que os indivíduos incorporam ao longo de sua história de vida e de suas interações sociais. Sendo assim, cursos e carrei- ras seriam apropriados por grupos sociais que se estabelecem nas instituições e no mercado, incentivando e atraindo seus iguais. Nesse sentido, a autora argumenta que o contexto de instabilidade política e econômica no qual este trabalho é fina- lizado, enquanto são votados os cortes nos gastos do Governo com os servi- ços de saúde e educação, põe em risco décadas de conquistas sociais. Se as universidades públicas esperam prejuízo com tais medidas, maior ainda é a preocupação dos cotistas. No entanto, a luta não se deixa conter por decisões pautadas pela má vontade política; ela permanece em curso através do teste- munho e do exemplo de Bernardo Affonso, Tainara Cardoso, Matheus Araújo, Luciana Silva e tantos outros que denunciam o lugar da exceção hoje, a fim de ver um cenário menos desigual amanhã. Enxergamos as transformações sociais que as cotas raciais têm gerado, ainda que em pequena proporção, na “oingressoeapermanênciademaisnegrosnoensinosuperior,emtodo tipo de carreiras, não significam apenas a alteração de horizontes eco- nômicos individuais ou familiares. Significam, também, alterações nas representações sobre relações raciais, nas identidades étnico-raciais e na autoestima. Ao mesmo tempo, disseminam novas expectativas em relação à educação formal e uma ética antirracista sobre as hierarquias raciais, possibilitando que os estudantes tornem-se referências dentro e fora de suas universidades. Nesse sentido, eles referenciariam novos habitus” (VARGAS, 2016, pág. 06).
  • 71. 71 Universidade Federal Fluminense e reafirmamos que elas não se restringem a números, mas perpassam as nossas vidas. Seremos nós os responsáveis a for- mular novos habitus e, a partir deles, impulsionar mais negros e negras a dese- jarem, sonharem e ocuparem os espaços de poder, rompendo com os papéis sociais determinados à população negra pela sociedade racista, que apela desde o mito da democracia racial a discursos que visam ferir nossa autoesti- ma para nos manter em lugares de subalternidade. Defendemos as ações afir- mativas não por duvidarmos da capacidade do negro em caminhar sozinho, mas por acreditarmos no potencial daqueles que não foram incentivados a explorá-lo ou precisaram escolher a sobrevivência imediata, em detrimento da trajetória acadêmica. Portanto, esperamos que, mesmo de forma modesta, este projeto lhes forneça informação para suscitar reflexões, pois“somente a partir do momento em que nos enxergarmos como parte do problema, pode- remos passar a fazer parte da sua solução”(CARVALHO, 2005/2006, pág. 102). Enfim, Agora Estamos Aqui constitui uma tentativa de registrar nar- rativas que há muito estão invisíveis, mas precisam ser compartilhadas. São histórias que representam não apenas estes quatro personagens, e sim milha- res de negros e negras que têm superado estigmas, dificuldades financeiras, problemas de autoestima e tantas outras formas cruéis pelas quais o racismo se expressa. Cada experiência se tornou possível por conta das ações afirmati- vas e, por isso, reforçam o que este projeto se propôs a olhar: políticas públicas sérias e eficazes são ferramentas para transformar vidas, derrubar paradigmas e construir uma sociedade mais justa. Aliar uma experiência tão particular ao conhecimento adquirido no curso de Comunicação se mostrou não apenas um desafio, como uma satisfação. Sempre vai haver uma boa história, um novo‘gancho’, um detalhe que fará a diferença na apuração. Adquiri sabedo- ria, exercitei habilidades, fiz amigos, ouso dizer. E, também assumo que foi fundamental à minha motivação tentar retribuir aquilo que a Universidade me ofereceu de forma gratuita: a capacidade de abrir meus horizontes e, des- te modo, me permitir aprender. Hoje, olho para trás e só consigo pensar isso:
  • 72. 72 assim como pude desfrutar de tantas qualidades que o ensino superior públi- co tem a oferecer, desejo que outros negros e negras também tenham esta oportunidade.
  • 74. 74 ALCANTARA, Maria das Graças A. dos S. Estudantes Cotistas: limites para perma- nênciaeconclusãodocursosuperiornaUFF.Niterói:UFF,2015.14p.Especializa- ção em Gestão em Administração Pública, Faculdade de Administração e Ciên- cias Contábeis da Universidade Federal Fluminense. Disponível em <www.ichs. uff.br/wp-content/.../01/TFC_MARIA-DAS-GRAÇAS-ALCANTARA.pdf> Acesso em: novembro 2015 BRANDÃO, André;TEIXEIRA, Moema De Poli. Censo Étnico-Racial da Universida- de Federal Fluminense e da Universidade Federal do Mato Grosso. Niterói: EDU- FF, 2003. CADERNOS PENESB: DISCUSSÕES SOBRE O NEGRO NA CONTEMPORANEIDADE E SUAS DEMANDAS. Niterói: EdUFF, 2008/2010, n.10. CARVALHAES,Flávio;DAFLON,VerônicaToste;FERESJÚNIOR,João.Oimpactoda Lei de Cotas nos estados: um estudo preliminar. Rio de Janeiro: IESP-Uerj, 2013. Disponível em <http://gemaa.iesp.uerj.br/files/TdP/TpD_gemaa_1.pdf> Acesso em: janeiro 2016 CARVALHO, José Jorge.“O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro”, in Revista USP, São Paulo, n.68, dezembro/fevereiro 2005-2006, p. 88-103. Dispo- nível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/download/13485/15303> Acesso em: março 2016 CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DETRABALHO E DESIGUALDADES. O que afasta as crianças e adolescentes negros da escola?. São Paulo: 2014. Disponível em
  • 75. 75 <http://www.ceert.org.br/noticias/crianca-adolescente/4808/o-que-afasta-as- -criancas-e-adolescentes-negros-da-escola> Acesso em: novembro 2016 DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. In: Cadernos de Pesquisa, vol. 43, nº. 148, 302-327 (2013). Disponível em <http:// www.scielo.br/pdf/cp/v43n148/15.pdf> Acesso em: janeiro 2016 EURÍSTENES, Poema; FERES JÚNIOR, João & CAMPOS, Luiz Augusto. Evolução da Lei nº 12.711 nas universidades federais (2015). Levantamento das políticas de ação afirmativa (GEMAA), IESP-UERJ, dezembro, 2016, pp. 1-25. Disponível em <http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2016/12/Lev2016.pdf> Acesso em: dezembro 2016 FERES JÚNIOR, João; DAFLON, Verônica. Políticas da Igualdade Racial no Ensino Superior. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, v. 5, p. 31-43, 2014. Dispo- nível em <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/cdf/article/view/14229/10769> Acesso em: dezembro 2016 FERES JÚNIOR, João; DAFLON,Verônica; CAMPOS, Luiz Augusto. A ação afirmati- va no ensino superior brasileiro (2011). Levantamento das políticas de ação afir- mativa (GEMAA), IESP-UERJ, 2011, pp. 1-20. Disponível em <http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2013/11/files_Levantamen- to_2011C.pdf> Acesso em: janeiro 2016 GUIMARÃES,ReinaldodaSilva.Afrocidadanização:açõesafirmativasetrajetórias de vida no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Selo Negro, 2013.
  • 76. 76 NASCIMENTO, Alexandre do. Do direito à universidade à universalização de di- reitos: o movimento dos cursos pré-vestibulares populares e as políticas de ação afirmativa. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2012. PACHECO, Jairo Queiroz; SILVA, Maria Nilza da (orgs.). O negro na universidade: o direito à inclusão. Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2007. Retrato das desigualdades de gênero e raça / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada- 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011. Disponível em http://www.ipea.gov.br/re- trato/pdf/revista.pdf Acesso em mar 2015 SACRAMENTO, Mônica P. do. Ação afirmativa: o impacto da política de cotas na ESDI (EscolaSuperiordeDesenhoIndustrial-UERJ).DissertaçãodeMestradoemEdu- cação, 2005, 201p. Disponível em: uff_dissertacao_2005_MPdoSacramento.pdf Acesso em set 2014 SILVA,Cidinhada(org.).AçõesAfirmativasemeducação:experiênciasbrasileiras. São Paulo: Summus, 2003. VARGAS, Hustana Maria.“Cor e curso na interiorização de uma universidade fe- deral”. Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior no Brasil - Flacso Bra- sil. Rio de Janeiro: 2015, 9p. Disponível em <http://flacso.org.br/files/2015/11/ gea_opini%C3%A3o22.pdf> Acesso em: outubro 2016
  • 78. 78 Agora estamos aqui é um ensaio sobre o ingresso de estudantes negros a partir das políticas de ação afirmativa implementadas na Universidade Federal Flumi- nense. O trabalho procura registrar a trajetória dos cotistas e abordar o impacto das cotas raciais sobre a instituição, que precisa adaptar-se às demandas deste novo público. Palavras-chave: cotas raciais, ação afirmativa, UFF, racismo. As políticas de ação afirmativa difundiram-se pelo mundo com a pre- tensão de reverter quadros de desigualdades socioeconômicas provocadas por fatores históricos. No Brasil, o conceito ganhou visibilidade ao reivindicar inter- venções do Estado em defesa da população negra, visto que a superficialida- de da Lei Áurea e das legislações seguintes não garantiu a inserção dos ex-es- cravizados e seus descendentes na sociedade como cidadãos, ao contrário da população migrante européia e asiática, que receberam benefícios do governo parasuainstalaçãoesobrevivência.Apesardacomprovação,pormeiodedados, da discrepância entre brancos e negros quanto à escolaridade, ao rendimento salarial, aos índices de desemprego e ao acesso à moradia de qualidade, entre outros fatores, as propostas de medidas de reparação enfrentaram críticas de intelectuais e da mídia, com uma série de argumentos subjetivos que buscam deslegitimar a necessidade da aplicação da política em espaços de poder, como os cargos públicos e o ensino superior, numa tentativa de manter a população negra na base da pirâmide social e em posições de subserviência. Opiniões à parte,asaçõesafirmativasseconsolidameimplicamnoingressocadavezmaior de negros nas universidades públicas. Resumo Introdução